domingo, 28 de abril de 2024

Leitura: Canção para ninar menino grande - Conceição Evaristo



Refeição Cultural

Osasco, 28 de abril de 2024. Domingo.


Um livro que fala de amor. Das vivências e dos amores. Escrevivências... como nos explica Conceição Evaristo ao nos presentear com textos de vivência e criação, vivência e escrita. Vivências pessoais que de certa forma representam a coletividade.

Tem dias que escrevo com dificuldades, dias ou momentos nos quais a vontade era calar, silenciar, não registrar nada. Mas neste momento do viver, minha missão autoimposta é exercer um pouco da escrevivência que a intelectual nos ensina a fazer. Às vezes, o pessoal pode ser da dimensão universal.

A leitura desta obra de Evaristo se deu em contextos difíceis. A primeira metade do livro li na estrada, em um ônibus. Estava levando meu pai de Uberlândia a São Paulo para atender a um desejo dele. Tive uns dias complexos... Meu foco de atenção era ele, a leitura era a distração, a tentativa de abstração do contexto. Não foi uma leitura ideal. Até porque a temática era o amor de outra categoria, não o filial.

A segunda metade da leitura se deu num momento um pouco melhor do que o primeiro tempo de contato com a viagem nos amores de Fio Jasmim e das mulheres que amaram Fio Jasmim. Revi as 75 páginas lidas no início do mês e terminei o romance três semanas depois. 

A história de cada personagem feminina me fazia sentir-me em casa ao me colocar no mundo de cada uma delas, um mundo ao mesmo tempo ficcional e verdadeiro, cenário da realidade concreta de cada cidadezinha desse nosso Brasil de misérias e miseráveis. Vi no personagem Fio Jasmim até o comportamento de pessoa conhecida. Escrevivências.

Um livro de brasileiras e brasileiros, de uma brasileiríssima escritora, com histórias e vivências ao mesmo tempo únicas e coletivas, reais e ficcionais,  universais. 

Livro para ler e ler e reler, assim como todos os livros de Conceição Evaristo.

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MULHERES QUE AMAM

Tina (Juventina), Aurora, Antonieta, Dolores, Dalva, Neide, Pérola Maria, Angelina, Eleonora...

Pérola Maria, de Chegada Feliz...

Neide Paranhos, do Vale dos Laranjais... o príncipe negro e sua princesa.

Aurora Correa Liberto, de Vila Azul... tomava banho sem roupa nas águas do Rio Naipã. Tinha a moleira aberta e por isso era sem juízo.

Antonieta Véritas da Silva, de Remanso Velho... a do corpo maravilha.

Dolores dos Santos, de Ardência Antiga... (que história de família!). Felizmente, as mulheres da família tinham a avó dona Hermengarda...

Dalva Amorato, de Águas Infindas... com dois filhos, Dalva Ruiva deixou marido ausente e ex-patroa tia dele e foi atrás de seus sonhos.

Juventina Maria Perpétua, de 17 anos, foi pra Chegada Feliz... foi ser a "Virgem de Ébano".

E temos ainda Eleonora Distinta de Sá... ela e Fio Jasmim, que serão cúmplices na amizade, nos lamentos e na solidão.

Que vivências! 

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Momentos marcantes...

GENTE SEM JUÍZO

"(...) Aurora pensou que podia ter sido um engano tátil, de uma sensibilidade excessiva das mãos. Sorrindo, então, ela pegou a mão do moço bonito e lhe pediu que ele tocasse o alto da cabeça dela. Ele assim o fez. E, ao sentir o quase imperceptível e macio afundamento da cabeça dela, Jasmim riu e riu. Ela também! Descobriram-se. Tinham a moleira aberta, eram ambos sem juízo." (p. 47)

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SOLIDÃO

"Com a morte da mãe, Dolores experimentou não só a certeza de estar só no mundo, pois não tinha mais nenhum parente sanguíneo, como teve certeza de sua solidão. Com quem repartir a amargura que estava sentindo naquele momento? Com quem falar? A quem chamar para dividir a dor? Seria a dor algo que se pode dividir, assim como se reparte a alegria? Dolores se lembrou das alegrias vividas às escondidas entre ela, a mãe e a avó, sem que o velho Belizário soubesse. Recordou-se das lágrimas vertidas juntas, a mãe e ela, quando a avó Hermengarda se foi. E também do desejo vivido das duas, brigando com a morte, pois ela deveria ter levado o avô e não a avó. E agora com quem dividir essa dor? Por entre lágrimas viu a pessoa de Sô Damião, empregado antigo da casa, soluçando feito criança, ao perceber que sua patroa, mulher tão sofrida pelo desprezo do pai, tinha ido. Dolores teve desejo de abraçar sua dor à dor de Sô Damião, mas se conteve. E viveu a sua angústia, sozinha." (p. 63)

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A VINGANÇA QUE VIROU PRUDÊNCIA (CONSCIÊNCIA E SOLIDARIEDADE NO UNIVERSO FEMININO)

"E de repente seu ódio contra Fio Jasmim se transformou em prudência, em juízo, em consciência. Buscou no fundo de sua bolsa de viagem a foto e pela primeira vez viu os detalhes. Pérola Maria, cercada das crianças, tinha uma expressão serena. Contemplou profundamente a foto e, no lugar de Pérola, outras mulheres apareciam: vó Hermengarda; mãe Maria da Cruz; a velha Clementina, tia do Sô Damião; Santina, a mulher que morava lá na entrada de Nova Ardência; Cleide do Vicente, uma antiga colega de escola; Joana, a mãe que cuidava das quatro meninas sozinha; Laurinda, a que noivara aos dezoito anos de Ovídio, o noivo que nunca marcava a data do casamento; e outras e outras. Cada uma aparecia ora com um rosto pleno de alegria, ora não só com o rosto, mas com o corpo debulhado em lágrimas. Ora independentes de seus homens, ora puxadas pela mão por eles, ora brutalmente empurradas. Ora deitadas, ora em pé. Ora alisando as crias, ora as enforcando. Uma gama de mulheres, um universo feminino em ebulição, mesmo quando aparentemente estático." (p. 75)

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PERSPECTIVAS: NA LUTA PELOS SONHOS, CADA UM TRABALHA VENDENDO O PREDICADO QUE TEM

"Novamente organizou uma planilha de gasto: aluguel da casa, pagamento de escola e de acompanhante para as crianças, despesas alimentares, etc. E ainda, ou principalmente, custear seus estudos, os preliminares e depois o curso de Farmácia. A solução veio rápida, sem dúvida, sem constrangimento algum. Ia trabalhar vendendo o seu corpo. Sexo. Se fosse cantora, venderia a voz; se fosse bailarina, venderia o corpo no movimento da arte de dançar; se fosse professora, venderia a sua capacidade, a sua didática, o conteúdo aprendido, para ensinar; se fosse médica, a sua capacidade de cuidar, de curar, de orientar na procura e na conservação da saúde; se fosse cozinheira, o seu dom de cozinhar. Não tinha nenhum desses predicados e talvez esses tomassem mais tempo para aprender. E para Dalva Ruiva se tratava de correr contra o tempo, ou melhor, agarrar um tempo que ficou vazio, sem movimento algum para a realização de seus sonhos. E sem qualquer acanhamento ou dúvida, Dalva Ruiva tomou informações de como agir..." (p. 84)

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PERSPECTIVAS E ACULTURAMENTOS: APRENDEU QUE SER HOMEM ERA TER VÁRIAS MULHERES

"(...) fora concebido em uma menina de quinze anos, quando o homem já beirava os seus quase sessenta. Fio cresceu ouvindo as proezas do pai. Aprendera com ele que ser homem era ter várias mulheres..." (p. 93)

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"O pai de Jasmim, homem já maduro, cuja flor já não gozava de haste tão rija, sorria feliz ouvindo as histórias do filho. Na escuta dos jactados encontros de Jasmim com as mulheres, o pai, saudoso das façanhas do passado, se reconhecia na virilidade do filho. Ficava imaginando mulheres oferecidas diante dele a brincar desejantes e carinhosas com seu ereto lírio negro. Bem se vê que a lição que Fio Jasmim tivera em casa estava sendo muito bem aproveitada." (p. 94)

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MULHERES FILHAS DE MULHERES, SÓ

"(...) Com a mãe dela havia sido assim. O pai de sua irmã mais velha agira dessa forma. Ela, a segunda filha, sabia somente que um outro homem, seu pai, também não ficara, tinha partido antes mesmo de ela nascer. Do pai, Tina mal sabia o apelido. As suas duas outras irmãs, as mais novas, os pais eram homens também desconhecidos para elas. A mãe de Tina, Alda Jovelina, parecia querer devolver com a mesma intensidade o desprezo a ela e às suas filhas. O nome do pai nunca era dito. Só o da mãe. Pai era uma imagem vazia. Durante muito tempo, época ainda da infância de Tina, só a mãe e as tias lhe bastavam para a sua vida-menina..." (p. 100)

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HOMENS NÃO CHORAM?

"(...) E, como proprietário de uma extensa gleba, o homem ali tinha o dever de dominar as mulheres, de alguma forma. E mais, tinha ainda de desafiar e causar inveja a outros machos. Não sendo de bom tom o derramamento das dores do macho - assim pensava Fio Jasmim -, por isso ele calou qualquer sintoma de mortificação em sua vida. Pouco importava a dolorida lembrança de ter sido preterido pelo coleguinha branco para representar um príncipe. Era preciso esquecer essa lembrança, negá-la sempre. Só as fêmeas podem dar vazão às suas agonias, às suas aflições, das menores às maiores. E, por isso, sempre os olhos secos de Fio Jasmim diante da morte e da vida..." (p. 129)

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CONVITE À LEITURA

E o final das histórias, eu deixo a descoberta para vocês leitoras e leitores...

Obrigado por compartilhar conosco essa maravilha, querida Conceição Evaristo!

Até hoje me recordo de nossas horas conversando no voo entre Panamá e Havana, Cuba, em 15 de fevereiro deste ano. Foi muito legal conhecê-la, e um orgulho porque sou seu admirador e fã.

William


Bibliografia:

EVARISTO, Conceição. Canção para ninar menino grande. 2. ed. - Rio de Janeiro: Pallas, 2022.


Diário e reflexões



Refeição Cultural

Osasco, 28 de abril de 2024. Domingo.


O registro será confessional, texto que aborda sentimentos e acontecimentos pessoais, coisas que deveriam sempre ser guardadas para si, mas que as pessoas acabam publicizando por sermos o que somos, humanos, animais vaidosos (mas que clamam também), que contam coisas, que não aguentam segredos.

Noites mal dormidas as últimas. Acordei quebrado, com dores nas costas. Dores. Coisa que nas idades anteriores nem sabia o que era. Coisas, não coisa. As dores são no plural. Se prestar atenção, tem dor em vários pontos do corpo. E eu nem tenho a idade de meus pais, esses sim devem sentir dores. Meu pai fala das dele há mais de uma década. Vai saber o quanto delas transformou ele no que é hoje.

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CONCEITO DE CANSAÇO

Ao acordar, tive que ligar o chuveiro e ficar embaixo da água morna para reviver e então viver o dia de domingo. Se tentar interpretar o sonho que vivenciava ao acordar, talvez compreenda um pouco do cansaço que senti ontem à noite. Senti um treco horrível ao perceber ser responsável pela mágoa de alguém.

Antes de ter sido diretor eleito em uma autogestão em saúde, o conceito de cansaço que trazia em meu corpo e em minha imaginação conceitual era o cansaço de Louis Creed após voltar da floresta onde enterrou o gato Church, no livro O Cemitério, de Stephen King. A cena dele chegando todo enlameado e exausto e caindo na cama marcou aquele leitor adolescente e nunca mais tive uma referência melhor do que era um cansaço extremo.

Isso mudou por volta dos quarenta e cinco anos de idade. Após décadas de conceito de cansaço referenciado a partir de uma cena literária de um livro de suspense, meu corpo e minha mente fixaram um novo conceito de cansaço. Desde os primeiros meses na gestão da operadora na qual atuava como representante de centenas de milhares de participantes, com a responsabilidade de defender os direitos em saúde deles, já experimentava na minha solidão do acordar um cansaço que só conseguia superar ficando um tempo embaixo do chuveiro do apartamento onde morava em Brasília.

Tem dias que sinto por algum tempo (que deve ser superado logo) um cansaço tão profundo como aquele que descrevi acima. Ele quase te paralisa, te impede de viver. É preciso acionar suas energias internas guardadas na razão consciente do que você é e chacoalhar aquela coisa mortal e seguir adiante. Afinal de contas, viver é uma oportunidade diária.

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AS DORES DOS AMORES

Ontem, estava escrevendo um comentário sobre a leitura do livro de Conceição Evaristo sobre os amores sem juízo, interpreto assim a temática central do livro Canção para ninar menino grande. O personagem Fio Jasmim tem a moleira aberta e por isso é um homem sem juízo. O livro é sobre amor. Amores. Histórias reais e ficcionais sobre vivências de amores sem nenhuma racionalidade ou cálculo ou consequência. Escrevivências como a autora nos conta de sua técnica narrativa.

Numa troca de palavras, ouço de minha companheira que eu ando isso e aquilo, cotidianidades dos lares, e me toco que a magoei bastante por não ter escrito nada a ela na data de seu aniversário. Não tive o que dizer. Foda isso. Ando isso e aquilo mesmo. Desculpas como as duas semanas que passei cuidando das questões de saúde de meus pais não servem para nada. Nada. É horrível ser responsável por dissabores de alguém, ainda mais de pessoas queridas e próximas a nós. Certas coisas não têm conserto. Feitas estão.

Fiquei tão mal pela percepção do feito que minha energia se dissipou. A bateria arriou. Deixei de lado o texto sobre os amores e os dissabores dos amores e fiquei procurando cantos até que acordei quebrado no dia de hoje.

O mês de abril vai terminando. Iniciei o mês nas tretas com meu pai, ele insistindo em renovar a carta de motorista vencida há tempos do jeito que ele achava que tinha que ser. O cara não escuta ninguém pra nada. Todas as sugestões racionais são nada. Nonada. Ajudei ele a fazer as coisas do jeito dele. Foi foda. Só uns poucos pra saber o que foram esses dias. Foram uma merda! Nesse intervalo de tempo, minha irmã pegou dengue, minha sobrinha pequena pneumonia, depois minha mãe pneumonia, a crise que meu pai teve precisa ser investigada para saber se ele tem algo mais sério, alguma senilidade dos oitenta adiante. Eu andei uns dias meio foda também. 

Enfim, o mês dos amores e das dores vai terminando.

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TÁ FODA, MAS A LUTA CONTINUA

Um músico negro chama a polícia após ser ameaçado com uma faca, dois policiais desgraçados do governo fascista de São Paulo chegam para atender a ocorrência, apertam o pescoço do músico - a vítima -, imobilizam ele e jogam gás de pimenta nos olhos dele a troco de nada... (racionalmente, afirmo para mim mesmo que se isso acontecesse comigo eu reagiria e morreria, pois a polícia do governo paulista é assassina e o governador carioca disse que se dane isso).

Um outro rapaz negro é filmado sendo abordado em São Paulo por dois policiais do governo fascista e o rapaz já vai levantando a mão. Sem trocar palavras e sem reação alguma do abordado, os policiais começam a bater nele com cassetetes e o rapaz instintivamente se defende e reage. Os policiais o agridem com violência, um deles saca a arma e o executa a queima roupa e a sangue frio. Como disse acima, eu morreria também.

Quer dizer, nos dois casos citados, talvez eu não morreria porque minha pele é branca e as cenas reais não se dariam. A chance de fazerem isso comigo seria menor porque é crime ser preto no Brasil, e é pena de morte ser preto e pobre, periférico. Sou privilegiado por causa da cor da minha pele. O Brasil é o país dos privilegiados e dos condenados sem crimes.

Vivo no país dos desgraçados. Temos os desgraçados que não alcançam graça porque são periféricos, pobres, pretos, gente subgente. Gente que pertence às bases da pirâmide social. Gente que vai ser presa e morta e descartada por todo tipo de bandido, os bandidos bandidos e os bandidos fardados. Sem defesa, sem julgamento. E as receitas de desgraças só aumentam. Agora prender periféricos vai dar lucro em cadeias privadas, os periféricos que serão presos por um baseado de maconha. Por uma barra de chocolate. Por "desacato".

E temos os desgraçados desgraçados mesmo, gente má, gente escrota. Os desgraçados que podem matar por andarem em Porsche a 156 Km/h, os desgraçados que podem estuprar e pagar montanhas de dinheiro para as autoridades para voltarem para as suas casas-palácios, os desgraçados que podem cometer qualquer ilegalidade que lhe derem na cabeça porque são inimputáveis como o genocida e ladrão de joias ex-presidente que pode tudo e contra ele não pega nada, porque as autoridades e políticos brasileiros têm MEDO de prender o bandido.

A luta continua, claro! Mesmo com tudo que acontece o tempo todo, mesmo com toda a injustiça, tem muita gente boa lutando por um mundo melhor. Gente que ontem mesmo estava reunida organizando as lutas para combater e reverter todas essas desgraças que enfeiam o nosso mundo.

Viver vale a pena. E as desgraças se combatem com pessoas que enchem as nossas esperanças de graças, gente que acorda em meio às suas cotidianidades complexas e acha tempo para se doar para as ações coletivas e as boas ações para melhorar o seu entorno, o mundo de todos nós. 

Gente assim vi reunida ontem na assembleia que fui pela manhã e na reunião do PT que partipei de tarde. Gente que faz valer a pena seguir lutando, do jeito que cada um puder contribuir.

A essa gente dou graças! Graças a vocês que lutam por um mundo melhor para todes.

Somos seres de contradição, mas somos seres históricos. Fazemos história todos os dias.

Não existe um futuro determinado. Fazemos o futuro hoje. Não esmoreçam.

William


quinta-feira, 25 de abril de 2024

Leitura: Mulheres são tudo isso e muito mais - org. Cleusa Slaviero



Refeição Cultural

Osasco, 25 de abril de 2024. Quinta-feira.


As crônicas e artigos do livro Mulheres são tudo isso e muito mais (2024) são emocionantes, marcantes e de arrepiar leitoras e leitores. Os relatos, as histórias e as confissões constantes nos textos me fizeram pensar muito, me peguei refletindo sobre vários deles.

O livro é mais uma coletânea organizada pela excelente editora Cleusa Slaviero e sua equipe. Nesta edição com a temática relevante sobre as mulheres, tive a oportunidade de ler contribuições de companheiras que conheço de longa data, e que textos potentes! 

O projeto de livros coletivos, da Editora ComPactos, é uma ideia muito legal. Eu conheci o trabalho através da companheira e amiga Marisa Stedile, grande liderança da classe trabalhadora, ex-presidenta do Sindicato dos Bancários de Curitiba e região. Aliás, os artigos que ela nos presenteia nos livros são sempre impactantes. Nesta edição, não foi diferente!

Ao escrever minha contribuição, pensei muito no quanto eu fui me modificando como homem e cidadão ao longo de décadas por influência de mulheres que marcaram minha vida e me ajudaram a ser o que sou hoje. A educação e a formação política me ajudaram a superar os anos de fúria e ignorância. Sou grato por isso.

Os ambientes aos quais estive exposto indicavam um caminho de violência, machismo e intolerância: o próprio lugar onde nasci, o Brasil da ditadura, o Brasil da escravidão longeva e do racismo estrutural, o país que mais mata pessoas trans no mundo. Fui salvo por minha mãe, e depois fui sendo salvo a vida toda pelas veredas que peguei, sempre influenciado por uma mulher potente.

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AS MULHERES DEVEM ESTAR NOS LUGARES QUE QUISEREM E COM CONDIÇÕES PARA ISSO

A temática do livro é fundamental num momento de disputa de hegemonia mundial sobre as ideias que dominam a pauta e a agenda da comunidade humana. 

Ao mesmo tempo em que vemos avanços nas pautas das discussões identitárias e de gênero, resultado de séculos de enfrentamento feminino ao mundo do macho alfa branco proprietário dos meios, vemos retrocessos inaceitáveis nas conquistas e nos direitos das mulheres, retrocessos pautados pela extrema-direita mundial, disfarçada nas mais variadas formas em cada sociedade.

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JÁ IMAGINARAM HOMEM REIVINDICANDO DIREITO AO PRÓPRIO CORPO? (para além da questão de pessoas escravizadas)

Peguemos como exemplo a questão do direito ao próprio corpo, um debate secular da pauta de gênero. A questão de interromper ou não uma gravidez indesejada ou com risco de morte para a mãe. Fico imaginando qual seria a posição e o comportamento dos homens caso eles engravidassem... 

Já imaginaram como seria tratada a questão do aborto caso a forma de reprodução nos animais mamíferos homo sapiens se desse através de beijo na boca? 

Se a reprodução humana ocorresse tanto em corpos de homens como de mulheres e a forma de concepção fosse através de trocas corporais pela boca? 

Será que existiria alguma divergência na sociedade sobre interrupção ou não de gravidez se homens de repente se pegassem grávidos?

Pois é! Imaginar a questão da gravidez em homens é para exercitar a antiga forma de se colocar no lugar da outra pessoa para tentar se sensibilizar com o que as outras pessoas sentem ou enfrentam nos dilemas diários da vida humana.

Nunca me esqueço dos ensinamentos que aprendi no movimento sindical sobre as diversas temáticas identitárias. 

RACISMO - Um branco como eu jamais vai saber o que uma pessoa negra como minha irmã, por exemplo, sentiu ou sente todas as vezes ao longo de sua vida em que ela foi ou é vítima do racismo nojento dessa sociedade brasileira hipócrita na sua parte que não reconhece o racismo estrutural vigente há séculos.

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CRÔNICAS QUE NOS FAZEM REFLETIR E QUE NOS EMOCIONAM

Enfim, exemplifiquei duas questões cotidianas na vida das pessoas em convívio social, a questão de gênero e a questão do racismo.

O livro veio num momento central de nossa história humana. A temática foi certeira. Cada um dos trinta textos mexe com a gente.

Recomendo a leitura e parabenizo todas as pessoas envolvidas no projeto.

William Mendes


quarta-feira, 24 de abril de 2024

Leitura: A Faca da Catacumba - Arnaldo Onça



Refeição Cultural

Osasco, 24 de abril de 2024. Quarta-feira.


"Na segunda-feira, dia 12 de novembro do mesmo ano, sempre com a faca presa à cintura, novamente o 14 Bis levantou voo, desta vez 220 metros, a alturas que variaram de dois a três metros..." (p. 221)


A leitura é uma necessidade para mim, é uma ação consciente e voluntária essencial. Inclusive desenvolvi hipóteses preocupantes sobre a perda da capacidade de leitura de nossa espécie por causa dos meios atuais de comunicação. Temos que ler e escrever para preservar nosso cérebro e nossa invenção recente: o signo linguístico e a escrita (alguns milhares de anos).

Neste ano em curso, não tenho conseguido ler como gostaria. Nem escrever como seria necessário. Vários fatores estão dificultando meu cotidiano como leitor e escritor.

Como disse na postagem anterior (ver aqui), meu ato de leitura é acompanhado de algum registro textual para que possa refletir sobre o conteúdo do que li, ou para compartilhar com as leitoras e leitores do blog algumas ideias e ou sensações obtidas com a leitura feita.

Refletindo sobre as leituras em andamento ou terminadas recentemente, notei a dificuldade de fazer um registro das impressões que tive do ato de leitura. Foi assim até agora com os livros que terminei de Paulo Freire, Frei Betto, e diversos livros em andamento.

Uma categoria de livros que gosto de incluir em minhas leituras anuais é a categoria de livros produzidos por colegas de comunidades às quais me incluo como, por exemplo, a categoria bancária, conhecidos dos cursos acadêmicos que fiz e demais grupos de afinidades.

O livro do colega aposentado do Banco do Brasil, Arnaldo Onça, é um livro de ficção e entretenimento que comecei a ler numa viagem de alguns dias para descansar com a esposa e que só retomei e finalizei agora, um tempinho depois. Sempre li assim, dezenas de livros.

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A FACA DA CATACUMBA

A ideia da história é bem interessante. O autor nos leva a viajar pelo mundo no tempo e no espaço através de um artefato que percorre civilizações - a Faca da Catacumba - e envolve figuras da história ou desconhecidas, reais ou ficcionais, ao longo de dois milênios.

Uma coisa que sempre respeitei desde quando comecei a ler na adolescência romances e obras literárias, sejam os livros com vínculos históricos ou ficcionais, é o trabalho que autores e autoras têm para tecer um texto do início ao fim. Dá muito trabalho fazer um livro!

Outra coisa que sempre me atraiu na leitura de livros, mesmo quando era muito novo e mal tinha tempo de ler alguma coisa, além do tempo para trabalhar e cumprir as horas de estudos formais, era a possibilidade de viajar através da leitura, de vivenciar outras percepções possíveis da realidade, para além daquela na qual eu vivia ao abrir os olhos e ter que fazer o que as veredas da vida me levaram a fazer.

A ficção de Arnaldo Onça cumpre esse papel de fazer os leitores viajarem para épocas diversas, culturas variadas de regiões distantes do nosso mundo mundo vasto mundo. Ao longo do livro vamos à Roma antiga, à China, às Américas e por aí afora.

De repente, até nosso Santos Dumont estava lá envolvido com a Faca da Catacumba... muito interessante! 

Adorei a emocionante história do jovem e promissor jogador de futebol Niquim!

Em ficção tudo é possível, essa é uma das maravilhas da literatura. Estabelecido o acordo entre autor e leitores, definidas as regras da leitura, verossimilhança traçada, é só iniciar a viagem literária e curtir a história ou a estória ou as imaginações permitidas aos autores para preencher as lacunas das histórias.

Enfim, finalizada a viagem literária iniciada numa viagem real minha de um tempinho atrás.

Leitura leve e divertida. Imagino o trabalhão que deu fazer as pesquisas para alinhavar os diversos caminhos percorridos pela Faca ao longo dos séculos.

Parabéns ao nosso colega do BB, que além de escritor é participante assíduo e de forma voluntária em diversas associações e entidades associativas que cumprem a função de trazer cultura, informação e lazer à nossa comunidade do Banco do Brasil.

William Mendes


sábado, 20 de abril de 2024

Diário e reflexões



Refeição Cultural

Osasco, 20 de abril de 2024. Sábado.


O MUNDO TÁ FODA!

Ao acordar, passei a primeira hora deitado, lendo um pouco de notícias. Fiquei pensando nos acontecimentos de meu cotidiano recente, e naturalmente pensei sobre a política e sobre o nosso país. Mesmo fora do movimento sindical, sou um ser político, não estou alheio aos acontecimentos.

As perspectivas do amanhã, no meu caso particular e no caso de nosso país, são complexas. Digo "complexas" para não dizer que são "ruins". Os otimistas diriam que são "desafiadoras". As maneiras como se dizem as coisas têm objetivos e efeitos específicos nas técnicas de comunicação. No fundo, no fundo, tá foda!

Meus conhecimentos adquiridos durante a jornada da existência me impõem atitudes e comportamentos que não podem ser deixados de lado simplesmente por um desejo imediato de ligar o botão do foda-se. Conheço muita coisa da vida política. Só deixarei de ver o mundo como vejo com uma eventual doença degenerativa do cérebro ou com minha morte.

Enquanto pensava nas coisas recentes, ainda deitado, pensei que tem tanta coisa rolando no meu mundinho e no mundão lá fora, que quase tive vontade de listar coisinhas e coisonas para visualizar melhor as coisas e organizar as ideias.

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LEITURAS

Neste ano, não estou conseguindo escrever sobre minhas leituras. Ruim isso! Quando escrevo aqui no blog sobre um livro ou algo que li, organizo as reflexões advindas com a leitura e acabo memorizando melhor o que a leitura me trouxe de ideias novas. Postando o texto, atinjo meu desejo de compartilhar de forma gratuita cultura e conhecimento humano.

Minha atenção está ruim do ponto de vista dos estudos. Tem muitos fatores externos e psicológicos que estão me impedindo de concentrar-me nos momentos de leitura e estudos. E quando leio, não finalizo o processo de aprendizagem fazendo o texto de comentário e fixação de informações.

Quero terminar algumas leituras iniciadas e escrever algo sobre elas. Li recentemente a tragédia "Ricardo III" de Shakespeare e assim como as duas comédias do autor que li faz poucos meses, acho que a leitura foi sofrível, não li como gostaria. O ideal é sentar-me e ler as três obras de novo. De forma rápida.

As leituras dos livros de Paulo Freire foram melhores, mas não consegui terminar meu texto sobre "Pedagogia da Autonomia". Faltou foco.

Quero terminar o livro do colega aposentado do BB, Onça. Li uma parte dele quando viajei uns dias com a esposa, mas não consegui retomá-lo e finalizar a leitura. É um livro de entretenimento, leve.

Estou lendo uns livros mais complexos e não consegui dar sequência. Um sobre a China, um sobre Marx e um sobre saúde suplementar. As leituras são muito interessantes, não tive dificuldades. É que a cabeça tá com a atenção dividida mesmo.

Após a segunda viagem a Cuba, com a feira do livro de Havana como motivo principal dessa experiência no país socialista, me encantei com Frei Betto, e dos contatos com autores brasileiros que lá estiveram, estou lendo o novo livro da querida Conceição Evaristo e preciso terminar o livrão sobre a biografia do dominicano. Li um livro dele sobre o marxismo e não escrevi a respeito da leitura.

E, lógico, após essas atividades culturais inacabadas, preciso pegar com vigor a leitura de "Os miseráveis", que peguei para ler no semestre passado e parei de novo. Não posso fazer isso. Tenho que ir até o fim do clássico.

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ENVELHECIMENTO DA GENTE

Essa temática é pessoal e coletiva. É a natureza em plena ação. Tudo muda o tempo todo. 

Na família serão tempos de lidar com as mortes das pessoas queridas. Isso acontece de forma mais frequente à medida que vamos envelhecendo e durando mais tempo na Terra.

Como sou uma pessoa de sorte, tive a felicidade de ter meus pais e familiares nucleares presentes até hoje. A boa sorte de tê-los por mais tempo me faz saber que ainda vou ter que lidar com as perdas de pessoas queridas, ou elas terão que lidar com a minha desaparição, ninguém sabe o amanhã. A morte é a certeza que o animal humano já sabe e que os outros animais não, podem até pressentir na hora, mas por instinto. Por isso inventamos a ideia de viver depois de morrer...

O mundo humano que coisificou as pessoas como meras mercadorias e transformou as relações humanas em relações utilitárias, relações que só duram enquanto são úteis de alguma forma para as pessoas (físicas e jurídicas) fez com que a maioria das relações seja de pouca duração e de fácil rompimento. Uma divergência casual de opinião pode encerrar uma relação de toda uma vida. E com isso vamos nos tornando seres solitários, sozinhos mesmo quando acompanhados.

Quando penso em envelhecimento, adoecimento em suas diversas formas, quando penso em necessidade de acolhimento que as pessoas sentirão cada dia mais, e provavelmente estarão por sua conta e risco, penso no conhecimento que adquiri ao ser gestor de uma autogestão em saúde diferente da lógica do mercado da doença (indústria da "saúde"). 

Fico pensando se deveria esquecer o que sei sobre a Cassi ou se deveria escrever com frequência e regularidade tudo que conheci dessa Caixa de Assistência. À época, criei um público leitor que se interessou pelo que escrevia. De certa forma, fiz um papel importante ao dizer aos participantes da Cassi o que o próprio site da autogestão nunca dizia.

Ao refletir sobre a conversa com o médico que atendeu meu pai nesses dias, sobre possíveis doenças que ele tenha, fiquei pensando sobre a questão da sarcopenia que ele vem enfrentando recentemente. Eu conheço sobre o tema desde que estudei Educação Física e sei que também já iniciei meu processo natural de perda de massa e tônus muscular. Sendo consciente sobre o tema, deveria estar mais dedicado a frear seus efeitos e a gente acaba sendo relapso com a própria saúde. Somos animais racionais contraditórios...

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QUEM DEFINE A ARMA DE UM COMBATE É O INIMIGO

Por fim, fecho essas reflexões pensando num acontecimento que me angustia: a ascensão do fascismo e da extrema-direita sem uma capacidade de reação à altura do campo democrático e da esquerda.

De meu mundinho atual, de alguém que já fez parte do mundão da política, sinto uma certa angústia ao ver o nosso lado da classe tão perdido em relação aos objetivos, estratégias e táticas para disputar a hegemonia de nossas ideias na sociedade humana.

Francamente, o mundo e o ser humano mudaram ou foram mudados drasticamente nas duas últimas décadas. Percebem a rapidez da coisa? Duas décadas. Período do boom das tecnologias da informação, internet e redes sociais. Na sociedade humana deste momento histórico, não há mais espaço para conciliar e frear processos com diálogo. Não há diálogo com nazifascistas, trumpistas e bolsonaristas fanáticos. Não há diálogo com armas despejando morte sob nossos corpos.

Esse conceito do subtítulo, sobre quem define a arma do combate ser o inimigo, tirei do ensinamento do grande líder sul-africano Nelson Mandela. Numa derrota fragorosa de seu povo, ele entendeu que não adiantava usar as tradicionais armas pacifistas de combate ao regime do apartheid porque o inimigo estava matando seu povo e não se sensibilizava com nada pacífico.

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É O OPRESSOR QUE DEFINE A NATUREZA DA LUTA

"A lição que aprendi com a campanha (contra a remoção do povo negro de Sophiatown em 1955) foi que no final nós não tínhamos alternativa alguma senão resistência armada e violenta. Repetidamente, havíamos utilizado todas as armas de não violência em nosso arsenal - discursos, delegações, ameaças, marchas, greves, ficar em casa, prisões voluntárias - tudo em vão, pois tudo o que fazíamos era respondido com mão de ferro. Um guerreiro pela liberdade aprende da maneira mais difícil que é o opressor quem define a natureza da luta, e ao oprimido frequentemente não se deixa recurso algum senão utilizar métodos que espelham aqueles do opressor. Em certo momento, só é possível lutar contra o fogo usando fogo" (pág. 206. Longa Caminhada até a Liberdade, Nelson Mandela)

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Vejam o momento atual na Palestina! Observem o que os sionistas decidiram fazer para desocupar as terras da Faixa de Gaza. Metem bombas, eliminam população civil - mulheres, crianças, idosos -, quem está lá, e dane-se o que o mundo pensa.

Adiantaria ao povo árabe-palestino fazer greves, manifestações pacíficas etc etc? Óbvio que não!

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QUEM DEFINE A PAUTA DEFINE A AGENDA... E OS TEMPOS SÃO DE AUTORITARISMO E VIOLÊNCIA DA EXTREMA-DIREITA, FINANCIADA PELO CAPITAL

O 1% dos homens poderosos do mundo decidiu eliminar quem se oponha ao seu poder. Danem-se países, comunidades, biomas, o planeta Terra. Os tempos são de merda! Tempos de violência! 

Os caras não ligam mais para nós, o povo. Nem para sermos explorados como mão de obra barata. Nunca ligaram, mas antes havia certo pudor, certo disfarce do pessoal que comia com talheres de prata... os tempos são outros.

Alguns pensadores já falam que o 1% quer eliminar mais da metade dos humanos, pois estaríamos incomodando e já não precisam mais de nossa mão de obra fabril. As máquinas dão conta da produção.

Aí eu pergunto: vamos dialogar com os fascistas? Vamos conciliar com os extremistas de direita que têm carta branca e financiamento do 1% para barbarizar conosco? 

Os tempos são outros. Nossos corpinhos humanos serão triturados pelas máquinas de extermínio dos donos do poder. 

Se a esquerda ou o segmento que um dia se disse de esquerda não acordar e mudar a postura e mudar as estratégias para enfrentar esses bárbaros fascistas com as mesmas armas que eles nos humilham, nos machucam e nos eliminam não sobraremos nem para contar a história dos povos derrotados. Até porque hoje tudo é "nuvem", nem manuscrito antigo com nossa versão vai sobrar para contar que um dia nós da esquerda existimos... Nossas memórias em "nuvens" serão desfeitas com uma brisa!

Encerro por hoje. Minha solidariedade ao deputado Glauber Braga (Psol-RJ), que reagiu de forma leve à violência do fascista do MBL que o ameaça faz tempo. Na minha opinião, não dá para contemporizar com a violência dos fascistas. Não se dá flores a quem quer nos eliminar.

William Mendes


Post Scriptum: soube do falecimento precoce de um querido militante do Banco do Brasil, o companheiro Sérgio Villaça. Meus sentimentos à família, aos amig@s e à companheira Tina Villaça.


quinta-feira, 18 de abril de 2024

Cuba (V)



Refeição Cultural

Osasco, 18 de abril de 2024. Quinta-feira.


CUBA: PAÍS E POVO INESQUECÍVEIS

Mesmo sem ter feito um planejamento específico para visitar Cuba, acabei tendo o privilégio de conhecer a República Socialista, indo ao país caribenho em 2023 e 2024. Foram experiências marcantes em minha vida. O fato de não ter ido só, ter ido em grupo, ampliou em muito as minhas possibilidades de contatos com a história e a cultura do povo cubano.

A primeira oportunidade apareceu ao ver em uma rede social uma companheira aposentada do Banco do Brasil - Miriam Goes Shibata -, militante antiga das causas populares, organizando um grupo para ir a Cuba para o 1º de maio de 2023. Me interessei, entrei em contato com ela, e realizei o sonho de conhecer uma das mais longevas experiências de sociedade organizada fora da lógica capitalista de exploração dos homens e mulheres por poucos homens (a regra capitalista). Imaginem a felicidade de ter levado meu filho comigo nessa experiência!

A segunda experiência não foi muito diferente da primeira em relação à casualidade ao ver a oportunidade de retornar ao país: anúncio em rede social. 

Novamente, vi um anúncio de uma militante das causas populares e coordenadora de brigadas internacionais montando um grupo de pessoas para ir a Cuba - Telma Araújo -, viagem que teria toda a estrutura de apoio do Icap, a partir da Amistur, por ocasião da realização da 32ª Feira Internacional do Livro de Havana. Consegui me organizar para retornar à Ilha e aprender um pouco mais sobre a história de um povo que luta por liberdade, soberania e dignidade há séculos.

Nesta postagem, faço uma retrospectiva breve dessas duas viagens que acrescentaram muitas informações às reflexões e estudos que venho desenvolvendo nos últimos anos sobre a sociedade humana. A retrospectiva foi feita a partir da leitura de meus próprios textos no blog.

 

Como iria participar do programa "Cubanias", de Lina Noronha (que ocorreu na segunda, 15/4, às 10h), achei interessante rever no dia anterior minhas impressões sobre as duas viagens. Agradeço muito o convite feito por Lina e espero ter contribuído de alguma forma para as causas da classe trabalhadora em geral e do povo cubano em particular. Para ver o programa é só acessar o link aqui.

As minhas impressões e reflexões, desenvolvidas a partir das viagens a Cuba e de estudos que venho realizando, estão em uma série de postagens que fiz aqui no blog desde o início do ano de 2023, quando comecei a ler mídias a respeito da história de Cuba e do povo cubano. No blog foram dez textos sobre a primeira viagem e mais quatro textos referentes à viagem mais recente. 

Fiz também muitos textos sobre tudo que lia e estudava relativo ao tema. Devo ter no blog dezenas de artigos relacionados com a temática cubana: livros lidos, personagens estudados, histórias sobre a revolução etc.

Caso alguma leitora ou leitor queira ler mais postagens sobre o tema é só clicar em qualquer um dos textos com a categorização "Cuba" (tag) que acaba indo para outros textos, que são todos independentes, são completos no tema tratado. 

(Atenção: em celular, os leitores devem descer a tela até o final da última matéria e clicar "ver versão para a web", para poder acessar o formato do blog para computadores, notebooks e tablets, com as colunas laterais onde estão as categorizações em ordem alfabéticas)

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José Martí e Museu da Revolução.

CUBA, UM PAÍS QUE PRESERVA E VALORIZA SUA HISTÓRIA

As primeiras postagens feitas após retornar da viagem feita em 2023 já demonstram a boa impressão que tive sobre o esforço do governo e da população em preservar a extraordinária história de lutas pela libertação da Ilha do jugo imperialista, tanto o espanhol (até s. XIX) quanto o estadunidense (no s. XX).

O foco na educação em todos os níveis é prioridade do governo cubano, comento isso na primeira postagem (aqui). Na segunda, comento um pouco sobre a preservação arquitetônica em Havana Velha e observo a diferença entre a Cuba que se preocupa com seu povo e a cidade de São Paulo das dezenas de milhares de pessoas morando nas ruas (aqui). Na terceira, anoto minha admiração pela preservação do patrimônio material e imaterial em Cuba (aqui).

Nas postagens seguintes, comento a visita ao Centro Fidel Castro Ruz e uma caminhada pelo Malecón (aqui), e nossa ida à Plaza de la Revolución, lugar com uma significação imensa (aqui). Nessa mesma postagem, dou minha opinião sobre a questão da "liberdade de imprensa", normalmente confundida com liberdade de expressão das pessoas físicas. A "imprensa" monopolista capitalista ilude as pessoas sobre conceitos básicos de expressão e comunicação.

Na sexta postagem (aqui), comento sobre as andanças que meu filho e eu fizemos no feriado de 1º de maio e depois opino um pouco sobre as narrativas impostas goela abaixo pela grande imprensa capitalista em haver democracia no Brasil e Estados Unidos e não haver democracia em Cuba, que tem um sistema de representação popular bem interessante, com eleições constantes e representatividade muito mais real que a nossa ou que a dos norte-americanos.

Che com a criança nos braços,
em frente ao Comitê do Partido
Comunista de Cuba, em Santa Clara.

Na sétima postagem (aqui), falo da emocionante visita à Santa Clara, local histórico onde se desenvolveu a batalha de tomada do trem blindado e a vitória final da Revolução Cubana, e onde se encontra o Memorial, Museu e Mausoléu de Che Guevara. Foi uma emoção inesquecível!

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"A visita a Santa Clara foi, para mim, um dos momentos mais emocionantes da viagem a Cuba. Parti da cidade com um sentimento de gratidão imensa àqueles homens e mulheres revolucionários que libertaram a Ilha do imperialismo como sonharam e lutaram por isso gerações de cubanos como José Martí e iniciaram a partir de 1959 uma sociedade em outras bases e princípios, antagônicos ao capitalismo."

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Na oitava postagem (aqui), descrevo nosso 6º dia em Havana. A visita ao anexo do Museu da Revolução (que está em reforma), onde estão equipamentos de guerra e o Iate Granma, fez parte das andanças por Havana Velha naquele dia, sob o comando do senhor Luis Caballero, que nos contou muita história e conquistas do povo cubano. Na manhã seguinte, iríamos para Trinidad.

As postagens finais relativas à primeira viagem a Cuba (2023), acabei fazendo na véspera de embarcar para a segunda experiência neste ano de 2024. Na 9ª (aqui), relato a nossa estadia em Trinidad e a emoção inesquecível das celebrações do 1º de Maio em Cuba. 

Na 10ª postagem, na qual finalizo os relatos sobre a viagem do ano passado, conto sobre nossa estadia em Varadero, cidade turística com praias incríveis. Comento também os últimos passeios em Havana, fomos à Finca de Hemingway, à Fusterlândia e ao Memorial da Denúncia (aqui).

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Plaza de la Revolución... emoção!

VIAGEM A CUBA PARA PARTICIPAR DA 32ª FEIRA INTERNACIONAL DO LIVRO DE HAVANA

Em relação à segunda visita à Cuba (2024), estou escrevendo minhas impressões e experiências ainda. Até o momento, já fiz quatro postagens.

Diferente da primeira viagem, nesta foram oito dias incluídos em um pacote com tudo pago, facilitando enormemente as coisas para o turista. Só precisei comprar as passagens de ida e volta. A primeira postagem pode ser lida aqui.

No pacote estavam incluídas todas as refeições, transporte para todos os lugares programados, a hospedagem em hotel, uma credencial para frequentar a feira do livro e os eventos relativos a ela nos dez dias, e ainda o transporte e estadia para as viagens que fizemos até Trinidad e Cienfuegos. Achei excelentes essas facilidades. Mais detalhes podem ser lidos aqui.

Nos outros dias que fiquei em Havana, é claro que estive hospedado na Casa de Isabel, onde pude rever os amigos cubanos e aproveitei para andar pela cidade nos dias finais da viagem.

A terceira postagem desta viagem (aqui), acabei falando sobre minha experiência de estar próximo ao grande brasileiro Frei Betto por alguns dias. Tive a oportunidade de ouvir palestras dele e voltei com alguns livros do dominicano para ler. 

Na quarta matéria da série sobre a viagem a Cuba neste ano abordei a questão da importância da história para o povo cubano e acabei fazendo um breve retrospecto da história recente do golpe de 2016 no Brasil. 

Estávamos no mês de março à época da postagem e uma das polêmicas que vivíamos no período no Brasil era a questão dos 60 anos do 31 de março, data do golpe de 1964. Ler postagem aqui.

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¡HASTA LA VICTORIA, SIEMPRE!

Ufa! Como deu trabalho fazer essa síntese, amigas e amigos leitores! Tive que reler as quatorze postagens que fiz.

É isso!

Viva o povo cubano! Pelo fim do embargo criminoso dos EUA contra Cuba!

William


domingo, 14 de abril de 2024

Natais - 1973



Refeição Cultural

Estamos no mês de abril de 2024. Sábado de noite para domingo. Estou em Uberlândia. 

Um silêncio entristecedor predomina na casa de meus pais. Digo isso sendo uma pessoa que gosta de silêncio. São os sinais que entristecem a gente. Os acontecimentos apontam para onde as coisas caminham.

Como imaginei no último Natal, as relações entre as pessoas estão cindidas, esgarçadas, estão se diluindo. Os laços que ligaram grupos de humanos por milênios, que criaram aquilo que Benedict Arderson chama de "Comunidades Imaginadas", estão se desfazendo. As relações humanas estão cada dia mais utilitárias, só permanecem enquanto há alguma utilidade naquilo.

Tenho avaliado o comportamento humano nos últimos anos. Entendo que os seres humanos estão inseridos numa espécie de experiência a partir das big techs e suas técnicas de manipulação de massas (corporações globais que dominam os meios de comunicação), manipulação que já era tentada pelos grandes veículos de informação, mas que ganhou uma dimensão extraordinária com os algoritmos das redes sociais.

Estamos nos tornando seres antissociais, impacientes e sem vontade de lidar com qualquer pessoa que pense diferente ou emita uma palavra que a outra pessoa não goste. Relações familiares, de amor, amizade, se desfazem como se desfazem as relações virtuais, com um clique/cancelamento.

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E as guerras? Quem vai pará-las? 

Os contextos são diferentes dos contextos anteriores nos quais a espécie humana conseguiu evitar o lançamento de diversas bombas atômicas ao mesmo tempo, convencendo lideranças de grandes comunidades humanas que aquelas ações exterminariam a própria espécie. Estou falando de poucas décadas atrás. Anos de Guerra Fria.

Neste momento, com esses humanos ao nosso redor, com essas redes sociais que manipulam dezenas e centenas de milhões de humanos, com esses sociopatas por trás de corporações globais que cagam para os países e as pessoas, nós não temos perspectivas muito boas para evitar que as guerras que estão pipocando por aí avancem até o "The End", guerras em geral provocadas diretamente ou por procuração pela potência nuclear e império decadente Estados Unidos, que deixa claro que vai cair atirando contra as novas potências que estão surgindo, como a China, por exemplo.

Olhando desde abril lá para dezembro de 2024, é bem difícil saber se só a minha família terá dificuldades para se reunir no Natal ou milhões e milhões de famílias terão dificuldades diversas de reunião para confraternização...

Tempos sombrios, tempos desafiadores. 

(e pensar que a educação poderia mudar tudo isso, seria só educar as pessoas para um outro mundo possível. No entanto, sob o capitalismo e sob a governança de sociopatas, a salvação do mundo e da humanidade está cada dia mais distante)

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NATAL DE 1973 

Naquele ano, vivi com a família o meu quinto Natal. 

Nasci no Brasil, um dos países mais católicos do mundo à época. Fui batizado e recebi as bençãos divinas. 

Não me lembro das comemorações da data natalina, mas sei que com uns quatro anos de idade, eu já estava sendo aculturado como uma pessoa que vivia no ambiente das crenças religiosas do país, um misticismo resultante de todo o sincretismo religioso originário da mistura do catolicismo dos invasores europeus, com as visões de mundo dos povos indígenas e as religiões de matriz africana, vindas com os povos sequestrados e escravizados nesta terra, colônia de exploração. 

Ainda recebemos no último século e meio, povos vindos da Ásia e Oriente e suas crenças se somaram às que já existiam aqui. 

CONTEXTO NO MUNDO

Naquele ano, o World Trade Center foi inaugurado na cidade de Nova York, em 4 de abril. As torres gêmeas viraram o símbolo do poderio capitalista dos EUA. 

Dois 11/9 a registrar: 

11/9/73: no Chile, um golpe de Estado depõe Salvador Allende, que morre no Palácio La Moneda. Pinochet começa a ditadura sanguinária. 

11/9/01: muitos anos depois, a data é marcada no mundo pela queda das torres gêmeas inauguradas em 1973. Aviões se chocam contra elas, em Nova York, e o mundo seria diferente depois disso. 

EM NOME DE DEUS

Tudo que aconteceu foi em nome de Deus: nosso Natal, a invasão do Brasil no passado e a ditadura daquele momento, a vinda dos escravizados africanos, o capitalismo americano e a ditadura de Pinochet. 

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Na foto da postagem, sou o único menino entre as meninas. A foto foi tirada no casamento de meus tios em São Paulo, em maio de 1973. As duas meninas do meu lado direito são minha irmã e minha companheira.

William


Post Scriptum: a postagem anterior desta série pode ser lida aqui.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Diário e reflexões



Refeição Cultural

Osasco, 11 de abril de 2024. Quinta-feira.


REFEIÇÕES CULTURAIS AMARGAS

Dias cansativos os últimos de meu cotidiano. E quando penso em me lamentar por qualquer coisa, evito, me lembrando no instante seguinte a uma eventual reclamação a outras pessoas, aos deuses e aos acasos, por ter a clareza de que sou uma pessoa de sorte.

E, consciente disso, tento calar minhas lamúrias. A amplíssima maioria das pessoas do mundo estão passando por dificuldades impeditivas de seguir vivendo e, sabedor de uma parte dos motivos desse "estado de mal-estar social", como disse o professor Belluzzo, devo moldar minhas atitudes para não piorar as coisas no mundo.

Claro, não devemos confundir reclamações sobre coisas nas quais estamos em condições melhores do que a maioria com críticas às coisas que tenhamos algum conhecimento de que poderiam estar de outro jeito por saber que elas estão de certa forma corrompidas pela prática dos humanos. Um intelectual não pode deixar de se posicionar sobre o que sabe, como nos ensina Edward Said, em Representações do intelectual (comentário aqui).

Por exemplo, desde que o Brasil foi governado pelos dois golpistas após 2016, Temer e Bolsonaro e seu grupo de homens brancos machos da casa-grande brasileira, as instituições do Estado nacional, as burocracias que regulam a vida em sociedade, tudo deixou de funcionar minimamente, como funcionavam antes do golpe. Isso desorganizou a vida em sociedade.

As pessoas estão por sua conta e risco nas coisas do cotidiano, como se em uma selva estivéssemos, como os demais bichos da fauna, e não como animais humanos que constituíram regras de sociabilidade - direitos e deveres - nos últimos milhares de anos. Impera a cultura do mais forte, mais poderoso, mais egoísta e canalha, mais privilegiado socialmente, e que se dane o restante, no caso brasileiro, a maioria do povo oriundo de uma ex-colônia escravagista violenta e terra de exploração de alguns de fora em prejuízo dos milhões de dentro.

A grande imprensa, a imprensa da casa-grande, os meios de comunicação todos concentrados em poucos coronéis, desde sempre, desde a Primeira República, instituída pelo primeiro golpe de Estado em 1889, essa imprensa na qual o saudoso Paulo Henrique Amorim chamava de PIG - Partido da Imprensa Golpista - é a mãe das mentiras (fake news), mãe da divulgação de ódio e medo que acanalhou parte do povo brasileiro. A imprensa comercial do país envenenou a linguagem e o comportamento do povo brasileiro, destruindo a política - a solução pacífica da controvérsia -, e depois de toda merda que fizeram tivemos os dois desgraçados Temer e Bolsonaro que destruíram as instituições da vida cotidiana do Brasil.

Nada funciona para os cidadãos comuns, as instituições públicas e privadas que deveriam resolver as questões de saúde, educação, segurança, transporte, moradia, cultura, serviços básicos de telefonia, água e esgoto, luz, todas as instituições funcionam à base da cultura do "foda-se o usuário" e as pessoas não têm a quem recorrer, porque o lugar de recorrência também funciona na mesma lógica do "foda-se o usuário". 

E o novo governo, que gosta de cuidar de gente, não consegue fazer o que gostaria porque as estruturas estão amarradas para exercerem a má burocracia - a de não deixar mudar nada - e assim, os caras que perderam no voto em 2022 vão aos poucos minando o governo de frente ampla por terem mais capacidade operativa de pós-verdade. E ainda temos um parlamento quase todo da casa-grande. Um governo democrático-popular sitiado por um Congresso corrupto, de extrema-direita, que mudou as regras do orçamento público e atua para retornar ao caos que dá lucro para meia dúzia de fdp da casa-grande. Difícil!

Como disse em outro texto, me parece que mesmo que Lula entregasse uma Suécia ao povo, as fontes de mídia somadas (PIG e big techs) farão as pessoas acharem que estão no Haiti. O mundo humano funciona hoje a partir das redes de informação e desinformação. 

DOMINA O MUNDO QUEM DEFINE A PAUTA E A AGENDA

Eu falo o que aprendi desde que fui secretário de imprensa dos bancários entre 2006-2009: o cotidiano é dominado por quem define a pauta e a agenda do que as pessoas vão falar, ouvir, ler, comentar. Se já era assim com o PIG, ficou pior com as big techs. Um bosta de um Elon Musk, um bosta, tira de pauta as apurações do crime contra a vereadora Marielle Franco e tira o foco sobre os golpistas do "8 de janeiro" e faz duzentos milhões de pessoas ficarem na pauta que ele definiu contra um juiz do STF e o governo Lula. Entendem o que estou dizendo?

Enfim, finalizo essas reflexões, refeições culturais amargas. Pelas minhas dificuldades recentes de cotidiano, não consegui sequer postar impressões sobre quatro livros lidos recentemente...

Meus dias estão meio foda.

Seguimos tentando melhorar como pessoa e não piorar o mundo.

William


quarta-feira, 3 de abril de 2024

Acaso 55



Refeição Cultural

Osasco, 3 de abril de 2024. Quarta-feira.


Acaso 55

 

Por puro acaso cheguei aos cinquenta e cinco anos de existência.

Foi por acaso que antes dos cinquenta eu passei a controlar a pressão arterial antes de infartar ou ter um acidente vascular cerebral. Poderia já ter morrido antes não fosse isso. Na época das bebedeiras era tão ignorante que comia sal na mão com cerveja.

Foi um acaso eu ter virado gestor de saúde e, como pessoa da área, fazer os acompanhamentos primários e descobrir que era hipertenso e passar a controlar a pressão, uma das doenças crônicas que agravam e matam boa parte da população mundial.

Foi por acaso que ao ser convidado para disponibilizar meu nome para compor uma chapa nas eleições de uma autogestão em saúde, como candidato a diretor e encabeçar a chapa por entenderem que meu nome agregava, eu tinha um diploma de graduação em Ciências Contábeis, exigência protocolar para a inscrição da chapa.

Foi por acaso que eu me formei em Ciências Contábeis. Quando terminei o segundo grau não estava pensando em fazer faculdade naquele momento da vida. Um vizinho conhecido, um certo dia, me chamou para fazer um vestibular na região, Osasco, e acabei escolhendo um dos três cursos disponíveis e fiz a prova e entrei e me formei. Isso depois de organizar greve estudantil. Que orgulho tenho ao lembrar que uma turma de cem alunos me escolheu para ser o orador.

 

Por puro acaso cheguei aos cinquenta e cinco anos de existência.

Foi por acaso que fui parar em São Paulo antes dos dezoito anos. Me lembro que discuti em casa e acabei indo embora. Mas tinha outros motivos, penso eu. Não se conseguia trabalho em Uberlândia nos anos oitenta e eu estava cansado de trabalhos braçais e humilhantes, eu estava a fim de uma garota em São Paulo, apesar de saber que seria difícil conquistá-la. Soube que teria um lugar pra ficar no início se fosse pra SP.

Foi por acaso que ao visitar familiares em São Paulo, fiquei sabendo que haveria uma vaga na casa de minha avó após o casamento de um dos primos que moravam com ela, em uma das casas de meu tio. Era uma espécie de república, os primos dividiam as despesas da casa. Sairia um, entraria outro, eu.

Foi por acaso virar bancário depois de uns serviços gerais em Sampa. No começo, o trampo foi pesado, descarregar caixas de palmito de caminhões com umas vinte toneladas e entregar por toda a grande São Paulo. Depois, fui caixa de lanchonete no Itaim Bibi, a noite toda vendo a playboyzada na farra. Não me lembro como, mas virei bancário do Unibanco.

Foi por acaso que dei atenção ao pessoal do sindicato e passei a ajudar na organização de uma greve. E me sindicalizei e passei a sindicalizar todo mundo. Por acaso mesmo, porque quase todo mundo trabalhava em banco, como meus primos e primas e amigos, e nem por isso o pessoal dava bola para o sindicato. Poderia ser um bosta bolsonarista décadas depois se não tivesse me politizado com o sindicato.

 

Por puro acaso cheguei aos cinquenta e cinco anos de existência.

Foi por acaso que não morri algumas vezes por aí, alimentando estatísticas das mortes de homens jovens. Já dirigi um carro em estrada por dezenas de quilômetros com curto na parte elétrica, sem luz nenhuma, farol, lanterna, uma loucura irresponsável. E com muito sono. Por muito tempo dirigi minhas motos alcoolizado entre os dezoito e os trinta anos. Coloquei minha vida em risco inúmeras vezes. E por acaso fui vivendo.

Foi por acaso, imagino, as vezes em que quase morri mesmo sem ter culpa ou fazer alguma loucura. A vida tem um quê de acaso. Ir e voltar de moto para Mogi das Cruzes por meses, de moto, com chuva, de noite, naquelas curvas da estrada, cento e cinquenta quilômetros por dia, foi uma sorte da porra sair ileso disso. Foram tantas finas e tantos sustos. Puta merda!

Foi por acaso, talvez, me levarem para o hospital quando morava sozinho e estava me desmanchando em vômito e diarreia após uma intoxicação alimentar, salmonela se não me engano, e quando acordei de madrugada no hospital me disseram que foram horas no soro para recuperar minha pressão que chegou a 8x3 ou coisa do tipo.

Não sei se foi por acaso, mas tem o acaso nisso, ter passado tantos anos de minha vida querendo morrer e não ter morrido. Cheguei a pensar em interromper a vida e cheguei a falar essa merda para a minha mãe. Anos depois, fui entender que provavelmente passei a adolescência e uma fase de adulto com uma forte depressão sem nunca ter tratado isso um dia sequer. Sobrevivi.

Aí já é uma viagem dessas quase místicas, ou do acaso bem acaso, que após meus pais não conseguirem ter filhos porque minha mãe perdia em abortos espontâneos, uma gravidez acabou vingando, a gravidez da qual nasci. E um dia eu iria dizer àquela mãe que não queria mais viver... os filhos são foda algumas vezes nesse mundo dos humanos.

 

Por puro acaso cheguei aos cinquenta e cinco anos de existência.

De acaso em acaso fui vivendo. Imaginem, depois de uma adolescência dura num país miserável e violento, percebi após os trinta anos que a cor branca de minha pele fez a diferença nas estatísticas, os jovens pretos e pardos morriam em número muito acima da média nas estatísticas das mortes de brasileiros. Os de pele branca já nasciam “com o cu pra lua” por causa da cor da pele. Minha irmã negra sobreviveu, mas comeu o pão que o diabo amassou. Nunca saberei o que uma pessoa preta sofre por causa da cor da pele.

Foi por acaso que escolhi o Banco do Brasil e não a CET ao passar nos dois concursos ao mesmo tempo no início dos anos noventa. O fato de ter sido bancário por dois anos no Unibanco e o fato de a jornada de trabalho ser de seis horas fizeram toda a diferença. Eu me lembro que odiava trabalhar, trabalho para mim era a lembrança de humilhação e cansaço e falta de tempo para fazer o que eu gostaria de fazer. Voltei à categoria por acaso.

Foi por acaso que aconteceu tanta coisa na minha existência que ficaria aqui, de vereda em vereda, avaliando os caminhos que trilhei e fui sobrevivendo.

 

Por puro acaso cheguei aos cinquenta e cinco anos de existência

Foi por acaso que virei sindicalista, foi por acaso que escolhi fazer Letras após um amigo do Banco do Brasil me convidar para assistir aulas de ouvinte na USP. No entanto, foi com muito esforço que estudei pra passar na Fuvest. E foi com escolhas difíceis que priorizei a representação sindical em prejuízo do curso de Letras.

Foi por acaso que entrei numa faculdade de Educação Física, me apaixonei pelo curso e não pude terminar porque não tinha dinheiro para pagar a mensalidade. Uma das maiores tristezas da vida. Nunca me esqueci das aulas de anatomia, biologia, da turma e do contexto que me levou à faculdade.

Foi por acaso que vivi amores, esses acasos, os do coração, são os melhores acasos da vida humana. Foi por acaso que me tornei pai. Foi por acaso que me humanizei e a fúria diminuiu.

Foi por acaso que viajei e fiz as melhores aventuras de minha vida. Sempre o acaso colocou uma vereda que me levava à natureza, ao rapel, à cachoeiras, cavernas, ao paraquedismo, aos acampamentos e regiões de mato – que adoro -, às praias e biomas diversos.

 

Por puro acaso cheguei aos cinquenta e cinco anos de existência

Foi por acaso que conheci a Itália e a Espanha. Foi por puro acaso que me peguei nos Estados Unidos a trabalho. Foi por acaso o convite para ir a Cuba.

Por acaso fiz a habilitação em espanhol. Me encantei com a língua durante o Ciclo Básico. Entrei na USP pensando em fazer inglês. Aliás, aprendi a falar inglês para o gasto porque queria ir embora do Brasil como muitos jovens queriam na época.

Foi por acaso que me humanizei num dos momentos mais duros da vida, tempos de fúria, tempos de revolta. Aí virei sindicalista e a formação política me salvou, talvez tenha salvo a sequência de minha existência após os trinta anos.

 

Por puro acaso cheguei aos cinquenta e cinco anos de existência.

Foi por acaso que entrei como cotista numa cooperativa e comprei a tão sonhada casa própria, um apartamento em Osasco.

Foi por acaso que passei a vida ouvindo mais música estrangeira do que música brasileira. Não posso me culpar por isso. Minha origem foi diferente da origem da maioria dos sindicalistas que conheci. Enquanto muitos cresceram em ambientes de militância, eu vivia num bairro miserável na adolescência sem ninguém de esquerda na família.

 

Acasos e esforços... e agora?

Passei o dia do aniversário pensando na vida, no passado que não me pertence, no futuro que não existe, só se eu acordar amanhã, e no presente, que passei pensando na vida no dia 3 de abril, pensando nas veredas que trilhei, nas que não pude trilhar, no que fiz e no que não fiz. Na lista do que queria e não quero mais.

Lembrar de tantos acasos na minha existência não diminue meu esforço honesto e muitas vezes quase impossível para superar as merdas da sobrevivência que quase nos fazem desistir de seguir. A partir dos acasos, tenho a clareza que teve muito esforço de minha parte, muito. Não me diminuo. Sei o meu valor.

 

Sei do esforço de voltar à construção onde passei a manhã quebrando concreto no primeiro dia de ajudante de encanador. Sei do esforço de não desistir quando tinha que furar aquelas latas de palmito podre.

Sei do esforço de não desistir quando o cansaço me fazia chorar e eu seguia. Fiz o que tinha que ser feito desde muito jovem. Passar em vestibulares de faculdades privadas e públicas, concursos públicos, todo guaraná em pó que tomei pra ficar acordado teve sua importância.

 

E sei que por ser branco tive vantagem em relação aos meus pares da classe subalterna à qual pertencíamos, classe trabalhadora explorada. Minha irmã sofreu as consequências da falta de oportunidade por ser negra. E as mulheres sempre foram preteridas por serem mulheres, tive vantagem nisso também. No Brasil, já é sorte nascer homem e branco por causa de nossa história violenta e miserável. Absurdo isso! Sorte ou azar por ser homem ou mulher, branco ou preto...

Me lembro da dona da escola de idiomas onde trabalhei me dizer para não contratar mulher porque mulher só dava dor de cabeça, menstruava, tinha enxaqueca, filhos, faltava muito etc. Dona Glória não era uma mulher naquele contexto, era uma capitalista. E o gerente do BB que me fez aprender serviço de funcionário sendo eu estagiário porque ele dizia que não iria ensinar nada para a colega do banco porque ela era mulher... que safado fdp!

 

Eu não posso escrever tudo o que pensei durante o dia. Não posso escrever muita coisa que penso, que sinto ultimamente, neste momento.

Nunca imaginei na minha vida, quando olho para trás, quando me vejo antes dos vinte, entre os vinte e os trinta, e até depois disso, mesmo tendo mudado como ser humano, nunca imaginei chegar aos 55 anos de idade.

Espero ter vivido dignamente a maior parte de minha existência, de ter feito coisas boas e de não ter feito merdas que tenham prejudicado pessoas. Se prejudiquei alguém, peço desculpas.

 

Sem pertencimento

Estou num momento de reflexão e de procura, algo muito pessoal, de muita solidão. Mas sou politizado e a consciência me ajuda hoje a seguir adiante. Tenho uma leitura pessimista do futuro da humanidade, mas não é algo determinista, que imobilize a ponto de deixar as coisas como estão.

O ser humano é um animal fantástico e poderia e pode mudar as coisas de uma hora para outra, se quiser e se realizar um conjunto de coisas. Educação pode mudar as pessoas e as pessoas mudarem o mundo. Como diz Paulo Freire, só se educa gente!

Minha mente está como um caleidoscópio de imagens e coisas. Eu poderia fazer muita coisa pela experiência que adquiri nesta caminhada de 55 anos de acasos e esforços. Poderia, mas percebi que o melhor que fiz, por acaso, foi ser sindicalista dos bancários. Me perdi depois disso.

Não sei se farei alguma coisa ainda. Mas estando por aqui, estou cuidando dos meus. E não fazendo mal a ninguém, espero.

william