terça-feira, 31 de agosto de 2021

Ulysses - Circe (O Bordel)



Refeição Cultural

Terminei o capítulo 15 de Ulysses arrepiado. Foi esquisito porque estava esgotado pela leitura de 200 páginas feita em dois dias; bunda quadrada por ficar horas sentado envolvido com as alucinações joyceanas. 

A técnica do capítulo foi a "Alucinação", segundo Joyce. E realmente foi foda transitar pelas alucinações do capítulo, que se passa em um prostíbulo, já na madrugada de 17 de junho, pós meia-noite na Dublin de 1904.

A cena que me arrepiei foi a cena da alucinação de Bloom, que viu seu filho morto (morreu aos 11 dias de vida) e que estaria com 11 anos de idade naquele dia. Bloom está na rua, ao lado de Stephen Dedalus, bêbado, meio desacordado no chão após levar um murro na cara por discutir com um policial que também estava se divertindo no prostíbulo.

"BLOOM

(Comunga com a noite) O rosto me lembra o da coitada da mãe...

(silente, pensativo, alerta monta guarda, dedos nos lábios na atitude do mestre secreto. Contra a parede escura uma figura surge lenta, um menino encantado de onze anos, um bebê trocado, raptado, vestindo um terno de Eton com sapatos de cristal e um pequeno elmo de bronze, segurando um livro. Ele lê da direta para a esquerda, inaudivelmente, sorrindo, beijando a página)

BLOOM 

(maravilhado, chama inaudivelmente) Rudy!" (p. 863)

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O CAPÍTULO 15 - ALGUNS MOMENTOS

O capítulo mescla uma miscelânea incrível de coisas. Apesar de ler pela segunda vez, e ter um aproveitamento muito melhor desta vez, diria que é impossível ler as duas centenas de páginas sem se pegar... como diria... da mesma forma que os personagens, alucinado, perdido, sem saber o que está acontecendo... sei lá o que mais eles consumiram além de Absinto, mas tudo é doido, dos personagens no prostíbulo se vai para personagens imaginários e deles para as falas e cenas dessas coisas imaginárias, coisas falam, intervêm nas cenas. A gente vai junto... mesmo sem saber o que é e o que não é... creio que alucinação deve ser assim mesmo.

Vejam alguns exemplos de momentos do capítulo. A parte com letras maiúsculas é a personagem que fala ou pensa, na escrita sem itálico. A parte em itálico é a descrição da cena ou da situação. Como são grandes alguns textos, coloco (...) pra dizer que só citei um pedaço do texto e deixei pra trás um trecho. Só reticências no fim é sinal que o texto continua.

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"SENHORA BREEN

(Ansiosamente) Sim, sim, sim, sim, sim, sim, sim.

(Ela some ao lado dele. Seguido pelo cão choramingas ele caminha na direção das portas do inferno. Em uma arcada uma mulher de pé, dobrada para a frente, pés separados, mija vacalmente..." (p. 688)

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Bloom resolve seguir Stephen noite afora, pois aparenta alguma preocupação com ele. Eles já saíram da taverna meio bêbados.

"BLOOM

(...) O segundo drinque é que deixa assim. Um já basta. Pra que é que eu estou seguindo ele? Ainda assim ele é o melhor daquela turma..." (p. 690)

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Como eu disse, até as coisas e os animais se manifestam no capítulo.

"BLOOM

(Gagueja) Eu estou fazendo o bem pros outros.

(Uma revoada de gaivotas, trintarréis, eleva-se faminta do lodo do Liffey com bolos nos bicos.)

AS GAIVOTAS

Qá qé qais qolo." (p. 692)

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Agora o defunto enterrado pela manhã se manifesta:

"PADDY DIGNAM

(Com franqueza) Outrora estive empregado junto ao senhor J. H. Menton, advogado, comissionado para juramentos e declarações juramentadas, de 27 Bachelor's Walk. Agora estou defunto, hipertrofiada a parede do coração. Maus bocados. A coitada da patroa sofreu horrores. Como é que ela está aguentando? Não deixem ela ficar muito amiga daquela garrafa de xerez..." (p. 715)

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Joyce não economizou na linguagem chula. Imaginem na época da publicação!

"BLOOM

(Pondo a mão direita nos testículos, jura) Que consoantemente trate-me o criador. Tudo isso prometo fazer." (p. 714)

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Neste capítulo, vemos a expressão "homem feminil" que Kiberd atribui ao herói grego Odisseu (Ulisses), no ensaio introdutório da edição que estou lendo.

"DOUTOR DIXON

(Lê um atestado de saúde) O professor Bloom é um exemplo acabado do novo homem feminil. Sua natureza moral é simples e cativante. Muitos descobriram ser um homem querido, uma pessoa querida. Trata-se de um camarada bem esquisito no todo, retraído ainda que não fraco mentalmente no sentido médico..." (p. 737)

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Circe é o nome do capítulo. Stephen cita Circe num texto complexo e quase incompreensível (para mim). Na Odisseia de Homero, Ulisses e sua tripulação desembarcam na ilha onde vive Circe. Ela é uma feiticeira e transforma a tripulação em porcos. Após Ulisses derrotá-la com suas artimanhas, ela devolve a tripulação do herói e lhe dá instruções para eles atravessarem a ilha das sereias.

"STEPHEN

(...) Ela aceita nodos e modos tão divergentes quanto sacerdotes circundando o altar de Davi ou seja Circe ou onde é que eu estou com a cabeça altar de Ceres e a dica preciosa de Davi para seu fagotista principal sobre sua todopoderosidade..." (p. 748)

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Joyce parafraseando o personagem Hamlet, de Shakespeare, que na tragédia diz "Fragilidade, teu nome é mulher" ao observar sua mãe e seu tio. (Citei de lembrança)

"BLOOM

(...) Deveras, que sempre assim foi. Fragilidade, teu nome é casamento." (p. 796)

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E pra fechar, mais umas obscenidades do capítulo:

"O REVERENDO SENHOR HAINES LOVE

(Ergue bem alto por trás a anágua do celebrante, revelando suas nádegas peludas grisalhas e nuas entre as quais está enfiada uma cenoura) Meu corpo." (p. 853)

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COMENTÁRIO FINAL

Terminei a parte II do livro. Faltam agora 3 capítulos para terminar a epopeia de um dia comum na vida do cidadão comum Leopold Bloom pela Dublin de 1904.

Esse capítulo foi bem difícil. Mas consegui superá-lo. De certa forma, os últimos capítulos foram mais complexos que os anteriores. Faz parte. A postagem da leitura do capítulo 14 pode ser lida clicando aqui.

É isso. Seguimos lendo, exercitando o cérebro e buscando novos conhecimentos e novas culturas.

William


Bibliografia:

JOYCE, James. Ulysses. Tradução de Caetano W. Galindo. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.

Diários com Machado de Assis (V)



Refeição Cultural

Brás Cubas e Leopold Bloom

Machado de Assis e James Joyce são dois importantes escritores da literatura mundial. Machado, um brasileiro que nunca saiu do Rio de Janeiro; Joyce, um irlandês que viveu a maior parte de sua vida fora de sua terra natal. 

Joyce nasceu em 1882, pouco tempo depois do lançamento machadiano de Memórias póstumas de Brás Cubas. Machado faleceu em 1908, quando Joyce já estava burilando seus textos, publicando Dublinenses em 1914, Retrato do artista quando jovem em 1916 e Ulysses em 1922.

Brás Cubas e Leopold Bloom são dois personagens que marcaram as carreiras de seus criadores e marcaram, sobretudo, a literatura mundial pelo vanguardismo de suas criações. Ambos são personagens complicados, fora do padrão usual em suas épocas, em seus mundos, em seus contextos. Isso é muito interessante!

Brás Cubas é um "defunto autor", um típico representante da casa-grande brasileira. Um branco de posses, canalha, vil, que vive da riqueza que não é produzida por ele e sim fruto da exploração do Brasil e dos brasileiros. O personagem poderia ser qualquer um dos caras brancos da elite golpista de hoje.

Leopold Bloom é um típico cidadão irlandês, publicitário, casado com uma artista, frequenta os espaços que os amigos e conhecidos frequentam, as tavernas e prostíbulos. Ele é judeu e corno. Todos os conhecidos falam mal dele pelas costas. A sociedade em que ele vive é a pura hipocrisia e contradição. Qual a diferença de 1904 (ou 1922) e hoje?

Os personagens são caracteres de seus tempos e isso é notável porque seus criadores não escondem nada do público leitor. Eles são nojentos, politicamente incorretos. São asquerosos, machistas, racistas, misóginos e imorais. Um nos diz em suas Memórias todas as merdas que fez na vida, o outro nos mostra em ações e pensamentos as merdas que os homens de seu tempo fazem e pensam.

Estou relendo os dois clássicos universais. Memórias já li algumas vezes; Ulysses, li duas décadas atrás.

A leitura desses livros hoje, agosto de 2021, me faz pensar muitas coisas, muitas! Me faz pensar na importância da literatura, das artes, da cultura, mais que nunca! Me faz lembrar que vivemos um período de fim de mundo (do ponto de vista da destruição da vida pelo capitalismo) e de tempos de domínio das extremas-direitas como o bolsonarismo no Brasil. Tempos de negacionismo. Tempos de queimar e censurar o diferente, a alteridade.

Ontem, 30 de agosto, li 120 páginas do Ulysses, justamente o capítulo que se passa no prostíbulo - "Circe" (O Bordel). Queria terminar o capítulo, mas após horas de leitura, vi que não acabaria porque são 200 páginas. Texto complexo, doido demais! Pra vocês terem uma ideia, Joyce diz que a técnica desenvolvida no capítulo é a "Alucinação". Entendem?

Para descansar do dia passado na "zona" ficcional joyceana (rsrs), peguei o Memórias... pra que (rsrs)! Coincidiu de ler justamente as Memórias do defunto autor com a espanhola Marcela.

"... Marcela amou-me durante 15 meses e 11 contos de réis; nada menos."

Descansei da "alucinação" das mais de cem páginas no prostíbulo na Dublin de 16 de junho de 1904 lendo as Memórias de Brás Cubas com seu primeiro amor, seu primeiro beijo, sua primeira relação amorosa com uma moça "amiga de dinheiro e de rapazes" (rsrs).

Por fim, acho importante lembrar que textos de literatura são textos de ficção e existem diversas discussões sobre autores e personagens, se eles pensam a mesma coisa ou não, se o personagem é alter ego do autor ou não etc. Mas um livro de ficção é uma obra em si mesma.

A canalhice de Cubas e de Bloom é a canalhice de Cubas e de Bloom, independente do que pensam seus criadores, que podem pensar como os personagens ou o oposto. Enfim, essa é uma discussão antiga e ela segue valendo.

É isso.

William


segunda-feira, 30 de agosto de 2021

300821 - Diário e reflexões (Carta Capital)



Refeição Cultural - Carta Capital 1170


MANICÔMIO BRASIL

TORTURADOR DA DITADURA PROMOVIDO A "MARECHAL"

"Para não perder tempo, enquanto isso, o ex-capitão nomeava marechais cem generais, sem atentar para o fato de que a patente foi extinta em 1967. Outro desrespeito ao ordenamento militar: figura na lista, a saber, também um coronel quando a elevação ao supremo grau de marechal só cabe se o promovido já é general de quatro estrelas. Mas não é tudo, o coronel presenteado com o novo posto atende pelo nome de Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado, em 2008, pela Justiça brasileira como torturador durante a ditadura." (p. 11, artigo de Mino Carta)

PANDEMIA: TEM OUTRO NOME A DAR, ALÉM DE GENOCÍDIO?

"No primeiro semestre, os óbitos por Covid aumentaram 500% e os gastos da União caíram a 22% do valor aplicado no mesmo período de 2020" (p. 29, matéria sobre o orçamento federal)

PRIVATIZAÇAO DOS CORREIOS: MINA DE OURO

"De olho nos bilhões do comércio eletrônico, o governo detona os Correios, protagonista no setor" (p. 36, chamada da matéria)

"Os Correios são a única instituição pública presente em todos os 5.570 municípios e prestam um serviço relevante impossível de substituir pela iniciativa privada em um país de dimensões continentais. Apenas 324 das 11.542 agências dão lucro e o resultado positivo ajuda a manter as demais. Como a maior parte das agências lucrativas está no Sudeste e no Sul, há também subsídio cruzado inter-regional que viabiliza o atendimento nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Essa articulação vai para o espaço em uma privatização, em prejuízo de usuários e regiões mais pobres." (p. 37)

IGNORÂNCIA COLETIVA FACILITA PRIVATIZAÇÃO

"Vista erroneamente por alguns apenas como uma tradicional distribuidora de cartas, a empresa é também o principal player do e-commerce e responde por mais de 80% das entregas no Brasil, segundo dados de 2017 da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico, e este é o principal motivo para os concorrentes desejarem abocanhá-la." (p. 37)

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COMENTÁRIO 

A leitura da revista impressa de Carta Capital tem sido lenta, aos poucos, mas avalio que vale a pena continuar lendo. Além de exercitar a atividade cerebral da leitura de notícias de forma organizada, leitura de fôlego porque são 64 páginas semanais, ganha-se novos conhecimentos em todas as áreas do saber, pela variedade de notícias que muito provavelmente você não escolheria se estivesse navegando nos sites e redes sociais.

A matéria "No meio do caminho" da seção "Plural" sobre a crise da Ancine nos mostra o quanto a cultura foi destruída pelo regime nazifascista que ascendeu ao poder por golpe no Brasil. Que tristeza! Só não dizemos que é a morte de nosso cinema nacional com centenas e milhares de projetos não acabados porque os responsáveis não desistem. Seguem correndo atrás de patrocínio.

Na seção "Nosso Mundo" a matéria sobre os incêndios na Grécia e as temperaturas de até 50º semanas atrás, e uma matéria sobre as consequências do aquecimento global - décadas antes do previsto -, deixam claro aquilo que tenho escrito: a vida no planeta está por um triz, se não derrotarmos o capitalismo, bau bau formas de vida na Terra.

Os artigos da Maria Flor são muito bons! Emocionam sempre.

É isso, registro pessoal e coletivo feito. Sou um ser humano entre os quase 8 bilhões que existem, mas o que fazemos está interligado com tudo, com tudo no planeta Terra.

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ANIVERSÁRIOS DOS MEUS PAIS

Neste dia 30 de agosto, meu pai completa 79 anos de idade. É uma semana de datas importantes em minha família. No dia 4 de setembro minha mãe completa 75 anos e no dia seguinte, 5 de setembro, eles completam 57 anos de casados - se casaram em 1964. 

Imaginem a dureza da vida de meus pais e seus familiares e amigos, jovens brasileiros pobres, naquele contexto dos anos sessenta: ditadura civil-militar rolando solta no Brasil e os empresários que financiaram o golpe arrepiando pra cima do povo, festa geral na casa-grande! Miséria geral nas senzalas! 

Nos Estados Unidos, negros viviam o apartheid e lutavam por igualdade nos direitos civis. Na África do Sul, idem, os negros lutavam pelo fim do apartheid. Quando nasci, em 1969, o AI-5 já era realidade no Brasil.

Parabéns e muita saúde, pai! Que sigamos sobrevivendo às pandemias que ameaçam nossas vidas diariamente. Parabéns e muita saúde, mãe! Amo vocês todos os dias! Sejam felizes, se possível, e do jeito de vocês!

Vamos seguir lutando por nossa sobrevivência nesse MANICÔMIO BRASIL!

William


domingo, 29 de agosto de 2021

À la Benjamin Button... (17)


19/4/20.

Refeição Cultural

Olhar para trás...


A história do personagem Benjamin Button me chamou a atenção na segunda vez que vi o filme. Os tempos eram de guerra e os homens se matavam nos campos de batalha da 1ª Guerra Mundial quando um relojoeiro que perdeu o filho na guerra fez o relógio da estação ferroviária com um mecanismo diferente: os ponteiros andavam para trás. Queria ele que o tempo pudesse voltar e os jovens não tivessem morrido na guerra, sequer ido para a guerra. Nisso, nasceu naqueles dias uma criança com características de uma pessoa muito idosa e, com o passar do tempo, a criança foi rejuvenescendo. Enquanto as demais pessoas envelheciam, Button ficava mais jovem. 

A ideia que mais gostei do filme foi a da possibilidade do tempo voltar, essa fantasia foi a que mais mexeu comigo. Ao ver a que ponto chegamos da estupidez humana nos dias que correm, gostaria que fosse possível voltarmos ao passado e refazer o caminho e não termos a milícia no poder, não termos o Brasil destruído como está após o golpe de 2016 e gostaria, sobretudo, que o povo tivesse tido a oportunidade de estar neste momento trágico de pandemia mundial sob o comando de um estadista como Lula, impedido de ser presidente em 2018. A morte de 580 mil brasileiros pelo Covid-19 equivale a diversas guerras juntas e com um presidente de verdade como Lula estaríamos vacinados e a vida do povo seria o foco do governo do país.

É isso. Olhar para trás no meu perfil na rede social é lembrar como as coisas eram ou estavam e para onde caminhavam até que um golpe interrompeu a nossa vida e pôs tudo a perder para o povo brasileiro. Onde erramos tanto?

William

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AGOSTO DE 2021

Estamos no mês de agosto. O mundo enfrenta uma pandemia mundial de coronavírus desde o início de 2020. A vida mudou drasticamente para os seres humanos. A realidade factual demonstra que os capitalistas ficaram muito mais ricos e bilhões de pessoas tiveram suas vidas pioradas e as perspectivas de um futuro melhor quase desapareceram. O viver para bilhões de seres humanos virou praticamente uma luta diária pela sobrevivência, e só.

No Brasil, uma espécie de suicídio coletivo em 2018 colocou na presidência da república um sujeito demoníaco (expressão estranha para um ateu usar). Digo demoníaco porque a palavra é forte o suficiente para transmitir o que quero dizer, o sujeito equivale a toda a representação do mal, ele é o mal, não só porque seja mau, mas porque é sádico, é um psicopata, representa os interesses do que há de pior no Brasil e, pelo poder que tem um presidente, influenciou e mudou o ambiente no qual vivíamos no país há dezenas de anos. Viver no Brasil para aqueles que têm um mínimo de consciência e formação política se tornou uma tortura, e o sujeito no poder sabe que nos tortura ao fazer o que faz diariamente. Somos vítimas do sadismo do animal humano no poder central.

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JULHO DE 2021

Mês passado, em julho, finalizei a leitura do livro O verdadeiro criador de tudo (2020), do neurocientista Miguel Nicolelis, sobre o cérebro humano. A leitura me transformou, me trouxe respostas para perguntas que nem havia feito. Passei a ver o mundo e a vida de forma diferente. Também terminei a leitura do clássico Odisseia, na tradução em versos de Odorico Mendes.

Mesmo com medo de pegar Covid-19, participei dos dois dias de luta pelo fora bolsonaro - #3J e #24J - e no fim do mês postei o seguinte apelo aos familiares:

"30/7/21

Sobre o brazil do bolsonaro

Como ainda tenho alguns familiares bolsonaristas no Facebook, eu me pergunto e pergunto a eles, de coração (porque eu os amava) se há consciência a respeito do que eles fizeram com o Brasil e o futuro de todos nós ao apoiarem o golpe contra a presidente Dilma, uma cidadã honesta, e ao votarem no bolsonaro em 2018. Não precisa me dizer publicamente, mas gostaria que refletissem a respeito porque a história não acabou, se não interrompermos essa tragédia, coisas inimagináveis podem acontecer conosco, com os bolsonaristas comuns e com o restante do povo.

Pensem e nos ajudem a salvar o Brasil e nossas vidas."

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JUNHO DE 2021

A recuperação do companheiro e amigo Jacy Afonso foi uma das melhores notícias do mês de junho. A Covid-19 quase tirou a vida de nossa liderança. Todos os meses do ano, soubemos da perda de lutadores e lutadoras do povo trabalhador que conviveram conosco por longo tempo.

Depois de muito tempo, eu consegui terminar a leitura do livro autobiográfico de Nelson Mandela. É uma história tão atual! É só olharmos o momento brasileiro após o golpe de 2016 e vermos a situação de dezenas de milhões de pessoas sem direitos, sem nada. Nosso apartheid secular está cada dia mais oficial e formal e estamos sob os ataques aos direitos e abusos de poder por parte dos brancos que articularam o golpe de Estado.

Fiz a minha parte como cidadão e participei das manifestações populares exigindo a saída do genocida da presidência da república. O #19J foi muito bom na Avenida Paulista em São Paulo e em todo o Brasil e demais países do mundo.

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MAIO DE 2021

Feliz por ter participado das manifestações do povo de luta contra o genocida no poder. O #29M reuniu centenas de milhares de pessoas nas ruas e praças do país e do mundo.

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OLHANDO UM POUCO MAIS PRA TRÁS:

ABRIL DE 2020

Dia 20 - VIAJEM COM A IMAGINAÇÃO!

Em tempos de mundo novo pós pandemia Covid-19:

"Quem não há de ir ver as coisas com os próprios olhos da cara, diverte-se ao menos em vê-las com os da imaginação, muito mais vivos e penetrantes." (Uma excursão milagrosa, conto de Machado de Assis)

Dia 19 - AMOR

Nesse domingo de amor às pessoas e à vida no Planeta, estou usando uma camisa com o símbolo de um brasileiro que ama o país e os seres humanos. Ganhei a camisa de presente de meu querido amigo André Machado, em uma visita que fiz ao acampamento da solidariedade ao presidente Lula, em Curitiba. (é a foto que ilustra essa postagem)

Dia 17 - PELO FIM DO CAPITALISMO

A mãe diarista de um garoto que conhecemos foi dispensada... o rapaz que conhecemos de uma empresa de materiais de construção foi dispensado... em breve vão dispensar a garota que conhecemos há anos da empresa de viagens... o véio daquela empresa com a merda da estátua demitindo milhares enquanto seu dinheiro segue intacto (e os impostos que sonegou, ele pode pagar em um século)... banqueiros demitindo, fazendo lobby pra aumentar a jornada dos bancários...

TEMOS QUE FAZER UMA REVOLUÇÃO E ACABAR COM ESSA MERDA DE CAPITALISMO!

#Cooperativismo # Associativismo

Os donos de todas as empresas devem ser os próprios trabalhadores. Fim dos "empresários"... Temos que desapropriar todos eles!!!

Dia 15 - COMO ACREDITAR NA CIVILIZAÇÃO?

Quando as pessoas mais próximas a você afirmam, ainda hoje, que TODOS os políticos são corruptos, o que esperar do presente e do futuro a não ser guerra, barbárie e autoritarismo dos mais fortes? E o império da força, das armas e da violência?

Eu representei pessoas, eleito, por 16 anos! Sendo assim, sou corrupto porque fui político. Lula, Dilma, Genoino, Haddad, Manuela, Flávio Dino etc... todos nós seríamos corruptos, já que políticos.

Meu, acaba logo essa desgraça de mundo cão!

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COMENTÁRIO FINAL

Encerro mais essa postagem de olhar para trás, de memórias e sentimentos vividos nos últimos meses pandêmicos. Sobrevivemos até aqui, somos uns sortudos aqui em casa porque já tomamos a 1ª dose da vacina contra o coronavírus e estamos na expectativa de tomar a 2ª dose nas próximas duas semanas. 

No Brasil dos bolsonaros, só 1/4 da população tomou as duas doses e dessa parcela, a imensa maioria é do topo da pirâmide social, é branca e mora nos melhores bairros do país. Em algumas regiões de pobres, 80% não tomaram vacina ainda... Esse é o Brasil pós golpe de Estado. A imensa maioria dos 580 mil mortos são pobres, são pretos ou mestiços.

William

Diários com Machado de Assis (IV)



Refeição Cultural

Teremos que recriar leitores e leitoras

Penso que uma das tarefas que teremos pela frente será recriar os leitores e leitoras, no sentido de recriar o gosto pela leitura de fôlego, a leitura reflexiva, a leitura para além de algumas palavras ou memes, para além das chamadas das notícias, das mensagens rápidas, das formas de comunicação que dominaram o mundo no século XXI. Leitores que se desliguem das redes sociais para ler sem interrupção a cada segundo.

Nos séculos anteriores, escritores como Machado de Assis tomaram para si a responsabilidade de criarem a figura do leitor e da leitora de ficção, leitores de textos literários. Nesse processo também se estabeleceram os acordos tácitos entre escritor e leitor, do tipo: olha, leitor, isso é uma ficção, tá! 

Por fim, não podemos esquecer nunca dos contextos nos quais os escritores produziram suas obras ficcionais ao longo da história da literatura mundial. Machado de Assis e demais escritores brasileiros do século XIX, por exemplo, escreviam para pouquíssima gente alfabetizada. Gente sem hábito de leitura de romance ou poesia se compararmos com outras partes do mundo naquela época.

Agora vivemos algo muito louco. Estamos no século XXI, e a tecnologia que inventamos nos fez chegar ao ponto de ser possível passar 24 horas do dia ligados nas redes sociais, fisgados e capturados em redes virtuais na internet (bolhas). De imagem em imagem, de meme em meme, a cada frase de efeito ou chamadas espalhafatosas, o dia se consome sem a pessoa conseguir se desconectar por uma ou duas horas para ler textos. 

Se o texto for longo, "longo" que digo é com duas páginas, com mais de dois parágrafos, quase ninguém o lê porque ele seria muito grande e tomaria muito tempo... enfim, é nisso que estamos nos transformando, humanos que não leem mais. (sem contar que no mundo das imagens e vídeos ainda temos as séries intermináveis para prender os humanos nelas)

Em meu contato com Machado neste domingo, pensei nisso ao ler o conto "Trina e una", publicado em A Estação, janeiro-fevereiro de 1884. O conto foi um dos 50 contos escolhidos por John Gledson em sua coletânea.

Os grandes escritores demonstram através de suas técnicas e habilidades comunicativas que sempre tiveram a preocupação de criar leitores, de criar o gosto pela leitura de ficção, leitura pelo prazer de ler, pelo gosto da reflexão através da leitura, leitura de passa tempo. Bem como os outros tipos de objetivos que também existem nas literaturas mais engajadas, de cunho social, por exemplo.

O conto "Trina e una" é um bom exemplo de uso de técnicas de diálogo com os leitores. Machado exercita sua ironia afiadíssima enquanto conversa ora com a leitora, ora com o leitor de seu texto ficcional. Ele inclusive deixa claro que o texto é ficção, ele brinca com leitores dizendo que não inventaria tal personagem se não fosse para tal papel no enredo. É demais!

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TRINA E UNA

Alguns momentos nos quais o narrador do conto conversa com os leitores do texto.

1. "A primeira coisa que há de espantar o leitor é o título, que lhe anuncia (posso dizê-lo desde já) três mulheres e uma só mulher." (p. 279)

2. "Que o leitor se não enfastie com tais minúcias; não há aí uma só palavra que não seja necessária." (p. 280)

3. "Puro efeito de arte; cálculo e combinação de gestos. São assim as obras meditadas; são assim os longos frutos de longa gestação." (p. 281)

4. "A secreta razão era dissimular quaisquer impaciências namoradas, mostrar que não fazia caso dela, e ver se assim... Compreenderam, não? Era a aplicação daquele pensamento, que não sei agora, se é oriental ou ocidental, em que se compara a mulher à sombra: segue-se a sombra, ela foge; foge-se, ela segue." (p. 285)

5. "Não hei de inventar um homem grave e hábil só para evitar uma certa impressão às leitoras. Tal era ele, tal o dou." (p. 285)

COMENTÁRIOS

Muito interessantes os momentos de diálogo entre o narrador e a pessoa que lê, assim como as ironias machadianas nesses diálogos.

No exemplo "2", Machado estabelece conosco a regra básica da poética dos contos e poesias: "não há aí uma só palavra que não seja necessária". 

Esse é um dos ensinamentos básicos para os estudantes de Letras: lembrem-se que cada palavra em cada verso é interligada com o verso seguinte e assim sucessivamente, estrofe por estrofe etc. Inclusive os poemas de determinados livros de poesias dão um sentido ao todo do livro. O mesmo se dá com os contos, que devem ser certeiros nas palavras, nas ideias e ou ações, no tempo entre o início e o fim da estória.

Os outros itens que deixei de exemplo demonstram o que estou dizendo, as ironias e os tratos entre escritor (narrador) e o leitor ou leitora.

É isso! Vamos ter que recriar os públicos leitores para aquilo que escrevemos, inclusive leitores para os escritores de literatura, poesia e outras formas de artes.

Quando fui dirigente eleito de entidade de saúde dos trabalhadores, tive que fazer uma experiência dessas, de criar um público leitor. Comecei a escrever uma espécie de diário de prestação de contas e de formação e informação sobre a temática da saúde. No início do mandato as postagens tinham alguns leitores, depois foram dezenas e quando terminei o mandato as postagens tinham centenas e milhares de leitores.

Acredito ser possível criar e recriar públicos leitores, sejam de textos literários, políticos ou outros quaisquer.

Abraços! E leiam, se puderem e quiserem salvar os fantásticos cérebros humanos que a natureza nos legou.

William


Bibliografia:

ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 14ª reimpressão, 2015.

sábado, 28 de agosto de 2021

Diários com Machado de Assis (III)



Refeição Cultural

"Mas o desconhecido teve um assomo de raiva, que meteu medo ao pacato clérigo. Que podiam fazer ele e o preto, ambos velhos, contra qualquer agressão de um homem forte e louco? Enquanto esperava o auxílio policial, monsenhor Caldas desfazia-se em sorrisos e assentimentos de cabeça, espantava-se com ele, alegrava-se com ele, política útil com os loucos, as mulheres e os potentados." (p. 273)

 

Na sexta-feira à noite e início da madrugada, fiquei ouvindo músicas antigas e lendo a revista Carta Capital, cada notícia mais desanimadora que a outra. Ler enfileiradas as notícias de destruição do país é algo difícil de descrever. A última que li antes de dormir foi a matéria sobre a privatização dos Correios. Um escárnio, um crime de lesa-pátria, uma tortura a cada pessoa que não seja ignorante, canalha ou interessada no roubo.

No sábado pela manhã, peguei o livro organizado por John Gledson com os 50 contos de Machado de Assis e li o conto "A segunda vida", publicado primeiro na Gazeta Literária e depois no livro Histórias sem data, em 1884. A narrativa é muito doida e é sobre um doido (rsrs), como ficamos sabendo nas primeiras linhas do texto. José Maria diz ter morrido e reencarnado e está com o monsenhor Caldas naquele momento porque quer contar a ele algo que teria feito no dia anterior. 

Esse conto eu não conhecia ainda. É uma narrativa envolvente e que prende a atenção do leitor.

Depois fui ler um pouco sobre Machado, no próprio livro porque John Gledson faz uma introdução sobre o autor e os contos escolhidos por ele. Gledson nos explica um pouco a questão da ironia nos textos de Machado de Assis. Teria sido entre os anos finais de 1870 e as publicações dos anos 1880 que nosso escritor maior desenvolveria sua predileção pela ironia, algo muito refinado em sua técnica literária.

Machado de Assis é um brasileiro. Um brasileiro que viveu no século XIX, o século do Segundo Reinado (D. Pedro II). Século do primeiro de uma série de golpes de Estado perpetrados pelos militares em conluio com a casa-grande (1889 e outros até o de 2016). Machado é um escritor mestiço, neto de escravos alforriados por parte de pai. 

"jovem mestiço, de origem pobre, criado sob a proteção de uma família aristocrática dos subúrbios do Rio (...) Casara-se com uma moça acima de sua classe, uma mulher branca e portuguesa, Carolina Xavier de Novaes..." (Gledson, Introdução, p. 8 e 9)

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COMENTÁRIO

O Brasil não é para amadores! Esse é o ditado popular. O mestiço Machado de Assis conseguiu ser escritor no século cuja lei era a escravidão, sendo ele um negro ou mulato livre e casado com uma branca estrangeira, protegido por um escritor escravagista famoso, José de Alencar. "Tão Brasil!" diriam os poetas do Modernismo.

O Brasil é o país onde pessoas negras ou mestiças votam em racistas, onde mulheres votam em machistas e misóginos, onde líderes de igrejas pregam violência, armas e morte aos diferentes, onde servidores públicos votam em privatistas. "Tão Brasil!".

Nós somos isso tudo que está aí, essas coisas somos nós, brasileiros e brasileiras.

William


Bibliografia:

ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 14ª reimpressão, 2015.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Diários com Machado de Assis (II)



Refeição Cultural

"Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um - 'ai, nhonhô!' - ao que eu retorquia: - 'Cala a boca, besta!'" (p. 48)


Fico pensando no Machado de Assis escrevendo nas décadas de 1860, 1870, 1880 e daí adiante, até que falecesse já no século XX, em 1908, no período político que conhecemos como Primeira República. Machado nasceu em 1839, descendente de avós paternos negros, e no ano seguinte, 1840, começou no Brasil o Segundo Reinado, com D. Pedro II, que governou o país até 1889, com a instalação da Primeira República.

Eu nasci em 1969, ano seguinte ao Ato Institucional nº 5, que recrudesceu a ditadura civil-militar implantada no Brasil com o golpe de 1964 (golpe apoiado pelos EUA e pela elite branca brasileira: a casa-grande). Nessa mesma década de 1960, as pessoas de pele preta ou parda ou as pessoas negras, mestiças e afrodescendentes de várias partes do mundo lutavam por seus direitos humanos, civis, políticos.

Na África do Sul, os negros lutavam contra a lei, contra o apartheid, há décadas. Nelson Mandela e seus companheiros do CNA queriam um país com direitos iguais para todos os cidadãos, independente da cor de suas peles e demais características pessoais. 

Nos EUA, os negros lutavam pelos mesmos direitos pelos quais lutavam os negros sul-africanos. Acreditem, a lei nos Estados Unidos era como a lei do apartheid dos brancos sul-africanos. Havia espaços para brancos e espaços para negros. Só a partir de 1964 que as leis de direitos civis igualaram brancos e negros.

Na década de 1960 meus pais já eram adultos, já estavam casados (casaram-se em agosto de 1965), e o mundo era racista do mesmo jeito que havia sido por séculos. Enquanto se disfarçava o racismo nas mídias dos brancos, nas rádios e TVs e novelas, e nos veículos impressos, no Brasil, nos EUA e na África do Sul negros eram discriminados e não tinham os mesmos direitos que os brancos. 

RACISMO GERA DESIGUALDADE SOCIAL - Preconceito gera discriminação e discriminação gera falta de oportunidades e desigualdade social. O poder e a riqueza do país estavam nas mãos dos brancos nos anos 1960, nas décadas e séculos anteriores e ainda HOJE.

Meus pais adotaram uma menina negra e eu nasci depois dela. O racismo nunca deixou de existir no Brasil dos séculos de colonização e dominação por parte de europeus brancos. Os negros e afrodescendentes são maioria do povo brasileiro e são uma minoria esmagadora na questão dos direitos humanos, civis e políticos. "Minoria" neste caso vem de "menos", ou seja, são maioria da população, mas têm menos direitos em tudo.

Não é fácil olhar para trás e imaginar em flashbacks como deve ter sido uma negra crescendo e vivendo no meio de um monte de brancos pobres, a família pobre brasileira, essa sim toda miscigenada, misturada, fruto dos cinco séculos de colonização do branco macho de fora com as mulheres índias, negras, mestiças que nos pariram. Faz poucos anos que ouvi um familiar dizer que preto tinha que matar pequeno para não virar bandido quando crescesse... (já estávamos no século XXI, juro pra vocês).

No meu caso, sou branco de cabelo "ruim" porque minha mãe é branca de cabelo "ruim". O cabelo "ruim" é como nós ouvimos falar ao longo de nossas vidas nos anos 1960, 1970, 1980, 1990 etc. Em determinado momento de nossas vidas era politicamente incorreto falar as coisas que os brancos da casa-grande e seus meios de comunicação pensavam do povo brasileiro miscigenado. Era. 

Agora voltamos ao passado. Com o golpe e a "ponte para o futuro" voltamos ao passado escravagista. Com as reformas dos golpistas, tucanos, emedebistas e bolsonaristas, voltamos ao passado. Com o novo golpe de Estado, em 2016, com a manipulação do povo através do ódio e do medo, regredimos até os séculos XX e XIX e os outros pra trás. Podem falar as barbaridades que quiserem de novo. Os tempos são de homens Brás Cubas e milhões de prudêncios!

PAI CONTRA MÃE

Um dos últimos textos de Machado de Assis, publicado em 1906 no livro Relíquias de casa velha, foi o conto "Pai contra mãe". O texto é forte! Meus olhos encheram de lágrimas só de pensar nele para escrever neste instante. (ler o conto aqui)

Esse conto, para mim, resume há mais de um século o que nós somos, nós negros, mestiços e brancos pobres, brasileiros, sem posses; nós somos como aqueles personagens do conto, somos como Cândido Neves, Clara, tia Mônica e Arminda.

Esse conto explica nossa gênese, explica meus familiares e conhecidos brancos, negros, mestiços, pobres ou remediados, cheios de ódio contra todos, contra negros, contra os diferentes, contra os outros. Explica por que somos o que somos.

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Isso foi o que refleti nesta manhã de sexta-feira, 27 de agosto de 2021, ao ler alguns capítulos do Memórias, de Machado de Assis, e ao ver um vídeo do site Meteoro Brasil sobre "Por que hospitalidade não é o forte dos EUA", publicado hoje.

William


Bibliografia:


ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. 1ª ed. - São Paulo: Panda Books, 2018.

Ulysses - Gado ao sol (O Hospital)



Refeição Cultural

Nesta quinta-feira fiz a leitura do capítulo 14 de Ulysses. Cara, que leitura difícil! Foi trabalhoso ler as 63 páginas do capítulo. Tive que ler a metade de manhã e a outra metade à noite.

No capítulo anterior, Leopold Bloom estava na praia durante o entardecer. Foi um momento surpreendente na narrativa porque conhecemos o lado obsceno do personagem. Fiz uma postagem com alguns comentários, mas ela tem spoiler do capítulo: ler aqui a postagem.

O capítulo 14 é muito doido. Tem uma linguagem complicada em vários momentos. Tem que ter uma concentração absoluta pra avançar no texto.

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BLOOM NO HOSPITAL APÓS A SEM-VERGONHICE DA PRAIA

"E o viandante Leopold Bloom entrou no castelo por se repousar entrementes mal podendo já aturar o peso dos membros depois de muitas marchas em torno de terras várias e algum goivo venério." (p. 607)

LEMBRANÇAS DA MORTE DO FILHO

"Mas dom Leopoldo era mui mal andante apesar de seu dito porque ainda era teúdo de sentir mercê pela grita formidável das mulheres que davam altas vozes durante o parto e porque lembrava de sua boa senhora dele que tinha nome Marion que lhe dera um único filho homem que no seu dia décimo primeiro na vida havia morrido e nenhum homem de arte podido salvar, tão tristos são os fados." (p. 612)

E ENTÃO CHOVEU EM DUBLIN

"Mas dentro em breve, conforme ficou dito, hoje à noite depois do sol poente, havendo vento estável de Oeste, nuvens plenas de considerável tamanho se fizeram à vista no que a noite escurecia e aqueles versados no clima minuciosamente as estudaram e de início alguns relâmpagos e, depois, passadas as dez horas da noite, uma grande rajada com um longo trovão e num piscar de olhos correm todos em grande confusão para dentro das casas fugindo da tromba dágua enfurecida, os homens fabricando cobertas para seus chapéus de palha com um trapo ou um lenço, as filhas de Eva saltitando com vestidos arrepanhados no momento em que caiu o aguaceiro." (p. 620)

JOYCE TAMBÉM FALA COM LEITORES (sublinhado meu)

"Jamais ele esquecerá o nome, para sempre recordará a noite, primeira noite, a noite nupcial. Estão enroscados na mais funda escuridão, cobiçador e cobiçada, e em um instante (fiat!) a luz inundará o mundo. Saltou um coração para o outro? Não, cara leitora. Em um átimo estava feito mas - calma! Para trás! Não pode ser! Aterrorizada a pobre moça foge através do nevoeiro. Ela é a noiva das trevas, uma filha da noite. Não ousa portar o solar bebê dourado do dia. Não, Leopoldo. Nome e memória te não trazem solaz. A juvenil ilusão de tua força de ti foi tirada e em vão. Filho algum de tuas entranhas é contigo. Não há ninguém que agora seja para Leopoldo o que Leopoldo foi para Rodolfo." (p. 644)

MORREMOS DE DIVERSAS MORTES SEVERINAS

"É interessante porque, como ele pertinentemente observa, nascemos todos da mesma maneira mas todos morremos de maneiras diferentes. O senhor M. Mulligan (Hyg. et Eug. Doc.) culpa as condições sanitárias em que nossos cidadãos de alento gris contraem adenoides, males pulmonares etc. ao inalar as bactérias que se emboscam na poeira..." (p. 651)

POR QUE ALGUMAS CRIANÇAS MORREM?

"Contudo a simples e direta questão de por que uma criança de pais com saúde normal e aparentemente saudável ela também e adequadamente tratada sucumbe incompreensivelmente na tenra infância (conquanto outros filhos do mesmo casamento não sucumbam) deve certamente, nas palavras do poeta, dar o que pensar." (p. 652)

DARWINISMO?

"A natureza, com isso podemos contar, tem suas próprias razões boas e relevantes para o que quer que faça e com toda probabilidade tais mortes são devidas a alguma lei de antecipação pela qual organismos (...) tendem a desaparecer em um estágio cada vez mais precoce do desenvolvimento, uma disposição que, embora produza dores para alguns de nossos sentimentos (destacadamente o maternal), é não obstante, acreditam alguns de nós, a longo prazo benéfica à raça em geral ao garantir de tal maneira a sobrevivência do mais forte." (p. 652)

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ENFIM, vencido mais um capítulo de Ulysses. Ainda faltam quase 500 páginas... sério mesmo! É uma senhora tarefa a leitura desse clássico que dizem que revolucionou a literatura no século vinte.

Leiam, leitoras e leitores. Por mais difícil que seja a leitura de alguns livros clássicos, saímos melhores e diferentes após a aventura.

William


Bibliografia:


JOYCE, James. Ulysses. Tradução de Caetano W. Galindo. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Fulano, conto de Machado de Assis (1884)



Refeição Cultural

"Trinta contos para quê? Para servir de começo a uma subscrição pública destinada a erigir uma estátua a Pedro Álvares Cabral. 'Cabral, diz ali o testamento, não pode ser olvidado dos brasileiros, foi o precursor do nosso império.' Recomenda que a estátua seja de bronze, com quatro medalhões no pedestal, a saber..." (p. 270)


Em meu contato diário com Machado de Assis, hoje li o conto "Fulano", um dos 50 contos escolhidos por John Gledson para o livro 50 contos de Machado de Assis (2007).

O conto foi publicado em 1884, na Gazeta de Notícias do dia 4 de janeiro. Depois ele saiu no livro Histórias sem data

A estória se passa no tempo presente da publicação, o personagem Fulano Beltrão faleceu no dia 2 de janeiro de 1884, com pouco mais de 60 anos de idade, e um narrador vai falar a respeito do falecido enquanto aguarda a abertura do testamento pelas autoridades competentes. 

Machado já é um escritor conceituado e muito conhecido no Brasil e já publicou obras de grande sucesso como Memórias póstumas de Brás Cubas, primeiro em folhetins (1880) e depois em livro (1881).

AMOR DA GLÓRIA, DESEJO DE NOMEADA

Machado explora magistralmente no conto a questão da vaidade e do orgulho. Na postagem que fiz anteriormente sobre os primeiros capítulos do Brás Cubas, citei o "desejo de nomeada" por trás da invenção do emplasto milagroso (ler aqui).

Outra questão em destaque são as referências em eventos ou datas históricas do Brasil. Machado cita personagens da política do Segundo Reinado, dos gabinetes liberal e conservador dos anos de 1860. Cita a Guerra do Paraguai. As notas de John Gledson são importantes para nós leitores nos situarmos no contexto da estória, do enredo.

ESTÁTUA DE PEDRO ÁLVARES CABRAL

A coincidência com os dias atuais ficou por conta da estátua em homenagem ao navegador Pedro Álvares Cabral, incendiada nesta semana no Rio de Janeiro. A estátua está no Largo da Glória e foi inaugurada em 13 de maio de 1900, em referência aos quatrocentos anos da chegada dos portugueses ao Brasil.

Por uma coincidência na leitura de Machado no dia de hoje, 26/8/2021, o conto cita um projeto para a confecção de uma estátua em homenagem a Cabral. Essas coincidências na vida dos leitores de livros são coisas pra lá de interessantes!

O projeto da estátua foi um dos desejos do personagem falecido, Fulano Beltrão, que deixou para isso trinta contos de réis.

A estátua queimada no Rio de Janeiro pode não ser a mesma da discussão interna do conto de Machado, mas o Rio inaugurou uma estátua de Cabral 16 anos depois do conto "Fulano".

Ler é isso! Ler Machado de Assis é assim, um novo conhecimento a cada leitura.

Leiam os clássicos, amigas e amigos leitores! É melhor ler do que não ler os clássicos.

William


Bibliografia:

ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 14ª reimpressão, 2015.


quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Brás Cubas - Frases e ideias selecionadas (I)



Refeição Cultural

Relendo o maravilhoso clássico Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, não tem como não se deliciar com algumas frases e ideias desenvolvidas no romance. 

DEFUNTO AUTOR

- "eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor." (p. 19)

OLHOS ESTÚPIDOS

- "De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção." (p. 20)

DE VOLTA À TERRA

- "esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma." (p. 22)

SEDE DE NOMEADA (VAIDADE)

- "Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: - amor da glória." (p. 24)

ASSUNTOS INTERESSANTES A MORIBUNDOS

- "Era um sujeito, que me visitava todos os dias para falar do câmbio, da colonização e da necessidade de desenvolver a viação férrea; nada mais interessante para um moribundo." (p. 32)

LIÇÃO DE PANDORA

- "Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal." (p. 38)

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COMENTÁRIOS

Machado de Assis é demais! Eis algumas ideias trabalhadas por ele nas frases acima. Qual delas não lida com as grandes questões humanas ainda hoje?

A ideia de produzir um emplasto milagroso (patentear um remédio), que teria como desculpa nobre curar todos os males da humanidade, mas que na verdade tinha como objetivo o afago na vaidade do cara e ganhar muito dinheiro... isso é mais atual que nunca! 

A lição de Pandora ou da "mãe Natureza" nem se fale! Cada um por si e a natureza contra todos.

Os "olhos estúpidos" de Virgília nos lembram os "olhos de ressaca" de Capitu... (em relação a adjetivar tipos de olhares e não no sentido aqui de significar a mesma coisa)

E, por fim, todos nós do mundo digital da internet e das redes sociais seremos autores defuntos. Mas quero ver mesmo é qual de nós será um defunto autor!

William


Bibliografia:

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. 1ª ed. - São Paulo: Panda Books, 2018.


250821 - Diário e reflexões (Carta Capital)



Refeição Cultural - Carta Capital 1169


O GOLPE DE BOLSONARO

A leitura em atraso da edição impressa da revista Carta Capital não altera o efeito das informações que obtive nela, mesmo lendo a revista duas semanas após a publicação.

O inominável no poder, por exemplo, é capa da revista com o tema do golpe de Estado. Na edição, a patifaria dele era com a invenção do voto impresso. O Congresso não aprovou a nhaca e neste momento em que escrevo o canalha articula golpe com sublevações das forças militares e policiais para o 7 de setembro.

Dos artigos na edição, gostei muito do artigo de Aldo Fornazieri "Democracia débil". O eixo de sua argumentação é sobre cultura e valores democráticos. A ideia me fez lembrar muito da forma como exerci mandatos eletivos por 16 anos. 

"Os principais responsáveis pela disseminação de cultura e valores são os grupos dirigentes" (p. 33)

Foi baseado nessa premissa que fiz um mandato na Cassi com 170 agendas de gestão junto às bases sociais que representei por 4 anos. Idem em relação às mais de 650 postagens sobre a área que atuei e sobre o mandato. Eu fiz um vídeo de leitura em voz alta do artigo. Se interessar a leitura, é só clicar aqui.

Na seção "Economia" gostei muito da matéria "A economia e a armadilha das redes", de Gabriel Galípolo e Luiz Gonzaga Belluzo. A chamada do texto diz: "MÍDIAS SOCIAIS - Influenciável e crédula, a massa não conhece nem a dúvida nem a incerteza, vai logo ao extremo".

A matéria é profunda! Cita a ideia de McLuhan "O meio é a mensagem" e esclarece muito o que estamos vivendo no momento da história da sociedade humana.

MESMO EFEITO DA COCAÍNA - "Uma pesquisa realizada pela Universidade do Estado da Califórnia mostrou que o mesmo sistema acionado pela cocaína é observado em usuários dependentes do Facebook." (p. 42)

MASSA INFLUENCIÁVEL E CRÉDULA - "A massa é extraordinariamente influenciável e crédula; é desprovida de crítica; para ela o improvável não existe. Ela pensa por imagens que se evocam associativamente umas às outras, tal como ocorre ao indivíduo nos estados do livre fantasiar, e nenhuma instância razoável afere sua correspondência com a realidade. Os sentimentos da massa são sempre muito simples e muito exagerados. Assim a massa não conhece nem a dúvida nem a incerteza. Ela vai logo ao extremo; a suspeita manifestada logo se transforma em certeza irrefutável, um germe de antipatia se transforma em ódio selvagem..." (p. 43)

Por fim, na seção "Nosso Mundo", fiquei sabendo que o povo do Líbano está na pior um ano após aquela explosão pavorosa que destruiu parte da cidade de Beirute. Que tragédia! Estão sem governo, a corrupção corre solta, o povo está sem recursos básicos e muitos se lançam ao Mediterrâneo para buscar um lugar pra viver. 

É isso! Me dá uma certa preguiça ler a revista de cabo a rabo, mas estou me esforçando para ler as edições de Carta Capital. A prática da leitura de textos desse gênero é importante para nosso cérebro. Podem acreditar nisso que estou dizendo. Salvem suas inteligências e seus neurônios com leituras de fôlego e não fiquem só em memes, títulos e chamadas de notícias e textos curtos e rápidos.

William


terça-feira, 24 de agosto de 2021

Diários com Machado de Assis (I)


Machado de Assis, em 1904.

Refeição Cultural

Decidi manter contato diário com Machado de Assis, nem que seja por minutos, lendo uma frase de um livro, conto, crônica, seja por ler ou ver algo a respeito de Machado. 

Farei um esforço em tornar sua presença um hábito em minha vida, assim como nos alimentamos para viver. Já li todos os seus romances e dezenas de contos seus, mas é pouco. Machado é um mundo a descobrir.

Se possível, também farei registros no blog porque escrever e registrar a vida, o mundo, as coisas, os sentimentos, os acontecimentos, são ações que têm relação com o que foi a vida de um de nossos maiores escritores.

Machado de Assis é um brasileiro. O Brasil não legou ao mundo só o que há de pior como Jair Bolsonaro e os bolsonaristas. O Brasil legou ao mundo um patrimônio cultural inestimável através de pessoas como Machado de Assis e diversas outras figuras das mais diversas áreas da dimensão humana.

Machado foi um brasileiro negro, neto de escravos alforriados por parte de pai, tinha epilepsia, era um pouco gago, perdeu a mãe aos dez anos de idade, trabalhou desde moleque para sobreviver, nasceu em 1839, cresceu e viveu toda a sua vida no Rio de Janeiro imperial e republicano e morreu em 1908. Foi casado com Carolina Augusta*, que morreu em 1904 e não tiveram filhos. Machado foi um brasileiro. Foi um grande brasileiro.

Eu tenho muito material em casa sobre Machado de Assis, eu já gostava dele antes de fazer faculdade de Letras, mas a oportunidade de estudar na FFLCH/USP me permitiu adquirir muita coisa sobre o escritor. Preciso conhecer o que tenho sobre ele. A vida é um instante, ainda mais agora com a pandemia de Covid, ainda mais agora com o Brasil se desfazendo após o golpe de Estado que nos levou ao domínio do mal e do crime organizado. Viver se tornou algo muito mais incerto que antes do golpe, viver ficou muito mais perigoso.

Eu tenho muitos objetivos literários e não quero abandonar minha rotina de ler os livros que sonho ler. Mas sei que é possível incluir um contato diário com Machado de Assis na minha rotina de vida. Qualquer pessoa pode fazer isso, definir algo e empreender em sua vida, basta ter disciplina, porque disciplina é liberdade, de verdade, isso não é somente uma frase de efeito. Foi através da disciplina que contribuí para as lutas da classe trabalhadora por duas décadas.

Penso que o contato com Machado de Assis, um brasileiro que nos dá orgulho, pode nos dar um suporte um pouco melhor para resistir à tortura diária que sofremos desde o golpe de 2016, porque os golpistas têm a tortura como método para nos derrotar e destruir. Temer primeiro e agora Bolsonaro são instrumentos de tortura da casa-grande brasileira, dos capitalistas escravocratas. Bolsonaro é fruto de tudo isso que o povo brasileiro enfrenta há séculos. Agora só está pior porque ele é um dos piores seres humanos que já pisou esse solo pátrio.

Machado de Assis é um exemplo de que a vida pode ser diferente. Hoje de manhã já tive meu contato com o bruxo do Cosme Velho, bruxo porque ele faz mágica com as palavras e Cosme Velho por ser onde ele nasceu, no Rio de Janeiro.

É isso, vamos manter contato diário com Machado de Assis. É sempre melhor ler do que não ler os clássicos e Machado é um clássico!

William

*Post Scriptum: John Gledson, no livro 50 contos de Machado de Assis, diz que Machado foi casado com "Carolina Xavier de Novaes" e Fátima Mesquita nos textos informativos do livro Memórias póstumas de Brás Cubas a chama de "Carolina Augusta Xavier de Novais".


domingo, 22 de agosto de 2021

Ulysses - Nausícaa (As Pedras)



Refeição Cultural

No sábado à noite, retomei a leitura de Ulysses. Meu hábito é ler pela manhã, mas como não foi possível, mudei a rotina de leitura. Li até umas duas horas da manhã, mas o sono me pegou no final e ficaram faltando umas dez páginas para terminar o capítulo, que deixei para o dia seguinte. 

Posso dizer que o capítulo foi um dos mais "extravagantes" até agora. Eu imagino a recepção dos leitores e da crítica daquela época em relação aos usos e costumes vigentes nos anos vinte do século XX, num mundo conservador e orientado por crenças religiosas.

O capítulo 13 traz como referência ao clássico Odisseia a personagem Nausícaa, a filha de Alcínoo e Arete, reis dos Feácios. Na odisseia homérica, a jovem princesa está com suas criadas na praia quando é surpreendida por Ulisses, que havia naufragado ali, vindo de sua longa permanência na ilha de Calipso. Nausícaa ajuda o herói, levando-o até seus pais no palácio real.

Na leitura do capítulo, vamos entender por que Joyce fez referência a Nausícaa e Ulisses (Odisseu), o nosso Leopolp Bloom irlandês.

Atenção: informo que o comentário abaixo terá spoiler do capítulo.

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JOYCE ME SURPREENDEU

O capítulo começa com moças e crianças brincando na praia ao anoitecer.

"Gerty MacDowell, que estava sentada junto de suas companheiras, absorta em seus pensamentos, olhar perdido longe na distância, era com toda a justiça o mais belo espécime da cativante feminilidade irlandesa que se pode desejar. Era declarada linda por todos que a conheciam muito embora..." (p. 553)

Joyce mescla no capítulo muita alternância de narrador. Ora é o narrador onisciente que descreve personagens e seus sentimentos, ora é o fluxo de consciência dos personagens que nos deixam ver o que eles pensam.

A jovem Gerty pensa na vida, no rapaz com quem flerta e gostaria de namorar, pensa nas decepções, sonha com amores e com o futuro na companhia de um grande amor, talvez alguém mais maduro e viril que um jovem na idade dela.

"Seu ideal de admirador não era algum príncipe encantado que depusesse um raro e fantástico amor a seus pés mas sim um homem viril com um rosto forte e tranquilo que não houvesse encontrado o seu ideal, talvez com os cabelos levemente marcados por fios grisalhos, e que a compreenderia, tomá-la-ia em seus braços protetores, a apertaria contra si com toda a força de sua profunda natureza passional para consolá-la com um beijo bem comprido. Seria o paraíso. Por alguém assim ela suspira neste ameno crepúsculo de verão." (p. 558)

Nas lembranças da jovem Gerty, o autor nos fala de novo sobre a "praga da Irlanda", a bebida alcoólica, e a jovem se lamenta pelo fato do pai não ter conseguido superar o vício do álcool. Ela se lembra inclusive das violências domésticas que sua mãe sofria. (p. 562)

Na cena da praia há um homem sentado adiante. Durante todo o tempo em que as moças e as crianças estão lá, ele também está. Com o passar do tempo, vemos que a jovem está flertando ou se mostrando para o homem, que é bem mais velho que ela. A jovem Gerty sonha longe, imagina o cara sendo o herói viril que a salvaria de seu mundo.

A cena retrata a referência à personagem Nausícaa e o herói Ulisses. Só que Joyce faz de seu personagem o oposto do de Homero, seu herói é um anti-herói, cheio de vícios humanos e sem nobreza alguma.

"Ele olhava com tamanha intensidade, tão imóvel e ele a viu chutar a bola e talvez pudesse ver as brilhantes fivelas de aço de seus sapatos se ela os balançasse assim pensativa com os dedos apontando pra baixo (...) Ele era o que importava e havia alegria em seu rosto porque o desejava por ter instintivamente sentido que ele era diferente de todos. O coração da meninamoça corria todo para ele, seu marido ideal, porque ela soube de pronto que era ele..." (p. 567)

E ao final de toda a cena entre a "meninamoça" e o homem "viril" na praia, a surpresa para o leitor:

"(...) Ah! Ela lançou-lhe um olhar no que se dobrou rápida para a frente, um patético olharzinho de protesto pio, de tímida censura sob o qual ele corou como uma moça. Ele estava recostado à rocha atrás de si. Leopold Bloom (pois é ele) está calado, de cabeça baixa, diante desses jovens olhos cândidos. Mas que monstro havia sido! De novo com isso! Uma alma pura imaculada o havia invocado e, desgraçado que era, como respondera? Um completo canalha! Logo ele! Mas havia um infinito sortimento de misericórdia naqueles olhos, também para ele uma palavra de perdão mesmo tendo ele errado, pecado e se extraviado. As mocinhas têm de contar? Não, mil vezes não. Era o segredinho deles, só deles, sós no crepúsculo ocultante e não havia quem soubesse ou contasse senão pelo pequeno morcego que voava tão delicado pelo entardecer para lá e para cá e morceguinho não fala." (p. 579)

A SURPRESA MAIOR DO CAPÍTULO

Instantes depois da cena obscena anterior, do "viril" adulto Leopold Bloom se satisfazendo atrás da rocha ao flertar com a "meninamoça" Gerty, vem a surpresa maior: Joyce nos conta que a jovem na praia é "coxa" e o pior é o comportamento de Bloom ao perceber isso: 

"(...) Ela caminhava com certa dignidade tranquila característica sua mas com cuidado e muito lentamente porque Gerty MacDowell era...

Bota apertada? Não. Ela é coxa! Oh!

O Senhor Bloom ficou olhando enquanto ela saía coxeando. Coitadinha! Por isso que ela ficou largada e as outras saíram correndo. Achei que tinha alguma coisa errada pelo jeito dela. A bela desprezada. Um defeito é dez vezes pior em uma mulher. Mas ficam educadas. Que bom que eu não sabia quando ela estava se exibindo. Diabinha assanhada mesmo assim. Não ia me importar. Curiosidade como uma freira ou uma negra ou uma moça de óculos. Aquela de olhinho apertado é delicada. Perto das regras, imagino, ficam todas sensíveis." (p. 580)

O BLOOM É O NOSSO BRÁS CUBAS

Cara, Machado nos apresentou um personagem o mais canalha possível, típico representante das elites coloniais do século XIX, meio século antes de Joyce nos apresentar o Bloom, que veremos ainda no mesmo capítulo ser um canalha de marca maior, que tem fetiches por meninas e jovenzinhas (p. 593). O personagem de Joyce é o Humbert Humbert, de Vladimir Nabokov (Lolita, de 1955).

A Eugênia de Brás Cubas

"O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma." (ASSIS, 2018, p. 109)

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COMENTÁRIO FINAL

É isso! Mais um capítulo do clássico de Joyce. Minha releitura está sendo infinitamente melhor que a primeira leitura, feita duas décadas atrás.

Amig@s leitores, imaginem o quanto o nosso Machado de Assis foi inovador, revolucionário com sua obra literária. Nosso Bruxo do Cosme Velho é um dos maiores escritores da literatura mundial. Seu alcance nunca foi maior por ser ele um autor de língua portuguesa, de um país colonial.

Confesso a vocês que esta postagem deu trabalho! Gastei um bom tempo para produzir o texto como queria.

No entanto, estive pensando a respeito das mais de duas mil postagens que tenho neste blog: elas têm que ser bem-feitas! Caso contrário, não teriam sentido. 

Diariamente, algumas dezenas de pessoas chegam aos meus textos procurando alguma informação ou conhecimento. Fazer textos bem-feitos e compartilhar conhecimento ou opiniões é uma questão de respeito com os leitores e com a verdade.

Abraços,

William


Bibliografia:

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. 1ª ed. São Paulo: Panda Books, 2018.

JOYCE, James. Ulysses. Tradução de Caetano W. Galindo. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.


sábado, 21 de agosto de 2021

210821 - Diário e reflexões



Refeição Cultural

Temos que preservar a produção intelectual de pessoas como Machado de Assis e José Genoino


- Comecei a leitura de meu presente de Dia dos Pais. Ganhei de meu filho um HQ belíssimo - Superman: entre a foice e o martelo. A premissa da estória é a seguinte: ao invés do garoto extraterrestre ter caído nos Estados Unidos e ter sido criado por aquele casal de fazendeiros que conhecemos na ficção, Superman foi criado pelos soviéticos, em uma fazenda de trabalhos coletivos. Interessante, né? Já li alguns HQ e partes de mangás, mas meu cérebro cinquentão é mais acostumado com livros e revistas. Então a leitura é uma novidade para mim.

- Após ouvir uma excelente entrevista de José Genoino (PT), uma aula de Brasil, de história das lutas dos povos, onde ele apresenta seus conhecimentos sobre tudo que tem estudado sobre a questão dos militares no Brasil, fiquei pensando novamente a respeito de nossas chances para derrotar o capitalismo e nossos inimigos. As chances são muito muito pequenas, são remotas. Todo aquele conhecimento que vi no vídeo foi visualizado por 83 pessoas (talvez assistido até o fim por umas dez). Oitenta e três pessoas! Um vídeo de fake news dos propagadores do regime bolsonarista tem milhões de visualizações. Milhões. São ínfimas nossas chances de salvar o mundo e as formas de vida da destruição causada por esses donos do poder.

- No dia que a Cinemateca pegou fogo aqui em São Paulo, fiquei pensando um monte de coisas. Lembrei de tudo que já queimou após a ascensão do regime do mal, da milícia bolsonarista. Os incêndios na Amazônia e no Pantanal são simbólicos. Fogo, fogo, incêndio, incineração. Bolsonaro foi colocado no poder pela elite brasileira criminosa, pela casa-grande, para destruir tudo, para desfazer, queimar tudo: patrimônio público, direitos sociais, a cultura e a história, as vidas do povo miserável. Pensei na história da humanidade. O fogo fez parte da história do homo sapiens. A gente sempre destruiu e queimou tudo. Nossa história é uma história de guerras, de aniquilação dos outros, de aniquilação da cultura e história dos derrotados. O que conhecemos são fragmentos, são versões ou invenções. Narrativas sobre algo se inventam em minutos... a pós-verdade se encarrega do restante. Aquele que detém poder de comunicação, prevalecerá!

- O Genoino visto por 83 pessoas é algo simbólico para se pensar o futuro (me lembrei que Machado de Assis escrevia no século XIX para pouquíssimos alfabetizados no Brasil. E desses, quantos liam Machado? Alguns, provavelmente). Um lixo bolsonarista visto por milhões de pessoas é um fato, é algo real e material. Um vídeo-palestra de mestres de universidades visto por algumas centenas de pessoas ou nem isso é um fato também. O que se desenha para o futuro, para o amanhã? A teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin, explicou como as formas de vida foram se estabelecendo e se perpetuando ao longo do tempo: por seleção natural, indivíduos com características mais vantajosas de sobrevivência nos ambientes tendem a sobreviver e deixar descendentes. O que vai prevalecer deste mundo atual? O quê?

Chega por enquanto.

Sábado de sol. Sábado de pouca umidade no ar. Sábado de pandemia mundial de Covid-19. Sábado com os reservatórios de água secando sem reposição. Provavelmente sábado com poucos leitores de livros e muitos visualizadores de fake news negando a realidade e manipulando milhões de homo sapiens por aí. Sábado de sol e fome, muita fome e miséria de milhões de pessoas sem nada. Vai dar praia mesmo assim...

William

Post Scriptum: apesar de tudo isso que disse acima, como foi importante Machado de Assis ter escrito, publicado e terem preservado tudo que ele produziu para nós, humanidade! Mas sua obra foi preservada em papel (que resistiu aos fogos e incêndios). A gente pega na mão, não precisa de energia elétrica ou bateria, nem de um aparelho para ler. Se estivesse em material virtual será que teria chegado até nós o que ele criou? Se estivermos por semanas num apagão, ou no meio de uma guerra civil, será que teremos as ferramentas necessárias para acessar os materiais que só estejam no mundo virtual? Quem guarda o mundo virtual? Quem garante a manutenção de uma página de um site ou do YouTube? Ninguém! É impossível garantir isso porque são empresas privadas. Não somos nada para enfrentar as big techs! Nada!


sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Espumas flutuantes - Castro Alves



Refeição Cultural

"Por isso na impaciência
Desta sede de saber,
Como as aves do deserto -
As almas buscam beber...
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe - que faz a palma,
É chuva - que faz o mar.
" ("O livro e a América", Castro Alves)


Finalizada a leitura do livro Espumas flutuantes, do poeta Castro Alves, posso dizer ao menos que conheço a poética desse escritor brasileiro. O poeta morreu jovem, aos 24 anos, em 1871.

A leitura foi feita em voz alta. Li os 55 textos assim, incluindo o "Prólogo" e a "Dedicatória". Adotei o método de ler cinco poemas por dia como havia feito antes com A rosa do povo, de Drummond. É uma leitura exigente e que exige disciplina.

Posso e devo ser sincero ao falar dos poemas de Castro Alves e digo que os poemas reunidos em Espumas flutuantes não me agradaram muito. Meu estilo de poemas é outro, de outras poéticas e outras épocas. Isso não quer dizer que eu não valorize a obra e o poeta, só não é o tipo de poesia que gosto.

O autor trabalha muito com a temática do amor e da morte. Acho positivo o fato de o amor, presente em suas poesias, não ser platônico e sim de carne e osso. Ele realmente amou e esteve com as mulheres, é o que dizem as informações sobre ele. 

E sobre a morte idem, ele viveu a expectativa da morte iminente porque tinha tuberculose e para piorar deu um tiro acidental no pé, fato que lhe abreviou mais ainda a vida. Quando reuniu os poemas deste livro, já sabia que não viveria muito.

Como acredito que ler é melhor que não ler um livro e um autor, conheci poemas interessantes de Castro Alves. Inclusive, tive a oportunidade de conhecer sua obra mais famosa, que não consta desse livro. Li "O navio negreiro" e realmente a temática é pra lá de importante para a época e ainda hoje.

Talvez o momento que vivemos não tenha contribuído para que eu tivesse mais prazer na leitura de Castro Alves. Ler em 2021 poemas líricos falando de amor e Deus em uma época na qual o amor quase que morreu e a religião é um dos instrumentos de manipulação e idiotização de milhões de pessoas é uma tarefa difícil. A gente acaba lendo já com certa birra...

Enfim, sigo lendo e preenchendo minhas lacunas culturais. Se estou com o coração empedernido e sem esperança alguma num amanhã melhor para os seres vivos porque não acredito que a maioria de humanos vá derrotar a minoria capitalista, imaginem se eu não lesse e buscasse conhecimento novo como estaria. É muito provável que eu fosse um boçal bárbaro bolsonarista.

Viva a leitura de autores e obras clássicas, viva a educação libertadora e a formação política emancipadora! 

(Quero distância de mitos e de quem idolatra mitos, para mim basta conhecê-los, sejam eles os clássicos, que buscam explicar o mundo, ou os mitos falsos como o troglodita no poder em nosso país).

William


Bibliografia:

ALVES, Castro. Espumas Flutuantes. O Estado de São Paulo/Klick Editora, 1997.