quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

12. Nada de novo no front - Erich M. Remarque



Refeição Cultural - Cem Clássicos

"No abrigo à prova de bombas, depois de dez horas de bombardeio posso ser estraçalhado, e posso não sofrer um único arranhão; só o acaso decide se sou atingido ou fico vivo. Cada soldado fica vivo apenas por mil acasos. Mas todo soldado acredita e confia no acaso." (REMARQUE, 1981, p. 86)

"Para cada veterano, morrem de cinco a dez recrutas. Um ataque inesperado de gás ceifa a vida de muitos. Nem chegaram a aprender o que fazer. Achamos um abrigo cheio de homens com os rostos azulados e lábios negros. Numa trincheira, tiraram cedo demais as máscaras; não sabiam que o gás se mantém mais tempo no chão; vendo os outros lá em cima, sem as máscaras, arrancaram as suas, e engoliram gás suficiente para queimar os pulmões. Seu estado é desesperador, engasgam com hemorragias e têm crises de asfixia, até morrer." (p. 110)


Esse é um daqueles clássicos cujo nome nunca mais esquecemos e que passam a ser referência em nossas ações e reflexões cotidianas. "Nada de novo no front" é uma expressão síntese de situações e momentos nos quais não parece haver nada que possa mudar uma condição ruim ou solucionar um impasse vivido. Nada de novo no front... é assim que nos encontramos neste momento no país onde nasci e vivo.

Estou contando minhas leituras clássicas. Só para ver em que ponto cheguei de um objetivo antigo, de adolescente, de quando eu sonhava ser um grande leitor e um intelectual; hoje tenho claro o quão inocente era essa coisa da forma como estipulei, mas tudo bem. Aos 51 anos descubro a cada momento o quanto sou ignorante culturalmente, o quanto não sei nada de literatura, linguagem e história, e quanto sei menos ainda de outras dimensões humanas. Não consegui sequer ser um "homem cultivado" em conhecimentos gerais e não técnicos, como diz Mircea Eliade em Mito do eterno retorno.

Li Nada de novo no front (1929) na adolescência. O livro me impressionou muito. Eu me identifiquei com o sofrimento e com a desesperança daquela geração de jovens de vinte anos que estavam na guerra. Eu era trabalhador braçal no Brasil da ditadura militar e nos anos perdidos daqueles anos oitenta. Eu quebrava concreto com ponteiro, talhadeira e marreta em construção civil. Sonhava com um futuro melhor, mas a realidade nacional e pessoal me deixavam com muito ódio, raiva do mundo e depressivo. A leitura é duríssima.

Reli o livro faz pouco tempo, faz uns dois anos, com outra cabeça, em outra realidade, mas a leitura foi muito apropriada ao contexto em que nos encontramos, um país sendo destruído e desfeito por um golpe de Estado em 2016 e eleições fraudadas em 2018 e agora estamos sob o comando das piores espécies humanas no aparelho do Estado: estamos sob a banalidade do mal, sob o comando de celerados, genocidas e bandidagem mafiosa. E com uma pandemia mundial sendo utilizada como estratégia de manutenção do regime, porque recolhe o povo consciente em suas casas e gera medo e raiva na massa miserável ignara: condições básicas para o fascismo.

Fiz uma postagem sobre a leitura recente (ler aqui).

Enfim, vendo os acontecimentos da semana, e as perspectivas econômicas, políticas e sociais, sem previsão efetiva de alguma vacina contra o coronavírus no Brasil, o povo sem o auxílio emergencial de 600 reais que o Congresso exigiu de Bolsonaro e Guedes em 2020, e com a possibilidade quase certa do bolsonarismo avançar no comando do Congresso Nacional - Câmara e Senado - já corrompido pelas eleições atípicas e fraudulentas de 2018, não há "nada de novo no front". Não teremos Ano Novo, teremos a continuação de 2016, de 2018 e, infelizmente, de 2020.

Os dois excertos que coloquei no início da postagem ilustram bem o contexto em que nos encontramos. Natal, Ano Novo e férias de janeiro no Brasil de Bolsonaro. A pandemia está descontrolada, matando como bombas jogadas a esmo no front do inimigo, bombas que matam ao acaso qualquer um de nós e os nossos amigos e conhecidos. Serão assim as mortes por sufocamento por Covid-19 nas próximas semanas. 

As pessoas, assim como os soldados inexperientes, já tiraram a máscara achando que o veneno passou, e vão se reunir, comemorar, matar saudades e alguns vão contaminar pais, filhos, familiares, melhores amigos, entes queridos. E alguns deles vão adoecer e morrer de Covid-19, ao acaso, como no front das guerras...

Estou muito triste por isso, muitos de nós serão as vítimas das bombas de coronavírus.

William


Bibliografia:

REMARQUE, Erich Maria. Nada de novo no front. Tradução de Helen Rumjanek. São Paulo: Abril Cultural, 1981.


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