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terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Leitura: Poemas 1913-1956 - Bertolt Brecht


Refeição Cultural

"A MINHA MÃE

Quando ela acabou, foi colocada na terra
Flores nascem, borboletas esvoejam por cima...
Leve, ela não fez pressão sobre a terra
Quanta dor foi preciso para que ficasse tão leve!
"

(BRECHT, 2012, p. 21)


Completei a leitura do livro Poemas 1913-1956 de Bertolt Brecht. A edição é da Editora 34; a seleção e tradução é de Paulo César de Souza. São 260 poemas abrangendo diversas fases da vida do escritor, dramaturgo e poeta alemão.

São poemas engajados, politizados e com fortes críticas à alienação, à religião e à falta de reação da classe trabalhadora e de suas lideranças em relação à exploração humilhante e assassina por parte dos burgueses e capitalistas. Os poemas são muito pertinentes para os tempos que vivemos, de necrocapitalismo, neoliberalismo, e ampliação da exploração das massas humanas no século 21.

1913-1926

Difícil citar só alguns poemas. A seleção já fala por si, afinal de contas é uma "seleção" organizada por Paulo César de Souza. Mesmo assim, cito alguns poemas ou alguns versos para se ter uma ideia da poética de Brecht.

O poema "Ó FALLADAH, AÍ ESTÁS PENDURADO!" tem como Eu lírico um cavalo de carroça, que após uma vida de fome, exploração e miséria cai na sarjeta, esgotado, e é cortado e comido ainda vivo pelo povo faminto, o mesmo povo que lhe dava comida quando parava por ali. A imagem é impressionante.

"Mal acabara de cair, no chão o pescoço
(O cocheiro criou asas)
Já saíam correndo das casas
Pessoas famintas; um pedaço de carne queriam obter
Com facas arrancaram-me a carne do osso
E eu que ainda vivia, não havia terminado de morrer
"

(p. 14)

Alguns poemas são bem ácidos em relação às personagens da religião cristã. O poema "MARIA" é um exemplo. Outro é o "HINO A DEUS", veja a primeira estrofe:

"No fundo dos vales escuros morrem os famintos.
Mas você lhes mostra o pão e os deixa morrer.
Mas você reina eterno e invisível
Radiante e cruel, sobre o plano infinito.
"

(p. 13)

Poemas do Manual de devoção de Bertolt Brecht

Dessa parte da seleção de poemas, um dos que são mais chocantes, na minha opinião, porque são poemas que nos incomodam, é o poema "DA COMPLACÊNCIA DA NATUREZA". Vejam uma estrofe:

"E à noite o gemido fundo e lascivo da mulher
Cobre o choro da criança no canto do quarto.
E na mão que bateu no menino cai carinhosa
A maçã da árvore mais exuberante de um ano farto.
"

(p. 44)

1926-1933

Nesta fase, os poemas são críticas agudas à ascensão do fascismo na Alemanha e na Europa. Os poemas têm como pano de fundo a miséria da crise econômica mundial.

"QUEM SE DEFENDE

Quem se defende porque lhe tiram o ar
Ao lhe apertar a garganta, para este há um parágrafo
Que diz: ele agiu em legítima defesa. Mas
O mesmo parágrafo silencia
Quando vocês se defendem porque lhes tiram o pão.
E no entanto morre quem não come, e quem
              [não come o suficiente
Morre lentamente. Durante os anos
              [todos em que morre
Não lhe é permitido se defender.
"

(p. 73)

O poema "SOBRE A MANEIRA DE CONSTRUIR OBRAS DURADOURAS" nos coloca a pensar sobre a questão do tempo, da necessidade de lidar com os tempos duríssimos que estamos enfrentando no Brasil. Não devemos nos acomodar, mas temos que ter paciência porque as coisas talvez demorem muito para mudar e temos que resistir. 

No entanto, outro poema de Brecht, do mesmo período, nos relembra daquele conceito de Paulo Freire, que esperança não é esperar, é esperançar, é uma atitude ativa, de fazer, de organizar, de criar o futuro desejado.

"OS ESPERANÇOSOS

Pelo que esperam?
Que os surdos se deixem convencer
E que os insaciáveis
Lhes devolvam algo?
Os lobos os alimentarão, em vez de devorá-los!
Por amizade
Os tigres convidarão
A lhes arrancarem os dentes!
É por isso que esperam!
"

(p. 102)

Há muitos outros poemas que refletem os tempos que correm, de guerras, de perseguições, de ódio e violência, de incertezas no amanhã.

Esse período até 1933, tem muitos poemas marcantes. O livro fecha o período com "ELOGIO DO APRENDIZADO", "ELOGIO DO PARTIDO" e "MAS QUEM É O PARTIDO", seguidos pelo poema "ALEMANHA".

A questão da importância do coletivo é muito forte. Também a importância do estudo, sobre aprender sempre.

Vou terminar a postagem porque ela ficaria enorme se eu fosse perpassar período por período da seleção de poemas de Brecht. São 260 poemas e devem ser relidos com prazer.

Os outros períodos são: "1933-1938", "Dos Poemas de Svendborg", "1938-1941", "1941-1947" e "1947-1956". Ao fazer a postagem, acabei relendo a primeira parte que havia lido em 2018, foram mais 100 páginas de leituras.

Vale a pena conhecer e ler Bertolt Brecht.

Seguimos esperançosos na vida e no remédio que o tempo nos proporciona. Uma hora esse período de ascensão e predomínio do mal aqui no Brasil vai passar, esses genocidas e gente bandida e desprezível serão retirados das posições de poder e outros tempos virão. 

A pandemia de Covid-19 vai passar, demore ou não a vacina. E se tivermos as condições básicas para ficarmos em casa e evitar aglomerações, devemos seguir as recomendações de distanciamento social, uso de máscaras, higienização etc. 

E como diz o poema "PASSAGEM DA NOITE", de Drummond: 

"Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos.
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!
"


William


Bibliografia:

BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. Seleção e tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34, 2012 (7ª Edição).


quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

12. Nada de novo no front - Erich M. Remarque



Refeição Cultural - Cem Clássicos

"No abrigo à prova de bombas, depois de dez horas de bombardeio posso ser estraçalhado, e posso não sofrer um único arranhão; só o acaso decide se sou atingido ou fico vivo. Cada soldado fica vivo apenas por mil acasos. Mas todo soldado acredita e confia no acaso." (REMARQUE, 1981, p. 86)

"Para cada veterano, morrem de cinco a dez recrutas. Um ataque inesperado de gás ceifa a vida de muitos. Nem chegaram a aprender o que fazer. Achamos um abrigo cheio de homens com os rostos azulados e lábios negros. Numa trincheira, tiraram cedo demais as máscaras; não sabiam que o gás se mantém mais tempo no chão; vendo os outros lá em cima, sem as máscaras, arrancaram as suas, e engoliram gás suficiente para queimar os pulmões. Seu estado é desesperador, engasgam com hemorragias e têm crises de asfixia, até morrer." (p. 110)


Esse é um daqueles clássicos cujo nome nunca mais esquecemos e que passam a ser referência em nossas ações e reflexões cotidianas. "Nada de novo no front" é uma expressão síntese de situações e momentos nos quais não parece haver nada que possa mudar uma condição ruim ou solucionar um impasse vivido. Nada de novo no front... é assim que nos encontramos neste momento no país onde nasci e vivo.

Estou contando minhas leituras clássicas. Só para ver em que ponto cheguei de um objetivo antigo, de adolescente, de quando eu sonhava ser um grande leitor e um intelectual; hoje tenho claro o quão inocente era essa coisa da forma como estipulei, mas tudo bem. Aos 51 anos descubro a cada momento o quanto sou ignorante culturalmente, o quanto não sei nada de literatura, linguagem e história, e quanto sei menos ainda de outras dimensões humanas. Não consegui sequer ser um "homem cultivado" em conhecimentos gerais e não técnicos, como diz Mircea Eliade em Mito do eterno retorno.

Li Nada de novo no front (1929) na adolescência. O livro me impressionou muito. Eu me identifiquei com o sofrimento e com a desesperança daquela geração de jovens de vinte anos que estavam na guerra. Eu era trabalhador braçal no Brasil da ditadura militar e nos anos perdidos daqueles anos oitenta. Eu quebrava concreto com ponteiro, talhadeira e marreta em construção civil. Sonhava com um futuro melhor, mas a realidade nacional e pessoal me deixavam com muito ódio, raiva do mundo e depressivo. A leitura é duríssima.

Reli o livro faz pouco tempo, faz uns dois anos, com outra cabeça, em outra realidade, mas a leitura foi muito apropriada ao contexto em que nos encontramos, um país sendo destruído e desfeito por um golpe de Estado em 2016 e eleições fraudadas em 2018 e agora estamos sob o comando das piores espécies humanas no aparelho do Estado: estamos sob a banalidade do mal, sob o comando de celerados, genocidas e bandidagem mafiosa. E com uma pandemia mundial sendo utilizada como estratégia de manutenção do regime, porque recolhe o povo consciente em suas casas e gera medo e raiva na massa miserável ignara: condições básicas para o fascismo.

Fiz uma postagem sobre a leitura recente (ler aqui).

Enfim, vendo os acontecimentos da semana, e as perspectivas econômicas, políticas e sociais, sem previsão efetiva de alguma vacina contra o coronavírus no Brasil, o povo sem o auxílio emergencial de 600 reais que o Congresso exigiu de Bolsonaro e Guedes em 2020, e com a possibilidade quase certa do bolsonarismo avançar no comando do Congresso Nacional - Câmara e Senado - já corrompido pelas eleições atípicas e fraudulentas de 2018, não há "nada de novo no front". Não teremos Ano Novo, teremos a continuação de 2016, de 2018 e, infelizmente, de 2020.

Os dois excertos que coloquei no início da postagem ilustram bem o contexto em que nos encontramos. Natal, Ano Novo e férias de janeiro no Brasil de Bolsonaro. A pandemia está descontrolada, matando como bombas jogadas a esmo no front do inimigo, bombas que matam ao acaso qualquer um de nós e os nossos amigos e conhecidos. Serão assim as mortes por sufocamento por Covid-19 nas próximas semanas. 

As pessoas, assim como os soldados inexperientes, já tiraram a máscara achando que o veneno passou, e vão se reunir, comemorar, matar saudades e alguns vão contaminar pais, filhos, familiares, melhores amigos, entes queridos. E alguns deles vão adoecer e morrer de Covid-19, ao acaso, como no front das guerras...

Estou muito triste por isso, muitos de nós serão as vítimas das bombas de coronavírus.

William


Bibliografia:

REMARQUE, Erich Maria. Nada de novo no front. Tradução de Helen Rumjanek. São Paulo: Abril Cultural, 1981.


sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Leitura: Eichmann em Jerusalém - Hannah Arendt



"Resta, porém, um problema fundamental, que está implicitamente presente em todos esses julgamentos pós-guerra e que tem de ser mencionado aqui porque toca uma das grandes questões morais de todos os tempos, especificamente a natureza e a função do juízo humano. O que exigimos nesses julgamentos, em que os réus cometeram crimes 'legais' é que os seres humanos sejam capazes de diferenciar o certo do errado mesmo quando tudo o que têm para guiá-los seja apenas seu próprio juízo, que, além do mais, pode estar inteiramente em conflito com o que eles devem considerar como opinião unânime de todos a sua volta (...) Desde que a totalidade da sociedade respeitável sucumbiu a Hitler de uma forma ou de outra, as máximas morais que determinam o comportamento social e os mandamentos religiosos - 'Não matarás!' - que guiam a consciência virtualmente desapareceram. Os poucos ainda capazes de distinguir certo e errado guiavam-se apenas por seus próprios juízos, e com toda liberdade; não havia regras às quais se conformar, às quais se pudessem conformar os casos particulares com que se defrontavam. Tinham de decidir sobre cada caso quando ele surgia, porque não existiam regras para o inaudito." (ARENDT, 2019, p. 318) 


Refeição Cultural

Terminei a leitura do livro Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal (1963), de Hannah Arendt, livro que ela diz ser uma reportagem sobre o julgamento de Adolf Eichmann. Comecei a lê-lo em 18 de julho deste ano e a leitura se deu num dos momentos mais tristes da história do Brasil, um país dominado hoje pela banalidade do mal, expressão que faz parte do subtítulo do livro de Arendt.

Ao longo das trezentas páginas de relatos e reflexões de Arendt pensei muito em nosso cotidiano em meio ao regime nazifascista e totalitário que se apossou do país após o golpe de Estado de 2016. Neste momento, segundo semestre de 2020, percebo que as coisas vão piorar muito para o povo e para a parte da população que não compartilha dos ideais de maldade e corrupção do regime em vigor.

Estamos sós e sob ameaças diversas de arbitrariedades, já que não há mais instituições às quais recorrer em busca de justiça e de apoio para as coisas básicas da vida em sociedade, porque as principais instituições do Estado estão corrompidas e fizeram parte do golpe contra o povo e as melhorias que se desenvolviam após séculos de falta de oportunidades para os descendentes de escravos, a imensa maioria do povo mestiço brasileiro.

Mandam no país os poderes executivos, poderes judiciários e repressivos, poderes legislativos, imprensa comercial hegemônica concentrada nas mãos de poucas oligarquias e poderes de igrejas, esses poderes todos interligados e compostos por cerca de 1% a 5% do povo, enfim, pouquíssima gente que se apossou do Brasil no pós-golpe de 2016, talvez de forma mais concentrada que antes, se olharmos os quinhentos anos para trás. Estamos nas mãos deles. Se isso não for totalitarismo e se isso não for o mal banal e real para nós 95%, eu não sei mais nada deste mundo.

E este cenário catastrófico para o povo e para o Brasil já se dava desde o golpe, sob Temer, sob Lava Jato e sob Bolsonaro. A destruição se deu independente da pandemia de coronavírus, que veio para terminar com as parcas mobilizações que ainda ocorriam por parte do povo, em espasmos de revoltas quando o necrocapitalismo tinha algum evento mais visual como um cidadão negro assassinado à la George Floyd ou uma criança vitimada por alguma coisa. 

O fato concreto é que o 1% vive a paz dos cemitérios. E o sistema do mal vai agregando a massa servidora à normalidade bolsonarista, neoliberal e necrocapitalista. Quem não for aderente, que se cale, se mude ou desapareça.

É isso!

William


Bibliografia:

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal. Companhia das Letras, São Paulo, 2019.


quinta-feira, 20 de junho de 2019

Marx explica o dinheiro em 'O Capital'





Refeição Cultural

Confesso que sempre que abro o livro O Capital e começo a leitura neste momento da minha vida, da história do Brasil e da história do mundo, fico me perguntando qual o sentido disso, sendo que os livros clássicos da literatura mundial continuam me esperando, e o meu tempo de existência vai passando sem que eu leia mais alguns clássicos que marcaram a história das artes literárias.

Eu não sei ao certo por que não aproveito cada minuto que ainda tenho e foco em ler o que desejo há décadas. Talvez esteja comprometido para sempre com o engajamento político que tive nas últimas duas décadas com o movimento sindical, social e político nas lutas por um mundo mais justo e solidário, e isso me force a estar sempre engajado em algo, nem que seja leituras políticas que nos façam compreender por que as coisas são como são, por que deu tudo errado no Brasil, por que o povo decidiu pelo suicídio coletivo ao escolher degenerados e lesas-pátrias para governar o país após tantos avanços com os governos democráticos e progressistas do Partido dos Trabalhadores.

Eu tenho consciência que estou perdido, que estou sem rumo, que as coisas perderam o sentido para mim. O pior é ter perdido a esperança em ver o povo deixar de ser besta, alienado e tomar consciência de seu lugar e seu papel numa eventual mudança de rumo para o país, que neste momento se desfaz, enquanto o povo miserável e a ficar mais miserável ainda continua com a cara nas telas das redes sociais rolando as memes imbecilizantes tela acima, curtindo e replicando elas quando dizem o que cada um sente e pensa, independente da meme ser verdade ou não. Os humanos se perderam. O homo sapiens sapiens será extinto.

Enfim, feito o desabafo, vamos às explicações de Karl Marx sobre o dinheiro, pois são bem interessantes. Lembro aos leitores que procuro citar as falas dele mesmo, e emitir pouca opinião, ao molde de fichamento de leitura.


III. O DINHEIRO OU A CIRCULAÇÃO DAS MERCADORIAS (P. 119)

1. MEDIDA DE VALORES

Marx começa o capítulo combinando com o leitor que usará o ouro como mercadoria dinheiro para simplificar as explicações.

O ouro exercerá a função de medida universal dos valores e só por meio desta função, a mercadoria equivalente específica, se torna dinheiro.

Abaixo, citamos uma síntese básica do que isso significa, lembrando a questão central de que as mercadorias trazem em si o valor do trabalho humano.

"Não é através do dinheiro que as mercadorias se tornam comensuráveis. Ao contrário. Sendo as mercadorias, como valores, encarnação de trabalho humano e, por isso, entre si comensuráveis, podem elas, em comum, medir seus valores por intermédio da mesma mercadoria específica, transformando esta em sua medida universal do valor, ou seja, em dinheiro. O dinheiro, como medida do valor, é a forma necessária de manifestar-se a medida imanente do valor das mercadorias, o tempo de trabalho."

Depois Marx nos explica que "como forma do valor, o preço ou a forma dinheiro das mercadorias se distingue da sua forma corpórea, real e tangível. O preço é uma forma puramente ideal ou mental...".

No fundo, o trabalho humano está sempre presente no valor das mercadorias.

"O valor, ou seja, a quantidade de trabalho humano contida, por exemplo, numa tonelada de ferro, é expresso numa quantidade imaginária da mercadoria ouro, que encerra quantidade igual de trabalho."

DUAS FUNÇÕES DO DINHEIRO, SEGUNDO MARX

"Medida dos valores e estalão dos preços são duas funções inteiramente diversas desempenhadas pelo dinheiro. É medida dos valores por ser a encarnação social do trabalho humano; é estalão dos preços, por ser um peso fixo de metal. Como medida de valor, serve para converter os valores das diferentes mercadorias em preços, em quantidades imaginárias de ouro; como estalão dos preços, mede essas quantidades de ouro. A medida dos valores mensura as mercadorias como valores; o estalão dos preços, ao contrário, mede as quantidades de ouro segundo uma quantidade fixa de ouro, não o valor de uma quantidade de ouro segundo o peso de outra."

Estalão quer dizer padrão, medida (standard of value). Medida dos valores é measure of value.

Marx explica que uma variação no valor do ouro não traz nenhum prejuízo à sua função de estalão dos preços: "Por mais que varie o valor do ouro, quantidades determinadas de ouro mantêm entre si a mesma proporção de valor".

Uma onça de ouro terá sempre o mesmo peso, independente do valor do ouro. O mesmo ocorre como medida de valor das mercadorias, se sobe ou desce o valor do ouro, o efeito será sobre todas as mercadorias.

O filósofo segue explicando no capítulo os usos históricos da mercadoria dinheiro citando casos desde a antiga Roma até chegar ao padrão ouro.

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NOMES MONETÁRIOS - "Os preços, ou as quantidades de ouro em que se transformam, idealmente, os valores das mercadorias, são agora expressos nos nomes de moedas, ou seja, nos nomes legalmente válidos do padrão ouro. Em vez de dizer que uma quarta de trigo é igual a uma onça de ouro, diremos, na Inglaterra, que é igual a 3 libras esterlinas, 17 xelins e 10 e 1/2 pence. Assim, as mercadorias expressam com nomes monetários, o que valem, e o dinheiro serve de dinheiro de conta quando é mister fixar o valor de uma coisa em sua forma dinheiro."
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Marx vai finalizando essa parte do capítulo deixando claro que não adianta os governos quererem aumentar a riqueza de seus estados com artimanhas contábeis dizendo que seus capitais, suas moedas, valem mais do que valem.

"O nome de uma coisa é extrínseco às suas propriedades. Nada sei de um homem por saber apenas que se chama Jacó. Do mesmo modo, todo vestígio de relação de valor desaparece dos nomes das moedas libra, táler, franco, ducado etc. A confusão que decorre do sentido misterioso atribuído a esses símbolos cabalísticos torna-se maior por expressarem os nomes das moedas valor e, ao mesmo tempo, partes alíquotas de um peso de metal, de acordo com o padrão monetário..."

Nas notas explicativas, Marx ainda cita um autor do século XVII, Petty, ao fazer ironia sobre governos que querem enganar credores e o povo alterando artificialmente o valor de suas moedas: "Se a riqueza de uma nação pudesse ser decuplicada por ato governamental, seria de estranhar que os nossos governos não tivessem, há muito tempo, decretado atos com esse objetivo".

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Lembre-se: "O preço é a designação monetária do trabalho corporificado na mercadoria".
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PREÇO

Marx faz uma longa explicação sobre a questão do preço nas mercadorias.

"Se o preço, ao revelar a magnitude do valor da mercadoria, revela a relação de troca da mercadoria com o dinheiro, não decorre daí necessariamente a recíproca de que o preço, ao revelar a relação de troca da mercadoria com o dinheiro, revele a magnitude do valor da mercadoria"

Isso porque, por exemplo, "Trabalho socialmente necessário de igual grandeza cristaliza-se em 1 quarta de trigo e em 2 libras esterlinas (cerca de meia onça de ouro). As duas libras esterlinas são a expressão monetária da magnitude de valor de 1 quarta de trigo, ou seu preço. Admitamos que as circunstâncias elevem sua cotação a 3 libras esterlinas, ou compilam-na a cair a 1 libra; então, 1 libra esterlina é uma expressão demasiadamente baixa da magnitude do valor do trigo, e 3 libras, uma expressão alta demais, mas, apesar disso, são os preços do trigo, pois, primeiro, são sua forma de valor e, segundo, indicam sua relação de troca com o dinheiro. Não se alterando as condições de produção, em outras palavras, não se modificando a força produtiva do trabalho, deve-se continuar despendendo para a reprodução de uma quarta de trigo o mesmo tempo de trabalho social. Esta circunstância não depende da vontade do produtor do trigo, nem da dos outros donos de mercadorias. A magnitude do valor da mercadoria expressa uma relação necessária entre ela e o tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la, relação que é imanente ao processo de produção de mercadorias..."

Essa parte é importante para a compreensão do que Marx explica sobre a relação preço e valor das mercadorias. Por isso, é necessário citar o trecho todo. Segue:

"Com a transformação da magnitude do valor em preço, manifesta-se essa relação necessária através da relação de troca de uma mercadoria com a mercadoria dinheiro, de existência extrínseca à mercadoria com que se permuta. Nessa relação, pode o preço expressar tanto a magnitude do valor da mercadoria quanto essa magnitude deformada para mais ou para menos, de acordo com as circunstâncias. A possibilidade de divergência quantitativa entre preço e magnitude de valor, ou do afastamento do preço da magnitude de valor é, assim, inerente à própria forma preço. Isto não constitui um defeito dela, mas torna-a a forma adequada a um modo de produção em que a regra só se pode impor através de média que se realiza, irresistivelmente, através da irregularidade aparente."

HONRA E CONSCIÊNCIA TÊM PREÇO?

No fim, Marx fala até de coisas que, no modo de produção capitalista, podem receber preço, mesmo não tendo valor quantificável, como honra, consciência etc.

A questão vem bem a calhar para o momento em que vivemos.

É isso! Abraços aos leitores e leitoras.

William

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Post Scriptum: postagens anteriores sobre 'O Capital' estão aqui em ordem da mais recente para as mais antigas.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

O Capital - Ainda o processo de troca (Marx)




Refeição Cultural


Na postagem anterior (ler AQUI) anotei alguns excertos do capítulo sobre o processo de troca. 

A leitura deste clássico O Capital está sendo feita na medida de minhas possibilidades e não tenho pressa em sua conclusão. É uma leitura de curiosidade pessoal. Não vou prestar contas a ninguém nem represento mais pessoas e meu blog tem hoje o papel inicial de compartilhar conhecimentos e opiniões com quem vier a visitá-lo.

Marx segue explicando a diferença do valor de uso e do valor das mercadorias no processo de troca: "Um objeto útil só poder se tornar valor de troca depois de existir como não valor de uso, e isto ocorre quando a quantidade do objeto útil ultrapassa as necessidades diretas do seu possuidor".

Para se trocar, alienar coisas, é necessário independência. Aquele que aliena coisas precisa ser proprietário delas, de forma independente em relação às coisas da comunidade em que está.

"As coisas são extrínsecas ao homem e, assim, por ele alienáveis. Para a alienação ser recíproca, é mister que os homens se confrontem, reconhecendo, tacitamente, a respectiva posição de proprietários particulares dessas coisas alienáveis e, em consequência, a de pessoas independentes entre si. Essa condição de independência recíproca não existe entre os membros de uma comunidade primitiva, tenha ela a forma de uma família patriarcal, de uma velha comunidade indiana ou de um estado inca etc. A troca de mercadorias começa nas fronteiras da comunidade primitiva, nos seus pontos de contato com outras comunidades ou com membros de outras comunidades..." (p.112)

Com o passar do tempo, começa-se a produzir as coisas para além da necessidade de seus valores de uso e com objetivo de troca.

"Na troca direta de produtos, cada mercadoria é, para seu possuidor, meio de troca; para seu não possuidor, equivalente, mas só enquanto for, para ele, valor de uso."

Conforme vão se avolumando a quantidade de produtores e de mercadorias a serem trocadas, gera-se a necessidade de uma mercadoria com equivalência geral naquele ambiente de trocas.

"Um intercâmbio em que os possuidores de mercadorias trocam seus artigos por outros diferentes, comparando-os, não poderia jamais funcionar se nele não houvesse determinada mercadoria eleita, pela qual se trocam as diferentes mercadorias de diferentes possuidores e com a qual se comparam como valores. Essa mercadoria especial, tornando-se o equivalente de outras mercadorias diferentes, recebe imediatamente, embora dentro de estreitos limites, a forma de equivalente geral ou social..."

A forma de equivalência geral vai ser determinada de acordo com cada ambiência social, poderia ser uma mercadoria destacada na comunidade como, por exemplo, gado.

Com o desenvolvimento das trocas de mercadorias, uma em especial se fixou nesse papel de equivalente geral: a forma dinheiro.

"Os povos nômades são os primeiros a desenvolver a forma dinheiro, porque toda a sua fortuna é formada por bens móveis, diretamente alienáveis, e seu gênero de vida os põe constantemente em contato com comunidades estrangeiras, induzindo-os à troca dos produtos."

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"Os homens, frequentes vezes, fizeram de seu semelhante, na figura do escravo, a primitiva forma dinheiro, mas nunca utilizaram terras para esse fim. Essa ideia só podia aparecer numa sociedade burguesa já desenvolvida."
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Ao final do capítulo, temos explicações sobre as propriedades naturais e as funções monetárias nos metais preciosos ouro e prata, que farão o papel de mercadoria na forma dinheiro.

"'Embora ouro e prata não sejam, por natureza, dinheiro, dinheiro, por natureza, é ouro e prata', conforme demonstra a coincidência entre suas propriedades naturais e suas funções monetárias".

DINHEIRO, MERCADORIA UNIVERSAL

"Sendo todas as mercadorias meros equivalentes particulares do dinheiro, e o dinheiro o equivalente universal delas, comportam-se elas em relação ao dinheiro, como mercadorias especiais em relação à mercadoria universal".

Mas Marx problematiza a seguir a questão do próprio valor da mercadoria na forma dinheiro.

"Sabe-se que ouro é dinheiro, sendo, portanto, permutável com todas as outras mercadorias, mas nem por isso se sabe quanto valem, por exemplo, 10 quilos de ouro. Como qualquer mercadoria, o dinheiro só pode exprimir sua magnitude de valor de modo relativo em outras mercadorias. Seu próprio valor é determinado pelo tempo de trabalho exigido para sua produção e expressa-se na quantidade (que cristalize o mesmo tempo de trabalho) de qualquer outra mercadoria."

O próximo capítulo vai seguir nas questões sobre o dinheiro e a circulação de mercadorias.

Para ler as postagens anteriores sobre O Capital é só clicar AQUI. A ordem será da mais recente para a mais antiga postagem.

Abraços aos leitores que leram esta postagem.

William

domingo, 5 de maio de 2019

O Capital - O processo de troca (Karl Marx)




Refeição Cultural

"O dinheiro é um cristal gerado necessariamente pelo processo de troca, e que serve, de fato, para equiparar os diferentes produtos do trabalho e, portanto, para convertê-los em mercadorias. O desenvolvimento histórico da troca desdobra a oposição, latente na natureza das mercadorias, entre valor de uso e valor..." (P. 111, O Capital)


Retomando a leitura de Marx, agora do capítulo dois de O Capital, que trata na primeira parte da mercadoria e dinheiro, vamos nos acostumando com o estilo do filósofo, que por vezes é bastante irônico ao descrever fatos e apresentar ideias. Ele chega a dar vida e voz às mercadorias em seus textos como se fossem personagens de um romance.

"Não é com seus pés que as mercadorias vão ao mercado, nem se trocam por decisão própria. Temos, portanto, que procurar seus responsáveis, seus donos..."

Marx nos lembra que as mercadorias são coisas; coisas com valores de uso e valores. Como mercadorias serão trocadas, alienadas mediante consentimento e vontade de seus proprietários, gerando relações econômicas e jurídicas.

"Os papéis econômicos desempenhados pelas pessoas constituem apenas personificação das relações econômicas que elas representam, ao se confrontarem."

Para o proprietário, sua mercadoria não tem valor de uso direto; ele a leva ao mercado e lá ela é valor de uso para o comprador. O valor de uso para o proprietário é o fato de sua mercadoria ser depositária de valor, meio de troca.

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"Todas as mercadorias são não valores de uso para os proprietários, e valores de uso, para os não proprietários."
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Mas como as mercadorias têm de mudar de mãos, elas têm de realizar-se como valores, antes de poderem realizar-se como valores de uso.

E também tem a questão do trabalho humano inserido no valor das mercadorias:

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"Só através da troca se pode provar que o trabalho é útil aos outros, que seu produto satisfaz necessidades alheias."
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Em relação à questão que já lemos no capítulo anterior, sobre valor relativo e valor equivalente, temos que:

"Todo possuidor de mercadoria considera cada mercadoria alheia equivalente particular da sua, e sua mercadoria, portanto, equivalente geral de todas as outras mercadorias."

Mas todos pensam assim, aí está o problema. Depois nos é explicado que "apenas a ação social pode fazer de determinada mercadoria equivalente geral".


ANTROPOMORFISMO - Marx brinca com características e aspectos humanos nas descrições sobre a mercadoria.

"Igualitária e cínica de nascença, está sempre pronta a trocar corpo e alma com qualquer outra mercadoria, mesmo que esta seja mais repulsiva do que Maritornes."

E aqui vemos quão culto era Karl Marx, ao citar cientistas, filósofos, economistas, escritores e personagens de obras clássicas. Ele cita uma personagem de Cervantes, do Dom Quixote de La Mancha.

Segundo a Wikipedia, Maritornes é uma personagem da obra que era "...ancha de cara, llana de cogote, de nariz roma, del un ojo tuerta y del otro no muy sana. Verdad es que la gallardía del cuerpo suplía las demás faltas: no tenía siete palmos de los pies a la cabeza, y las espaldas, que algún tanto le cargaban, la hacían mirar al suelo más de lo que ella quisiera."

Por fim, ao explicar a questão da equivalência, Marx explica o papel do dinheiro que citamos no epigrama que começa a postagem. Ele diz que os produtos do trabalho se convertem em mercadorias no mesmo ritmo em que determinada mercadoria se transforma em dinheiro.

Paro a postagem por aqui e retomamos depois. Para ler as anteriores, clique AQUI.

Abraços, 

William
Um leitor


sábado, 20 de abril de 2019

O Capital - Ainda o fetichismo da mercadoria no modo de produção capitalista



Refeição Cultural

"O reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer quando as condições práticas das atividades cotidianas do homem representem, normalmente, relações racionais claras entre os homens e entre estes e a natureza. A estrutura do processo vital da sociedade, isto é, do processo da produção material, só pode desprender-se do seu véu nebuloso e místico no dia em que for obra de homens livremente associados, submetida a seu controle consciente e planejado. Para isso, precisa a sociedade de uma base material ou de uma série de condições materiais de existência, que, por sua vez, só podem ser o resultado natural de um longo e penoso processo de desenvolvimento." (Pág. 101, O Capital, Karl Marx, 1867 - o sublinhado é do blog)



Ao reler as quinze páginas da parte d'O Capital em que Marx fala do fetiche da mercadoria - "O fetichismo da mercadoria, seu segredo" -, a gente fica refletindo sobre um monte de coisas. (postagem anterior AQUI)


Outro dia, um colega de leituras me contou que na faculdade a turma dele estudou o ano todo O Capital e o professor disse aos alunos que entender a questão do fetichismo da mercadoria era algo importante. Me deu um certo alivio saber que o tema é espinhoso mesmo.


Os exemplos que Marx nos dá das diversas formas de produção material em determinadas sociedades ou comunidades baseadas na divisão social do trabalho, além da forma atual predominante, a do modo de produção capitalista, em que o objetivo da produção material é a produção de mercadorias, nos faz refletir que certos objetivos que perseguimos ao longo de nossa vida de representação e organização social da classe trabalhadora não são objetivos impossíveis, irreais ou utópicos; pelo contrário, são factíveis.


É possível nos organizarmos enquanto sociedade e enquanto seres livres de formas associativas e ou cooperativas para a produção material de tudo que necessitamos para nossa vida e respeitando a individualidade de cada participante daquele sistema social. É possível. Já foi prática comum de diversos povos e coletividades ao longo da história humana.


Num dos exemplos, a divisão social do trabalho se dá numa indústria patriarcal rural:


"Constitui um exemplo próximo a indústria patriarcal rural de uma família camponesa, que produz, para as próprias necessidades, trigo, gado, fio, tela de linho, peças de roupa etc. Essas coisas diversas são, para a família, produtos diversos do seu trabalho, mas não se confrontam entre si como mercadorias. As diferentes espécies de trabalho que dão origem a esses produtos - lavoura, pecuária, fiação, tecelagem, costura etc. - são, na sua forma concreta, funções sociais, por serem funções da família, que tem, como a produção de mercadorias, sua própria e espontânea divisão do trabalho. Diferenças de sexo e de idade e as condições naturais do trabalho, variáveis com as estações do ano, regulam sua distribuição dentro da família e o tempo que deve durar o trabalho de cada um de seus membros." (p. 99)


Noutro exemplo, Marx cita associativismo e cooperativismo de homens livres:

"Suponhamos, finalmente, para variar, uma sociedade de homens livres, que trabalham com meios de produção comuns e empregam suas múltiplas forças individuais de trabalho, conscientemente, como força de trabalho social. Reproduzem-se aqui todas as características do trabalho de Robinson (personagem Robinson Cruzoé, citado antes), com uma diferença: passam a ser sociais, ao invés de individuais. Todos os produtos de Robinson procediam de seu trabalho pessoal, exclusivo, e, por isso, eram, para ele, objetos diretamente úteis. Em nossa associação, o produto total é um produto social.  Uma parte desse produto é utilizada como novo meio de produção. Continua sendo social. A outra parte é consumida pelos membros da comunidade. Tem, portanto, de ser distribuída entre eles. O modo dessa distribuição variará com a organização produtiva da sociedade e com o correspondente nível de desenvolvimento histórico dos produtores..." (Pág. 100)


Reflexões

Vejam, amig@s leitores, tanto nesta citação acima, quanto na primeira que fiz como epígrafe da postagem, temos uma referência à palavra "desenvolvimento". Lembrei-me de nosso lema no movimento dos trabalhadores brasileiros durante os governos democráticos e populares de Lula e o 1º de Dilma, pouco tempo atrás, quando defendíamos o "desenvolvimento com distribuição de renda".

Níveis de desenvolvimento e condições de produção material de uma determinada sociedade são fatores importantes para a definição de que tipo de sociedade humana queremos para nós. 

Na epigrafe que citei, Marx fala em "relações racionais entre homens", inclusive racional em relação à natureza (pensem na questão contemporânea da sustentabilidade!); ele chama o processo de produção material de "vital"; ainda em relação ao processo da produção material Marx nos lembra da necessidade da livre associação entre os homens para tal; por fim, afirma a necessidade de um processo de desenvolvimento para se alcançar uma base material satisfatória.

Profundo, não?

A condição de produção material de uma sociedade tem influência sobre as diversas dimensões sociais dessa mesma sociedade. A situação de momento dos componentes de uma sociedade humana não é algo regido por leis naturais; as coisas não são como são porque têm que ser assim (por exemplo: má distribuição de bens e renda). A condição de momento dos componentes de uma sociedade não é como a lei da gravidade ou qualquer outra das ciências físicas, químicas e da natureza.

Nós somos o reflexo do mundo em que vivemos. Mas nós podemos alterar o mundo em que vivemos para sermos novamente reflexo daquele mundo novo em que vivemos.

As produções materiais das sociedades humanas ao longo da história da humanidade não tiveram como objetivo serem mercadorias como no modelo de produção capitalista, dentro do que Marx explica como valores de uso e valores de troca.

Com o avançar da leitura de O Capital, espero que vá ficando cada vez mais claro aquilo que já aprendi ao longo da existência como algo que não favorece a nossa vida de trabalhadores: os bens da nossa produção humana serem tratados como mercadorias.

Não é correto saúde ser tratada como mercadoria; educação ser tratada como mercadoria; direitos elementares à existência dos seres humanos serem tratados como mercadorias. Isso não é correto!


Síntese da reflexão

A produção material e a divisão social do trabalho em uma coletividade humana (com laços comuns como uma determinada nação, um Estado, uma sociedade) não precisam estar organizadas na forma capitalista de produção de mercadorias para suprir as necessidades humanas.

É isso, por enquanto!

William
Um leitor


Post Scriptum:

As postagens anteriores sobre a leitura de O Capital podem ser acessadas AQUI.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Relembrando A Montanha Mágica - Thomas Mann



Refeição Cultural

"O segredo e a existência da nossa era não são a libertação e o desenvolvimento do eu. O que ela necessita, o que deseja, o que criará é: o terror." (Naphta, personagem de A Montanha Mágica)


Eu tive o privilégio de ler entre 2008 e 2009 esta obra monumental do escritor alemão Thomas Mann. A obra foi publicada em 1924, após a 1ª Guerra Mundial, mas o autor começou a escrevê-la no início da década de dez. O livro narra a história de um jovem chamado Hans Castorp, que passa um longo tempo nas altas e nevadas montanhas em Davos, na Suíça, cuidando de uma tuberculose.

Uma das temáticas que mais me chamaram a atenção na obra foi a questão das reflexões a respeito da subjetividade do tempo. Ao longo da minha existência, o tempo tem sido um fator de incômodo ao pensar na existência humana, na vida no planeta, no Universo. O tempo pode ser longo, pode ser curto. Muito mais que o tempo cronológico apurado através das leis da física, o tempo subjetivo é algo que fascina e ao mesmo tempo incomoda e assusta a todos nós humanos.

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"Lia-se avidamente nos alpendres de repouso e nas sacadas particulares do Sanatório Internacional Berghof - sobretudo entre os novatos e os pensionistas de curto prazo, pois os pacientes que ali permaneciam por muitos meses ou mesmo por vários anos, havia muito que tinham aprendido a matar o tempo sem distrações nem esforços intelectuais e a deixá-lo atrás graças a um virtuosismo interior. Declaravam até que era uma falta de habilidade, própria de sarrafaçais, essa de se agarrar à leitura. Quando muito admitiam que um livro repousasse sobre os joelhos ou na mesinha, o que já era suficiente para as pessoas sentirem-se abastecidas..." (p. 366)
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A minha edição da Nova Fronteira (2006) tem quase mil páginas, com tradução de Herbert Caro e apresentação de Antonio Cicero. É fascinante!

O livro tem passagens profundas de debates filosóficos em voga. E tem questões triviais que nos tocam, como a passagem abaixo. Eu não gosto de ler livros emprestados - nem de bibliotecas, nem de conhecidos - porque eu tenho por hábito meter o rabisco e anotações nos livros que leio.

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"Tratava-se de livros de anatomia, fisiologia, biologia, redigidos em vários idiomas - alemão, francês, inglês - e que lhe tinham sido remetidos um belo dia pelo livreiro do lugar, evidentemente porque Hans Castorp os encomendara por sua própria iniciativa e clandestinamente, durante um passeio que dera até 'Platz' (...) Joachim perguntou por que Hans Castorp, se desejava ler esse tipo de literatura, não o pedira emprestado ao dr. Behrens, que certamente dispunha de um rico sortimento. Mas Hans Castorp replicou que preferia possuir os livros, e que a leitura era bem diferente quando o livro lhe pertencia; além disso, gostava de sublinhar e assinalar certos trechos a lápis. Durante horas a fio, Joachim ouvia do compartimento de sacada do primo o ruído da espátula que ia abrindo as folhas." (p. 368)
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Thomas Mann era um homem de seu tempo, um alemão de seu tempo naquele início de século XX. Vemos nas personagens encerradas naquelas montanhas por longo tempo as visões do mundo que surgia do século XIX e que culminariam na destruição total da civilização ocidental através das guerras mundiais. Veja abaixo uma passagem sobre a questão da ciência e da vida:

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"Que era a vida? Ninguém sabia. Ninguém conhecia o ponto donde brotava a natureza, e no qual ela se acendia. A partir desse ponto, nada havia na vida que não estivesse motivado ou o estivesse apenas insuficientemente; mas a própria vida parecia não ter motivo. A única coisa que se podia, talvez, afirmar a seu respeito, era que a sua estrutura devia ser de tal modo evoluída que não tinha, nem de longe, igual no mundo inanimado. Entre o pseudópode da ameba e o animal vertebrado, a distância era insignificante, desprezível, em comparação com aquela que existe entre o fenômeno mais simples da vida e a outra parte da natureza que nem sequer mereceria ser qualificada de morta, uma vez que era inorgânica. Pois a morte não era senão a negação lógica da vida; entre esta, porém, e a natureza inanimada abria-se um abismo por cima do qual a ciência em vão se empenhava em lançar uma ponte..." (p. 370)
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Interessante. Eu peguei o livro na estante porque reli uma curta postagem minha no blog (junho de 2008), onde comentava que estava lendo a obra de Mann. Reli, então, algumas passagens do episódio "Pesquisas", contido no capítulo 5. Reli também a apresentação de Antonio Cicero.

Amig@s leitores, é impressionante a sensação nítida de déjà vu que senti ao refletir que vivemos hoje o clima de intolerância e ódio estimulado que o mundo viveu nas décadas iniciais do século XX, e que levou à guerra que destruiria a Europa e mataria milhões de pessoas.

O final da história de Hans Castorp me levou à catarse, fiquei emocionado e arrepiado de forma que nunca me esqueci. Só de manusear a obra novamente, senti a mesma coisa.

O mundo em que vivemos hoje, o mundo da mentira que passou a ser a forma de vivência, que passou a ser aceita pelas pessoas de forma cínica, de forma burra, de forma inocente e o fim do papel das instituições políticas, sociais e estatais que regularam o mundo do pós guerras mundiais, como a ONU e um determinado estado de bem estar social, com respeito à alteridade e com freios e contrapesos, vai nos levar a uma terceira guerra envolvendo diversos países e povos, e creio que o mundo humano não sairá o mesmo como ainda saiu das duas primeiras guerras.

É isso! Quem não tiver lido ainda A Montanha Mágica, o momento mundial é muito propício para o contato com a obra de Thomas Mann, que é um romance de ficção, mas que nos leva a reflexões profundas sobre a realidade material.

William
Um leitor

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Marx - O fetichismo da mercadoria




Refeição Cultural

Com este tema do fetichismo da mercadoria, estou fechando a leitura do primeiro capítulo do volume I de O Capital, Crítica da Economia Política (1867). 

A minha leitura deste clássico não é apressada e o importante é o esforço para compreender o ensinamento de Marx. Não à toa, peguei o livro nestes dias e reli as 90 páginas que já havia lido.

Por curiosidade, assisti também ao filme O jovem Karl Marx (2017), com direção de Raoul Peck. Gostei do filme. Vale a pena ver.

Enfim, hoje sei um pouco mais sobre Marx e O Capital do que sabia meses atrás. Minha compreensão dos conceitos de valor de uso, valor de troca e mercadoria no modo de produção capitalista é melhor do que antes. Então, estou menos ignorante no tema. Isso é bom.

Vejam, vendo pelo índice, ainda me falta mais de uma centena de páginas para chegar ao tema da mais-valia. É mole? Após estudar sobre a "Mercadoria", agora vem "O processo de troca", depois vários tópicos sobre "Dinheiro"; a segunda parte vai falar da transformação do dinheiro em capital e só na terceira parte virá o tema da mais-valia.

Repito o que já disse em outras postagens sobre esta leitura de O Capital: não posso dizer que sou marxista, pois não tenho embasamento para isso. As postagens são como fichamentos de leitura, eu transcrevo trechos do próprio autor, faço as citações. É para estudo e releituras rápidas. O que não me impediu de ler quase 100 páginas de novo.

Amig@s leitores, posso dizer que vale a pena comprar o livro, é barato, e compensa sair do mundo das fake news e ler algumas horas por semana obras clássicas como essa. No mínimo não se perde nada e, por outro lado, pode-se ganhar muito com o conhecimento novo.

Isso sim seria uma forma de saber algo para não ser um idiota, parafraseando um sujeito que se diz astrólogo e filósofo, e que faz sucesso por escrever bobagens sem pé nem cabeça e enganar zilhões de desavisados por aí.

Leiam as obras clássicas, obras que influenciaram o pensamento mundial ao longo do desenvolvimento das sociedades. É o que penso.

William
Um leitor


O FETICHISMO DA MERCADORIA: SEU SEGREDO

Segundo Marx, a mercadoria tem um caráter misterioso. Em O Capital, já encontrei passagens descritas por ele de forma irônica, é bem interessante. Vejam essa, quando ele explica que uma mesa, após ser criada a partir da madeira, com trabalho humano, continua sendo de madeira:

"Mas, logo que se revela mercadoria, transforma-se em algo ao mesmo tempo perceptível e impalpável. Além de estar com os pés no chão, firma sua posição perante as outras mercadorias e expande as ideias fixas de sua cabeça de madeira, fenômeno mais fantástico do que se dançasse por iniciativa própria." (p. 93)

Em seguida, Marx reforça que não importa o tipo de mercadoria nem a habilidade humana que a produziu (tecelão, alfaiate etc), importa que as mercadorias são feitas por força de trabalho humano. E "Por fim, desde que os homens, não importa o modo, trabalhem uns para os outros, adquire o trabalho uma forma social".

Seguimos com o mistério das mercadorias: "A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho". (p. 94)

O filósofo faz uma analogia entre a visão do olho e o que vemos, para nos mostrar que o olho reflete a imagem externa das coisas que vê para o nosso cérebro. E continua:

"Há uma relação física entre coisas físicas. Mas a forma mercadoria e a relação de valor entre os produtos do trabalho, a qual caracteriza essa forma, nada têm a ver com a natureza física desses produtos nem com as relações materiais dela decorrentes."

Marx nos explica que o produto do trabalho humano - mercadoria no modo de produção capitalista -, ganha uma espécie de autonomia que não lhe caberia porque as relações deveriam ser entre os homens e não entre as coisas:

"Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um símile, temos de recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantêm relações entre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isso de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias." (p. 94)

O filósofo nos informa que o conjunto dos trabalhos particulares forma a totalidade do trabalho social. "Em outras palavras, os trabalhos privados atuam como partes componentes do conjunto do trabalho social, apenas através das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio destes, entre os produtores".

Nesse modelo de produção para troca temos: "relações materiais entre pessoas e relações sociais entre coisas, e não como relações sociais diretas entre indivíduos em seus trabalhos".

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"A igualdade completa de diferentes trabalhos só pode assentar numa abstração que põe de lado a desigualdade existente entre eles e os reduz ao seu caráter comum de dispêndio de força humana de trabalho, de trabalho humano abstrato." (p. 95)
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Marx escreve no século XIX, numa época em que várias áreas das ciências sequer existiam. Mesmo assim, ele é muito assertivo em suas afirmações. Vejam essa que ele faz a respeito da linguagem, muito antes das concepções da linguística:

"O valor não traz escrito na fronte o que ele é. Longe disso, o valor transforma cada produto do trabalho num hieróglifo social. Mais tarde, os homens procuram decifrar o significado do hieróglifo, descobrir o segredo de sua própria criação social, pois a conversão dos objetos úteis em valores é, como a linguagem, um produto social dos homens." (p. 96)


SEGREDO OCULTO

Marx segue analisando a mercadoria, o valor da mercadoria e as relações de troca.

"Nas eventuais e flutuantes proporções de troca dos produtos desses trabalhos particulares, impõe-se o tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção, que é a lei natural reguladora (...) A determinação da quantidade do valor pelo tempo do trabalho é, por isso, um segredo oculto sob os movimentos visíveis dos valores relativos das mercadorias."


DIVISÃO SOCIAL DO TRABALHO NÃO É CRIAÇÃO DO CAPITALISMO

No início do livro O Capital, Marx já havia dito que a divisão social do trabalho não era uma criação do capitalismo, que, no entanto, precisa dela para a produção das mercadorias.

"No conjunto formado pelos valores de uso diferentes ou pelas mercadorias materialmente distintas, manifesta-se um conjunto correspondente dos trabalhos úteis diversos - classificáveis por ordem, gênero, espécie, subespécie e variedade -, a divisão social do trabalho. Ela é condição para que exista a produção de mercadorias, embora, reciprocamente, a produção de mercadorias não seja condição necessária para a existência da divisão social do trabalho." (p. 64, sublinhado meu)

Naquele momento, citou uma comunidade indiana como exemplo.

Nesta parte de considerações finais do capítulo I que trata da "Mercadoria" ele retoma vários conceitos. Aqui está falando a respeito de propriedades coletivas e trabalhos coletivos ou em comum.

"Constitui um exemplo próximo a indústria patriarcal rural de uma família camponesa, que produz, para as próprias necessidades, trigo, gado, fio, tela de linho, peças de roupa etc. Essas coisas diversas são, para a família, produtos diversos do seu trabalho, mas não se confrontam entre si como mercadorias. As diferentes espécies de trabalho que dão origem a esses produtos - lavoura, pecuária, fiação, tecelagem, costura etc. - são, na sua forma concreta, funções sociais, por serem funções da família, que tem, como a produção de mercadorias, sua própria e espontânea divisão do trabalho. Diferenças de sexo e de idade e as condições naturais do trabalho, variáveis com as estações do ano, regulam sua distribuição dentro da família e o tempo que deve durar o trabalho de cada um de seus membros." (p. 99)


PARA OS BURGUESES SÓ HÁ UM MODO CORRETO DE PRODUÇÃO: O DELES

Ainda nestas páginas finais do capítulo, em que Marx faz avaliações diversas - econômicas, políticas, históricas etc -, gostei desta nota que cito abaixo, tirada de sua obra de resposta à obra de Proudhon:

"Os economistas têm uma maneira de proceder singular. Para eles só há duas espécies de instituições, as artificiais e as naturais. As do feudalismo são instituições artificiais; as da burguesia, naturais. Equiparam-se, assim, aos teólogos, que classificam as religiões em duas espécies. Toda religião que não for a sua é uma invenção dos homens; a sua é uma revelação de Deus - Desse modo, havia história, mas, agora, não há mais." (nota 33, p. 103)


COM A PALAVRA, AS MERCADORIAS

O capítulo termina com as mercadorias dando a opinião delas, diante de tantas questões que Marx coloca para serem respondidas por burgueses e seus economistas e seguidores.

O filósofo fecha assim a questão do fetichismo da mercadoria:

"Sem maior avanço nesta análise, limitamo-nos a ilustrar com mais alguns elementos o fetichismo da mercadoria. Se as mercadorias pudessem falar, diriam: 'Nosso valor de uso pode interessar aos homens. Não é nosso atributo material. O que nos pertence como nosso atributo material é nosso valor. Isto é o que demonstra nosso intercâmbio como coisas mercantis. Só como valores de troca estabelecemos relações umas com as outras'." (p. 104)


Post Scriptum:

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sexta-feira, 5 de abril de 2019

A honestidade de Marx em O Capital




Refeição Cultural

"13 'Todos os fenômenos do universo, provocados pela mão do homem ou pelas leis gerais da física, não constituem, na realidade, criações novas, mas apenas transformação da matéria. Associação e dissociação são os únicos elementos que o espírito humano acha ao analisar a ideia de produção; o mesmo ocorre com a produção do valor' (valor de uso, embora o próprio Verri, nessa polêmica com os fisiocratas, não saiba claramente de que valor está falando) 'e da riqueza, quando a terra, o ar e a água transformam-se, nos campos, em trigo, ou quando, pela intervenção do homem, a secreção de um inseto se transforma em seda, ou diversas peças de metal se ordenam para formar um despertador.' (Pietro Verri, Meditazioni sulla economia política, impresso, primeiro, em 1771, na edição dos economistas italianos, de Custodi, parte moderna, v. XV, pp. 21 e 22)"

(Exemplo de exatidão com que Marx faz citações e dá aos autores citados o devido crédito, e de como ele faz a crítica técnica e científica - na citação acima entre parênteses - em relação a eventual juízo de valor que faça da citação, se for o caso)


Estou lendo o volume 1 da obra máxima de Karl Marx, O Capital. Por diversas questões em minha existência de trabalhador, só agora aos 50 anos de idade pude encarar com atenção a leitura desse clássico.

Já li alguns clássicos da produção humana ao longo de minha vida, a maior parte deles pertencentes a área da literatura. Livros como Ulisses, de James Joyce, Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, e outros mais.

O mundo em que vivo - o Brasil no ano 2019 - passa por um momento dramático em sua história. Talvez o mundo que conhecemos há décadas ou séculos (pela leitura da História) nunca mais seja o mesmo depois do momento em que vivemos. O planeta Terra também vive momentos dramáticos e definidores sobre o futuro da vida humana.

A realidade passou a ser definida ou a ter grande influência da pós-verdade. Estamos numa época em que as versões sobre as coisas, a partir de pessoas ou setores com capacidade operativa, superam os fatos objetivos; a mentira passou a se sobrepor à verdade por força das ferramentas tecnológicas da atualidade.

As também chamadas fake news, mentiras divulgadas como informação verdadeira, passaram a ter efeito por causa de uma certa robotização dos seres humanos, transformados em seres interconectados por aparelhos pessoais que permitem a manipulação de grande massa de humanos até por sistemas robotizados de produção de mentiras. 

O comportamento humano é manipulável a partir de agora - manipulável em escala. Os limites e alcance disso ainda são desconhecidos, mas são incalculáveis os riscos para a existência humana em sociedade.


MARX: UM ESCRITOR ATENTO À LINGUAGEM E ÀS REFERÊNCIAS

É nesse contexto de pós-verdade do século XXI que leio com surpresa Karl Marx, que escreveu por décadas ao longo do século XIX, falecendo em 1883. Ele já publicava textos profundos nos anos quarenta daquele século e publicou O Capital em 1867, com edições revistas e melhoradas, publicadas na Alemanha, França, e depois Inglaterra e Estados Unidos (já sob responsabilidade de Engels). 

Impressiona nos prefácios às edições de 1867, 1873, 1883 e 1890 (em alemão), e na edição francesa entre 1872 e 1875, e ainda na edição de 1886 em inglês, e também pelas cem páginas que já li, o quanto Marx é cuidadoso em seu compromisso com a verdade, com a citação de fatos que descreve (com as devidas fontes) e com as opiniões que emite a partir de seus estudos; vemos o quanto é fiel nas citações de temas e seus autores originais. Sua honestidade intelectual é cativante ao leitor destes tempos de mentiras.

Quando ele critica um autor, ele é claro nisso, quando enaltece outro, o faz da mesma forma. E ainda buscou melhorar a linguagem discursiva nas edições posteriores num esforço de seu trabalho científico e extremamente técnico se tornar acessível aos trabalhadores comuns.

De onde brota tanto ódio e desinformação a respeito deste filósofo e cientista político e sua obra? As pessoas são influenciadas a odiarem Karl Marx ou a se dizerem marxistas ou antimarxistas sem nunca terem lido uma linha de suas obras.

Por fim, dá certo desânimo pensar objetivamente no alcance obtido por grandes autores de ontem e de hoje, em relação ao público leitor ou ouvinte. Quantas pessoas liam as obras dos séculos passados? Quantas leem hoje? Machado de Assis, por exemplo, escrevia no Rio de Janeiro para um possível público leitor de alguns milhares no final do século passado. 

Grandes pensadores e escritores da atualidade conseguem algumas dezenas de milhares de receptores (leitores e espectadores), enquanto alguns vídeos com cem por cento de fake news atingem dezenas de milhões de receptores.

É com isso que lidamos hoje!

William


Post Scriptum:

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