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quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Livro: Flores das "Flores do mal" de Baudelaire - Guilherme de Almeida



Refeição Cultural 

Janeiro de 2025


"Cuidado ó minha dor, não sejas tão hostil.

Reclamavas a Tarde; ei-la que vem descendo:

Cobre a cidade toda uma treva sutil, 

A uns trazendo a inquietude, a outros a paz trazendo."

(Do poema "Recolhimento")


Finalizei a leitura do livro organizado por Guilherme de Almeida com a "recriação" ou "transmutação" de 21 poemas de Baudelaire para a nossa língua pátria. 

Almeida diz não gostar das expressões "tradução" ou "versão". A introdução dele aos 21 poemas foi escrita em 1943.

A obra clássica de Baudelaire, Flores do mal, é de 1857.


Gostei muito da série de poemas "Spleen" escolhida por Guilherme de Almeida. Ando numa fase meio spleen. O autor explica:

"Aí, Baudelaire, como num intencional descaso - a dar mesmo ideia de 'spleen', isto é, de indiferença e desânimo..." (Almeida)

Ele explica no livro, através de notas, a recriação de poema a poema; muito interessante o trabalho dele. 

"A obra poética de Baudelaire se caracteriza pela inteligência crítica do destino humano e do seu próprio destino, pelo sentimento agudo da vida moderna, da vida da Paris do seu tempo." (Manuel Bandeira)

A edição que tenho ainda presenteia o leitor com uma Apresentação de ninguém menos que Manuel Bandeira. Chique, né?

Só não consegui ler os poemas extras do Apêndice do livro porque estão em francês. Não leio francês ainda.

É isso. Estou hoje um pouquinho menos ignorante que ontem.

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TREVAS SOBRE AS CIDADES

Sigamos aprendendo e estudando as culturas e criações do mundo.

"Cobre a cidade toda uma treva sutil,"

A estrofe que abre o texto posso dedicá-la à trágica realidade brasileira ao me lembrar das posses tenebrosas dos prefeitos ladrões, fascistas e asquerosos que vão destruir as cidades nos próximos quatro anos...

Não há democracia no Brasil. Sobrevivemos sob uma ditadura da plutocracia (capitalismo) dos orçamentos secretos e dinheiros do crime financiando os políticos do sistema. 

William 


Post Scriptum: clicar aqui para ler as outras postagens referentes a Baudelaire.


Bibliografia:

ALMEIDA, Guilherme de. Flores das "Flores do Mal" de Baudelaire. Introdução de Manuel Bandeira. Carvões de Quirino. Ilustrações de Rodin. Clássicos de Bolso, Ediouro/20349.


Leitura de poesia (32) - Spleen, Baudelaire



SPLEEN - BAUDELAIRE


Lembro-me mais do que se eu tivesse mil anos.


Um grande contador cheio de antigos planos,

Versos, cartas de amor, autos, literaturas,

Um cacho de cabelo enrolado em facturas,

Não tem segredos como o meu cérebro inquieto.

É uma pirâmide, um jazigo amplo e repleto:

Não há fossa comum que mais mortos possua.


- Eu sou um cemitério odiado pela lua,

Onde, como remorsos maus, vermes compridos

Andam sempre a atacar meus mortos mais queridos.

Sou como um camarim em que há rosas fanadas,

Toda uma confusão de modas já passadas,

Gravuras de Boucher que ainda aspiram decerto

O perfume sutil de um velho frasco aberto. 


Nada é igual ao torpor desses trôpegos dias,

Quando, ao peso das cãs de antigas invernias,

O tédio, a morna falta de curiosidade, 

Assume as proporções da própria eternidade. 

- Doravante hás de ser, matéria viva! o escombro

De um granito que causa em torno um vago assombro

Perdido nos confins de um Saara brumoso!

Velha esfinge que o mundo ignora, descuidoso,

Esquecida no mapa, e de um feroz desgosto,

Que só sabe cantar aos clarões do sol-posto.


Vocabulário: Guilherme de Almeida, nas explicações em notas sobre o poema:

Spleen: "Aí, Baudelaire, como num intencional descaso - a dar mesmo ideia de 'spleen', isto é, de indiferença e desânimo..."

Contador: "o velho e nobre móvel tão nosso"

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Recriação em português por Guilherme de Almeida 

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COMENTÁRIO:

Me identifiquei com o Eu-lírico do poema, deste spleen de Baudelaire. 

A 2a estrofe, da comparação do móvel velho cheio de coisas em relação ao cérebro com mais coisas ainda, serviu para meu momento atual. 

Meu cérebro, minha pirâmide, meu jazigo. 


"Nada é igual ao torpor desses trôpegos dias,"

E quando penso na falta de consideração dos dias...

"Velha esfinge que o mundo ignora, descuidoso,"


Enfim, terminando o livro de Guilherme de Almeida, já não serei um total ignorante em Baudelaire. 

William 


Bibliografia:

ALMEIDA, Guilherme de. Flores das "Flores do Mal" de Baudelaire. Introdução de Manuel Bandeira. Carvões de Quirino. Ilustrações de Rodin. Clássicos de Bolso, Ediouro/20349.


domingo, 29 de dezembro de 2024

Leitura de poesia (29) - O Gosto do Nada, Baudelaire



O GOSTO DO NADA - BAUDELAIRE


Morno espírito, antigamente afeito à luta,

A Esperança, que te esporeava outrora o ardor

Não te cavalga mais! Deita-te sem pudor,

Cavalo que tropeça em tudo e em vão reluta.


Dorme, ó meu coração; desiste, ó massa bruta!


Espírito vencido, em ti, velho impostor,

Já não tem gosto o amor, nem o tem a disputa;

Não mais a voz do cobre ou da flauta se escuta!

Deixa esta alma sombria, ó Prazer tentador!


Perdeu a Primavera o seu cheiro de flor.


E o Tempo me devora em marcha resoluta,

Como a ampla neve um corpo rijo de torpor;

Contemplo do alto o globo túmido e incolor,

E nele nem procuro o abrigo de uma gruta!


Vais levar-me, avalancha, em tua queda abrupta?


Recriação de Guilherme de Almeida 

Fonte: Flores das "Flores do Mal" de Baudelaire (1943)

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COMENTÁRIO:

"A Esperança, que te esporeava outrora o ardor

Não te cavalga mais! Deita-te sem pudor,"


Nos tempos atuais, nem sei mais dizer se a esperança de amor ainda cavalga em mim... os tempos são de relações utilitárias, utilitaristas. Vai saber quantas pessoas amam só por amar mesmo.

"Dorme, ó meu coração; desiste, ó massa bruta!"

Eu amo só por amar. Tem gente que ama sim, só por amar. Amor qualquer - carnal, filial, contemplativo, de amizade - enfim, tem sim amor por amar. Ainda vejo isso. Não desistamos do amor!

"Perdeu a Primavera o seu cheiro de flor."

Quero crer que ainda temos a primavera e os cheiros diversos das flores, ainda. No entanto, a tendência não é boa, nem para os amores, nem para as flores. As primaveras resistem, os amores ainda existem, mas os riscos são claros.


Neste mês que vai se encerrando, fiz um esforço militante para manter a disciplina que defini a mim mesmo para ter contato diário com a poesia. Nada perdi, só ganhei com isso. 

Sigamos aprendendo coisas novas, pois somos a espécie animal que pode ser educada, como ensina o educador Paulo Freire: só se ensina gente. Sou gente e quero ser ensinado, quero aprender o novo sempre.

William


Bibliografia:

ALMEIDA, Guilherme de. Flores das "Flores do Mal" de Baudelaire. Introdução de Manuel Bandeira. Carvões de Quirino. Ilustrações de Rodin. Clássicos de Bolso, Ediouro/20349.


domingo, 8 de dezembro de 2024

A Comédia Humana - Honoré de Balzac (5)



Refeição Cultural 

"Balzac [...] nos dá, em A comédia humana, a história mais maravilhosamente realista da société francesa [...] descrevendo sob forma de crônica de costumes, quase de ano a ano, de 1816 a 1848, a pressão cada vez maior que a burguesia ascendente exercia sobre a nobreza que se reconstituíra depois de 1815 e que, tant bien que mal, na medida do possível, levantava outra vez a bandeira da vielle politesse française..."* (p. 49)

* Carta de Friedrich Engels a Margaret Harkness em Londres, abril de 1888. (N.E.)


Hoje retomei a leitura de Balzac, iniciada meses atrás. O Volume 1 de minha coleção começa com uma biografia do escritor, feita por Paulo Rónai. 

Na parte que estou, Rónai descreve o quanto Balzac era de direita e conservador. Mesmo assim, sua condição pessoal não prejudicou ou interferiu na qualidade de sua produção textual. 

Uma prova disso é a avaliação que o marxista Engels faz da monumental obra A Comédia Humana, décadas depois do falecimento de Balzac. 

Enfim, vamos terminar o ano lendo e aprendendo mais sobre literatura. 

William Mendes 


domingo, 29 de setembro de 2024

Os miseráveis - Victor Hugo (18)



Refeição Cultural 

Osasco, 29 de setembro de 2024. Domingo. 


INTRODUÇÃO 

"Ai! O que ele queria expulsar, havia entrado; o que ele queria cegar, olhava para ele. Era sua consciência. 

Sua consciência, quer dizer, Deus." (p. 265)


A leitura de hoje do clássico "Os miseráveis" (1862) foi de muita reflexão. 

O Livro VII da primeira parte - Fantine - faz um longo ensaio sobre a consciência e o remorso, sobre decisões a se tomar pensando não só as consequências pessoais quanto as coletivas, que impactam a vida de outras pessoas no ambiente onde se vive.

Jean Valjean, condenado às galés no passado por roubar uma côdea de pão para seus sobrinhos, sobreviveu à pena e retomou sua vida anos depois. 

Ele agora é um homem respeitado, conhecido como senhor Madeleine, e prefeito de Montreuil-sur-Mer. 

Ao saber que vão julgar outro homem por roubos e por se parecer com o condenado Jean Valjean, o verdadeiro Valjean se pega num dilema de difícil solução: se entregar e salvar o outro e voltar às galês, e condenar a coletividade que ajuda em Montreuil-sur-Mer, inclusive a jovem Fantine e Cosette, ou não?

Que dureza!

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Frases que sintetizam ideias do narrador, em tese, de Victor Hugo:

* (...) o fundo comum de ignorância da aldeia e do claustro é uma preparação completa, e nivela imediatamente o camponês ao monge. Mais amplidão ao avental e está pronta a batina." (p. 255)

* "Mentir é o absoluto do mal. Não é possível mentir pouco; quem mente, mente a mentira toda; mentir é a própria face do demônio. Satanás tem dois nomes, chama-se Satanás e chama-se Mentira." (p. 256)

* "O olhar do espírito não pode encontrar, em lugar algum, mais deslumbramentos e mais trevas do que no homem; nem fixar-se em nada mais temível, complicado, misterioso e infinito. Há um espetáculo mais grandioso que o mar, é o céu; há outro mais grandioso que o céu, é o interior da alma." (p. 262)

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Tenho lido muitos livros ao mesmo tempo. 

De romance, estou lendo três autores: Victor Hugo, Machado de Assis e Miguel Nicolelis. Autores de textos refinados.

Pensei em ler mais hoje, mas não deu. Estou curioso para saber a decisão que vai tomar Jean Valjean. 

Abraços, amig@s leitores!

William 


A Comédia Humana - Honoré de Balzac (4)



Refeição Cultural 

"Comparado com Walter Scott, seu discípulo assinala-se por uma particularidade bem francesa, de que, aliás, tinha plena consciência. O romancista escocês idealiza a paixão. Por temperamento ou para agradar a um público maior, desconhece o amor sexual e faz intervir em suas narrativas mulheres sublimes e pálidas, quase figuras de altar. O romancista francês, desde seu primeiro verdadeiro romance, explora todas as riquezas da mina das paixões. 'A paixão é toda a humanidade!', escreverá anos depois no prefácio de A comédia humana, ao reconhecer a sua dívida para com Walter Scott." (p. 41)


Seguindo na leitura da biografia de Honoré de Balzac, Paulo Rónai nos conta que o escritor escocês, Walter Scott, se tornou a referência para ele, pois seus romances históricos eram baseados em documentos, pesquisas e viagens investigativas nos locais que seriam cenários de seus livros. 

A diferença é que ao invés de romances históricos, Balzac atuaria com foco na história dos costumes da sociedade francesa da primeira metade do século XIX, período conhecido como Restauração. 

Walter Scott é outra de minhas lacunas culturais... ainda não li nenhuma obra sua. Tenho que viver bastante para ler autores e obras clássicas que nunca li.

William 


domingo, 15 de setembro de 2024

Os miseráveis - Victor Hugo (17)



Refeição Cultural 

Osasco, 15 de setembro de 2024. Domingo. 


INTRODUÇÃO 

O pequeno Livro VI, contendo dois capítulos, traz uma grande quantidade de informações a respeito dos antecedentes do embate que ocorreu entre Javert e o prefeito Madeleine. 

Os leitores ficam sabendo das suspeitas de Javert em relação ao senhor Madeleine e o que ele fez em relação a isso.

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PRIMEIRA PARTE - FANTINE 

LIVRO VI - JAVERT 

I. Início do repouso

Neste capítulo, vemos o acolhimento que estão dando a Fantine, adoecida dos pulmões. 

O senhor Madeleine está fazendo o que pode por Fantine, após descobrir todo o martírio ao qual ela foi submetida. 

O prefeito está tentando trazer a pequena Cosette para junto de sua mãe, Fantine. 

No entanto, o casal canalha, os Thénardier, entenderam que reter a pequena Cosette é uma forma de obter dinheiro fácil do senhor Madeleine. 

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II. Como Jean pode tornar-se Champ

Capítulo denso. Javert tentou se vingar do prefeito por causa daquela questão de mandar libertar Fantine da prisão. 

Javert entra no escritório do prefeito pedindo a ele que o demita. Disse que o denunciou como um antigo condenado da justiça, um tal Jean Valjean.

"- Eu acreditava nisso. Havia muito eu tinha essas ideias. Alguma semelhança, algumas informações que o senhor mandou pedir em Faverolles, a força que tem nas costas, o caso do velho Fauchelevent, sua perícia em atirar, o jeito que tem de arrastar a perna... que sei eu? Tolices! Mas, enfim, tomava-o por um tal Jean Valjean." (p. 249)

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COMENTÁRIO 

O que mais me chama a atenção no clássico de Victor Hugo é a maneira como o escritor descreve as nuanças da história que está narrando. O cara é bom demais!

É incrível a forma como Hugo coloca Javert justificando ao prefeito por que ele não deve ser perdoado pela autoridade traída, dizendo que ele mesmo, Javert, seria implacável consigo se estivesse na posição do prefeito. 

Amigas leitoras e leitores, vale a pena ler textos como esse!

William 


quinta-feira, 12 de setembro de 2024

A Comédia Humana - Honoré de Balzac (3)



Refeição Cultural 

"(...) Teremos a ocasião de mostrar que nem por isso A comédia humana, este grandioso fresco da sociedade da Restauração, ficaria manchada de parcialidade, pois o gênio do autor felizmente sobrepujou as tendências de seu espírito. Mas o homem nunca se libertaria desse deplorável esnobismo que lhe faria buscar as rodas aristocráticas, estragando-lhe a felicidade." (p. 36)


É muito interessante conhecer a biografia de figura tão singular da literatura universal do século XIX.

Paulo Rónai vai aos poucos nos apresentando não só as características do escritor francês Honoré de Balzac, como a sociedade francesa das primeiras décadas do século XIX. 

"As tendências monarquistas de Balzac originadas em seu esnobismo (lembre-se o caso da partícula 'de'!) devem ter sido fortalecidas pela atmosfera geral da época, em que era moda entre os jovens literatos ser favorável à Restauração - da qual precisamente o futuro apóstolo republicano, Victor Hugo, era o poeta oficial -, pelo exemplo de certos amigos e, principalmente, de certas amigas..." (p. 35)

O biógrafo nesta parte que li nos apresenta alguns casos amorosos do jovem Balzac. Dois deles, com mulheres mais velhas que ele. A principal delas, a sra. de Berny - a "Dilecta" -, e também a duquesa de Abrantes.

Por fim, a última curiosidade, Balzac publicou em escala "industrial" romances ruins sob pseudônimos, ele tentava se sustentar através da literatura. 

"(...) é que não punha seu nome em nenhum deles, mas publicava-os sob pseudônimos - Lord R'hoone (anagrama de Honoré), Horace de Saint-Aubin etc. - ou anonimamente. Mais tarde, embora necessidades de dinheiro o tenham forçado a negociar outra vez os direitos dessas obras, não as quis jamais reconhecer expressamente." (p. 31)

É isso! Legal essa preparação para mergulhar em A Comédia Humana

William 


sábado, 7 de setembro de 2024

Os miseráveis - Victor Hugo (16)



Refeição Cultural 

Osasco, 7 de setembro de 2024. Sábado.


INTRODUÇÃO 

Os últimos capítulos do Livro V - "A decadência" - foram emocionantes. 

A podre Fantine é presa injustamente por Javert, que a condena a seis meses de prisão. No momento da condenação, aparece na delegacia o prefeito Madeleine. 

Javert e Madeleine, cada um com sua autoridade, vão decidir a respeito da vida de Fantine e, consequentemente, sobre o futuro da pequena Cosette.

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PRIMEIRA PARTE - FANTINE 

LIVRO V - A DECADÊNCIA 

XI. Christus nos liberavit

Neste curto capítulo, o narrador põe a nu o capitalismo, ao explicar o benefício para os burgueses de situações como a de Fantine, colocada sob miséria absoluta pelo sistema vigente.

"O que é essa história de Fantine? É a sociedade comprando uma escrava. 

De quem? Da miséria. 

Da fome, do frio, do isolamento, do abandono, da privação. Dolorosa negociação. Uma alma por um pedaço de pão. A miséria oferece, a sociedade aceita." (p. 229)

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XII. A ociosidade do senhor Bamatabois

O senhor em questão é um burguês inútil que ficou humilhando a pobre Fantine até ela reagir às provocações do fdp.

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XIII. Solução de algumas questões de polícia municipal 

"O senhor Madeleine enxugou o rosto e disse:

- Inspetor Javert, ponha essa mulher em liberdade. 

Javert sentiu-se a um passo de enlouquecer. Naquele instante, experimentava, uma após a outra, e quase todas misturadas, as emoções mais violentas que já havia sentido na vida. Ver uma mulher de rua cuspir no rosto de um prefeito era uma coisa tão monstruosa que, em suas suposições mais medonhas, teria considerado um sacrilégio só imaginar essa possibilidade. Por outro lado, no fundo de seu pensamento, fazia confusamente uma aproximação pavorosa entre o que era aquela mulher e o que podia ser aquele prefeito, e entrevia então com horror algo de muito simples naquele prodigioso atentado. Quando viu, porém, aquele prefeito, aquele magistrado, limpar o rosto tranquilamente e dizer: ponha essa mulher em liberdade, teve uma espécie de vertigem de espanto; falharam-lhe igualmente o pensamento e as palavras; tinha ultrapassado os limites do espanto possível. Ficou mudo." (p. 235)

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COMENTÁRIO FINAL 

O desfecho do embate de autoridades entre Javert e Madeleine é empolgante. 

Fantine é salva. A cena é tocante. Vale a leitura!

William 


Post Scriptum: o comentário anterior sobre a leitura pode ser lido aqui.


A Comédia Humana - Honoré de Balzac (2)



Refeição Cultural 

"(...) Surgiam novos poderes: o capital, a imprensa, a publicidade. Patenteava-se a ascensão prodigiosa do dinheiro, que reivindicaria um papel cada vez maior em todos os domínios. Estavam, pois, aparecendo e desenvolvendo-se as forças que passariam a moldar todo o período da história europeia até a Primeira Guerra Mundial. Esboçavam-se, desde então, os tipos humanos que as novas possibilidades não deixariam de produzir. A comédia humana de Balzac contém uma imagem fiel e pormenorizada de toda essa fermentação, de seus resultados visíveis e de suas consequências conjeturáveis; embora concluída em 1850, é um espelho de todo o século XIX. (p. 14/15)


Lendo a biografia do escritor francês Honoré de Balzac, vemos o quanto é válido o esforço e a transpiração, pois de pessoa sem grandes talentos na infância e adolescência, Balzac se tornou um grande escritor dos romances de costumes.

TRATADO DA VONTADE 

"(...) Com uma vontade de ferro realizaria de fato um milagre sem analogias na história das literaturas: de autor péssimo, abaixo de medíocre, que seria até quase os trinta anos, de repente se tornaria um escritor grandioso, criador do gênero mais importante da literatura moderna, o romance de costumes." (p. 23)

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Paulo Rónai nos conta que cada experiência do jovem Balzac serviria anos depois de referência para os romances que desenvolveria. 

E a literatura se firmava junto ao público do século XIX com aquilo que chamaríamos de romance moderno.

"Lembremos que agora o romance não constitui para nós apenas uma diversão. É um importante instrumento de conhecimento indireto, abre ambientes e perspectivas que nunca teríamos oportunidade de conhecer, fornece uma visão prática e real do mundo..." (p. 25)

Seguimos conhecendo um pouco de Honoré de Balzac. 

William 


terça-feira, 3 de setembro de 2024

A Comédia Humana - Honoré de Balzac



Refeição Cultural 

A Comédia Humana é composta por 89 obras de Honoré de Balzac. 

A edição que vou ler é a da Editora Globo, cuja 1ª edição é de 1946-1955. Minha coleção é a 3ª edição, de 2012, organizada sob a regência de Paulo Rónai, intelectual húngaro naturalizado brasileiro. 

Tenho 9 dos 17 volumes previstos para a coleção, da Biblioteca Azul. Os livros foram um presente de minha companheira Ione.

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A VIDA DE BALZAC, POR PAULO RÓNAI

A primeira parte do primeiro volume é uma introdução abordando a biografia do escritor Honoré de Balzac, que nasceu em 1799 e faleceu aos 51 anos, em 1850.

Ao falar sobre estudos biográficos, Rónai afirma que as gerações futuras acabam conhecendo mais os autores do que seus contemporâneos. Concordo com ele.

Cito um esboço rápido do escritor:

"(...) Jovem derrotado logo nos primeiros encontros com o destino, marcado pelo resto da vida com o estigma da incapacidade. Homem já feito, arrastando complexos de inferioridade e procurando compensar a consciência da inata vulgaridade por um esforço desesperado para atingir os cumes brilhantes da vida, a beleza, a nobreza, a fortuna. Velho antes do tempo, esgotado por milhares de noites de trabalho feroz, abatendo-se no limiar da felicidade almejada. Vemos-lhe os olhos em brasa, as faces rechonchudas, o papo do pescoço, os membros sem graça, a gesticulação exuberante, as vestes berrantes..." (p. 12)

Vejam se não é uma das imagens clássicas de Balzac.

A Comédia Humana em uma avaliação de Paulo Rónai:

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"a maior fusão já conseguida na literatura com a vida real"

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Interessante essa observação do crítico. Poderei concordar ou não com ele após ler algumas dezenas de obras de Balzac.

Por enquanto, só conheço o romance "A mulher de trinta anos", que gostei bastante. 

É isso. Começamos com o Balzac também. 

William 


domingo, 1 de setembro de 2024

Os miseráveis - Victor Hugo (15)



Refeição Cultural 

Osasco, 1° de setembro de 2024. Domingo.


INTRODUÇÃO 

Capítulos duríssimos os que li neste domingo! 

É a sociedade capitalista de hoje, sem tirar nem colocar algo mais além do que está descrito por Victor Hugo em 1862.

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PRIMEIRA PARTE - FANTINE

LIVRO V - A DECADÊNCIA 

VI. O pai Fauchelevent

O senhor Madeleine é colocado à prova por Javert, ao se ver obrigado a tentar salvar um velho preso a uma carroça tombada. 

Madeleine, por ser um humanista, não suportaria ver alguém morrer sem nada fazer.

Ele salva o velho se colocando embaixo da carroça e fazendo força até puxarem a vítima. 

Javert disse antes que conhecia apenas um homem com força capaz de tal feito... um condenado da prisão de Toulon. (p. 217)

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VII. Fauchelevent torna-se jardineiro em Paris

A bondade do senhor Madeleine é tanta que ele, além de salvar a vida do velho, dá um jeito de indenizar o coitado, comprando dele a carroça e o cavalo (morto) e arrumando-lhe um trabalho.

Neste capítulo, ficamos sabendo também, que foi nessa época que Fantine conseguiu trabalho na fábrica do senhor Madeleine, ao voltar como estranha para Montreuil-sur-Mer, após deixar a filhinha Cosette com os Thénardier.

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VIII. A senhora Victurnien despende trinta e cinco francos com a moral

"Além disso, mais de uma pessoa invejava seus cabelos loiros e seus dentes brancos." (p. 220)

Neste capítulo, o narrador descreve de forma excepcional como se dão as intrigas e fofocas na sociedade humana. 

Fantine será vítima de uma esbusteira invejosa e a consequência da maldade dela se estenderá até a pequena Cosette.

Por insinuarem que Fantine era prostituta, ela foi demitida da fábrica do senhor Madeleine.

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X. Continuação do sucesso

"O inverno transforma em pedra a água do céu e o coração do homem." (p. 224)

Difícil alguém não se revoltar com a situação vivida por Fantine.

A jovem é uma das vítimas do perverso modelo de "livre mercado" capitalista. 

"Costurava dezessete horas por dia, mas um fornecedor de trabalho das prisões, que fazia as prisioneiras trabalharem por muito pouco, fez de repente os preços baixarem, o que reduziu o salário das costureiras livres a nove soldos. Dezessete horas de trabalho e nove soldos por dia! Os credores estavam mais do que nunca desapiedados; o negociante de móveis, que havia retomado quase tudo, dizia-lhe sem parar:

- Quando vai me pagar, descarada?" (p. 228)

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E AINDA HOJE, SÉCULO E MEIO DEPOIS, AINDA VENDEM A MENTIRA DE "HUMANIZAR O CAPITALISMO"

Em cada cidade do mundo capitalista existem milhares de mulheres vítimas desse sistema, mulheres como Fantine.

É como nos alerta Victor Hugo na abertura da obra: livros como este não serão inúteis enquanto houver "a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância" (p. 37)

Assino com ele!

William


Post Scriptum: comentários sobre a leitura anterior podem ser lidos aqui.


quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Os miseráveis - Victor Hugo (14)



Refeição Cultural 

Osasco, 28 de agosto de 2024. Quarta-feira. 


INTRODUÇÃO

Talvez eu decida mergulhar em minhas leituras, em meu antigo desejo de ler e estudar como a principal coisa a fazer em meu tempo restante de vida, que pode ser de um dia ou de dezenas de anos. 

Se for um longo tempo de leituras e estudos e se eu aproveitá-lo bem, quem sabe possa compartilhar de forma gratuita para meus pares humanos o eventual conhecimento que tenha das coisas.

Quem sabe do amanhã?

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PRIMEIRA PARTE - FANTINE

LIVRO V - A DECADÊNCIA 

V. Vagos clarões no horizonte

O capítulo é dedicado a nos apresentar o personagem Javert. Que medo do sujeito!

Um cão filho de loba:

"Agora, se por um momento admitem conosco que em todo homem há uma das espécies de animais da Criação, será fácil dizer o que era o policial Javert. Os camponeses asturianos têm a convicção de que, em cada ninhada de loba, há um cão, a quem a mãe mata, senão ao crescer lhe devoraria os outros filhotes. 

Deem uma face humana a esse cão, filho de uma loba, e terão Javert." (p. 212)

Viram só?

 "Javert sério era um cão de fila; quando ria era um tigre. De resto, crânio pequeno, mandíbulas grandes, cabelos escondendo a testa e a sobrancelha, entre os olhos, uma ruga central permanente, como uma estrela de raiva, olhar sombrio, boca contraída e temível, um ar de comando feroz." (p. 213)

Caramba, essa descrição de um policial tem quase dois séculos e vejo claramente figura idêntica a essa, aos montes, do governo fascista de São Paulo, batendo nos trabalhadores bancários semana passada... numa atividade de campanha salarial no banco do "satã(der)" aqui na capital paulista. 

E termino com mais uma descrição do cão Javert:

"Era um homem estoico, sério e austero; triste sonhador; humilde e altivo como os fanáticos. Seu olhar era um estilete, frio e perfurante. Toda a sua vida se encerrava nestas duas palavras: velar e vigiar." (p. 213)

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Os miseráveis descritos por Victor Hugo não são diferentes dos nossos miseráveis brasileiros...

William Mendes


Post Scriptum: o texto anterior sobre a leitura do livro pode ser lido aqui.


quinta-feira, 4 de julho de 2024

Os miseráveis - Victor Hugo (13)



Refeição Cultural 

Osasco, 4 de julho de 2024. Quinta-feira. 


INTRODUÇÃO

A França está em ebulição. Nesta semana, as forças políticas progressistas estão nas ruas conclamando às pessoas que votem no domingo (07/07/24) para impedirem a ascensão da extrema-direita: no próximo domingo será o 2° turno das eleições legislativas no país e o partido de Marine Le Pen está à frente das forças de esquerda e de centro.

Ao ver o cenário francês da atualidade, me deu vontade de interromper meus trabalhos domésticos e ler mais uns capítulos de Os miseráveis (1862), de Victor Hugo. A postagem sobre a leitura anterior (ver aqui) me permite seguir com o romance a qualquer tempo.

Ler uma obra como essa de Victor Hugo é ir às bases da mentalidade ocidental após os séculos XIX e XX. Afinal de contas, fomos aculturados no Ocidente com a história da Revolução Francesa e as ideias de Liberdade, Igualmente e Fraternidade. 

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PRIMEIRA PARTE - FANTINE

LIVRO V - A DECADÊNCIA 


I. História de um progresso no ramo dos vidrilhos pretos

"(...) Em fins de 1815, viera estabelecer-se na cidade um homem, um desconhecido, a quem ocorreu a ideia de substituir, na fabricação desses artigos, a resina pela goma-laca e, em particular, no caso dos braceletes, as correntes soldadas por simples correntes engatadas. Essa pequena mudança foi uma revolução. " (p. 201)

Vemos aqui o efeito da criatividade das pessoas como algo modificador da realidade material e social de uma pessoa e de uma comunidade. Esse desconhecido mudou a realidade de Montreuil-sur-Mer, cidade natal de Fantine.

Esse estranho que chegou à localidade com um saco às costas e salvou de um incêndio os filhos do capitão da guarda, ficou conhecido como Pai Madeleine. (p. 202)

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II. Madeleine

"(...) Quem quer que tivesse fome podia ali se apresentar, e estar certo de achar emprego e pão. Pai Madeleine pedia aos homens que tivessem boa vontade, às mulheres, bons costumes, e a todos, probidade." (p. 203)

O desconhecido mudou a história da comunidade. Se transformou num benfeitor.

O fato de recusar fama e poder, até o cargo de prefeito, gerou ciúmes e desconfiança nas pessoas de poderes locais. Já os pobres o adoravam. 

"Como acima se viu, o lugar devia-lhe muito, os pobres deviam-lhe tudo..." (p. 204)

Em 1820, cinco anos após sua chegada a Montreuil-sur-Mer, o desconhecido não teve mais como recusar as nomeações e Pai Madeleine precisou aceitar a missão de ser prefeito da cidade. 

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III. Somas depositadas no Banco Laffitte

Neste capítulo, achei interessante a metáfora da urtiga. 

Após o narrador contar a forma como Madeleine ensina aos camponeses as diversas utilidades da urtiga, vem a metáfora:

"(...) Com mais algum trabalho, a urtiga seria útil; como é desprezada, torna-se nociva, e então a destroem. Quantos homens se parecem com as urtigas!' E acrescentou, depois de uma pausa: 'Meus amigos, lembrem-se disso, não há ervas más, nem homens maus, mas sim maus cultivadores'." (p. 207)

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IV. O senhor Madeleine de luto

"No começo de 1821, os jornais anunciaram a morte do senhor Myriel, bispo de Digne, 'cognominado Monsenhor Bienvenu e falecido com odor de santidade na idade de oitenta e dois anos'." (p. 208)

Quando o bispo de Digne faleceu, ele estava cego e foi cuidado por sua irmã com amor e carinho. O narrador conta o fato do cuidado amoroso do bispo com uma beleza incrível!

Ao se colocar em luto, o prefeito de Montreuil-sur-Mer acabou sendo questionado pelo luto e justificou-se alegando que ele havia sido na juventude criado da família do bispo.

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COMENTÁRIO 

Uma percepção clara quando leio este clássico de Victor Hugo é a respeito da qualidade do texto. A obra é muito bem escrita!

Enfim, sigamos lendo e adquirindo novos conhecimentos. 

William


Bibliografia:


HUGO, Victor. Os miseráveis. Tradução de Regina Célia de Oliveira. Edição especial. São Paulo: Martin Claret, 2014.


terça-feira, 29 de agosto de 2023

Os miseráveis - Victor Hugo (11)



Refeição Cultural 

Osasco, 29 de agosto de 2023. Terça-feira fria. (Havia escrito calor infernal - invernal - quando comecei a postagem na quinta-feira passada...)


Vamos retomar a leitura do clássico de Victor Hugo. Desde a última leitura, caminhei dezenas de quilômetros pensando na vida e na sociedade humana. A leitura anterior do livro de Hugo (ler comentários aqui) me fez refletir muito.

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PRIMEIRA PARTE - FANTINE

LIVRO 3: NO ANO DE 1817

I. O ano de 1817

Muito interessante o panorama de época descrito pelo narrador.

Em um parágrafo de 4 páginas ficamos atualizados sobre a França no ano de 1817.

Tem até descrições irônicas, como esta a seguir:

"(...) Cuvier, um olho no Gênesis e outro na natureza, esforçava-se por agradar à reação carola, pondo os fósseis de acordo com os textos bíblicos e fazendo com que os mastodontes lisonjeassem Moisés..." (p. 159)

E o narrador termina o capítulo com um ensinamento histórico:

"Eis, ao acaso, o que confusamente acontecia no ano de 1817, hoje esquecido. A história negligencia quase todas essas particularidades, e não pode fazer de outro modo, ou seria invadida por um infinito delas. Esses detalhes, que chamamos erradamente de pequenos - não há pequenos fatos na humanidade, nem pequenas folhas na vegetação -, são úteis. É da fisionomia dos anos que se compõem a feição dos séculos." (p. 160)

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II. Duplo quarteto

Neste capítulo nos são apresentadas Fantine e suas amigas - Favourite, Dhalia e Zéphine -, e seus namorados: Tholomyès, Blachevelle, Listolier e Fameuil, respectivamente. Elas são operárias da costura.

"(...) Tinha o nome que agradou ao primeiro que a encontrou, pequenina, andando descalça na rua. Recebeu um nome, como recebia na fronte a água das nuvens quando chovia. Chamavam-na de pequena Fantine. Ninguém sabia mais nada sobre ela. Essa criatura viera assim ao mundo. Aos dez anos deixou a cidade e foi trabalhar na casa de uns sitiantes dos arredores. Aos quinze foi para Paris, 'em busca de fortuna'. Fantine era bela e conservou-se pura o máximo que pôde. Era uma linda moça loira e com belos dentes. Ouro e pérolas eram seu dote, mas seu ouro estava nos cabelos e suas pérolas na boca." (p. 162/163)

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III. Quatro a quatro

É muito interessante a técnica narrativa, é muito moderna. 

O narrador, entendo ser Victor Hugo, dialoga com os leitores no tempo presente, 1862, ou seja, 45 anos após os fatos da história de Fantine, de Jean Valjean e dos demais personagens, 1817. 

O narrador descreve ainda a beleza da jovem Fantine.

"Fantine era bela, sem ter muita consciência disso (...) Aquela filha das sombras possuía nobreza de raça..." (p. 167)

É dito que Fantine é a personificação da alegria e do pudor. 

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IV. Tholomyès está tão alegre que canta uma canção espanhola 

O narrador nos conta a história como se estivesse na nossa presença numa narrativa oral... doido isso!

"Depois do almoço, os quatro casais foram ver, no que então se chamava canteiro do rei, uma planta havia pouco chegada da Índia, cujo nome nos foge agora, e que, naquela ocasião, atraía Paris inteira a Saint-Cloud..." (p. 169)

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V. No restaurante Bombarda

Neste capítulo, um chefe de polícia relata ao rei que a gente pobre dos arredores de Paris é "gente inofensiva", que não é perigosa, e que as pessoas até diminuíram de tamanho e corpo em 50 anos. 

"Os chefes de polícia de Paris não acreditavam ser possível um gato transformar-se em leão; todavia, acontece; esse é o milagre do povo de Paris..." (p. 172)

O narrador alerta, entretanto, que o povo parisiense não é um gatinho não. Tem encarnado a "Liberdade" em si, é um povo "indolente" e de admirável fúria quando visa a glória.

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VI. Capítulo em que todos se adoram

Neste capítulo ameno, uma das personagens - Favourite - cita o sentimento de spleen dos ingleses, ao falar de certa chatice das coisas, das dificuldades. 

Spleen é uma palavra inglesa usada para o sentimento de melancolia e pessimismo.

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VII. Sabedoria de Tholomyès

O personagem Tholomyès é o destaque no capítulo. Faz discursos enaltecendo o prazer e a vida.

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VIII. Morte de um cavalo

Em um certo momento do capítulo, de devaneios dos quatro casais, o narrador nos descreve o esgotamento e morte de uma égua que puxava uma carroça pesada.

"(...) Era uma égua de Beauce, magra, velha, digna de um équarrisseur*, puxando uma charrete muito pesada. Chegando em frente ao Bombarda, o animal, cansado e extenuado, recusou-se a ir mais adiante. Esse incidente fez juntar muita gente. Mal o charreteiro, zangado e praguejando, teve tempo de dizer, com a energia conveniente, a palavra sacramental arre! reforçada por uma implacável chicotada, o animal tombou para não mais se erguer." (p. 181)

Cena triste e que poucos se importaram. Só Fantine se sensibilizou.

Eu me lembrei na hora do personagem de Tolstói, Kholstomer... que história triste de um cavalo!

*A palavra me lembrou mais ainda o personagem de Tolstói: équarrisseur é uma espécie de açougueiro que abate animais impróprios ao consumo para tirar-lhes o que ainda é aproveitável. 

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IX. Alegre fim da alegria

No capítulo final deste livro 3, os quatro rapazes namorados das garotas, simplesmente inventam uma surpresa e abandonam as quatro, deixando uma carta dizendo que foi bom enquanto durou o namoro deles. Agora eles teriam que voltar para suas famílias abastadas para serem figuras importantes na sociedade francesa...

Só neste momento nós leitores ficamos sabendo que Fantine tinham em casa uma criança...

"Uma hora depois, porém, ao entrar em seu quarto, chorou. Como dissemos, este era seu primeiro amor, dera-se a Tholomyès como a um marido, e a pobre moça tinha uma criança." (p. 185)

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Comentário

Gastei quase uma semana para ler essa parte de Os miseráveis. Estou um pouco travado nas leituras. É meu psicológico nesses dias.

Aliás, este mês de agosto é o primeiro mês do ano no qual não li nenhum livro por completo. 

Andei muito, fiz uma romaria de uns 80 Km, tive um pouco de contato com algumas formas de cultura como, por exemplo, o estudo de línguas e linguagem, mas não li obra literária completa.

Até cheguei a começar uma peça de Shakespeare da coletânea de mais de vinte peças que tenho dele, mas não dei sequência.

É isso, seguimos as leituras, mesmo que lentamente, mas seguimos.

William


quinta-feira, 20 de julho de 2023

Os miseráveis - Victor Hugo (9)



Refeição Cultural

Osasco, 20 de julho de 2023. Quinta-feira.


Após uma noite fria, levantei-me por volta de onze horas. Estava com fome. Fome? Por acaso, eu sei o que é fome para dizer que estava com fome? Francamente, não sei o que é fome. Toda vez que a barriga rói, algo biológico de meu corpo animal, sinto uma espécie de vergonha porque posso saciar a fome quando e como quiser... milhões de irmãs e irmãos brasileiros não podem. 

Milhões de pessoas no mundo estão com fome neste momento. E não é por falta de comida disponível. É por decisão política dos homens. É o capitalismo, comida não é comida, comida é mercadoria no capitalismo.

Pensei no Henrique, um ser humano que fica pelas ruas aqui da região. Como terá passado a noite? Como saber? Será que já comeu alguma coisa hoje?

Após um banho quente para destravar o corpo, fui buscar pão. Com a moeda, o meio de troca no capitalismo, fui até a padaria adquirir essa mercadoria, pão. O valor de uso do pão é ser alimento, comida. 

Num dos faróis estava aquele senhor dos cachorros. Outro ser humano que fica pelas ruas da região. Ele tem vários cachorros. Hoje, ele está no farol onde normalmente fica outro rapaz pedindo dinheiro com uma plaquinha e um copinho balançando moedas.

Comecei a leitura do livro dois da primeira parte "Fantine", de Os miseráveis. No cenário do romance de Victor Hugo, o capitalismo está em sua primeira fase na França, no período após a Revolução Francesa, a burguesia e os demais grupos de poder disputam espaço. Os pobres, os miseráveis, seguem se ferrando como sempre ao longo dessas disputas de poder na parte de cima da sociedade de reis, nobres, igreja e burguesia.

No cenário frio dos alpes aparece a figura de um andarilho, cabeça raspada, roupas surradas, um saco nas costas, chegando a Digne e tentando se hospedar e comer alguma coisa, está faminto. O narrador diz que ele deve ter pouco menos de 50 anos.

O andarilho tentou se hospedar por três vezes e pagar por um prato de comida. Foi escorraçado e não conseguiu hospedagem nem comida. Está faminto e com frio. O nome do andarilho é Jean Valjean.

"Depois que transpôs a cerca, não sem dificuldade, vendo-se outra vez no meio da rua, só, sem asilo, sem teto, sem abrigo, expulso até daquela cama de palha e daquela miserável casinha de cachorro, mais deixou-se cair do que sentou-se sobre uma pedra, e parece que alguém que passava o ouviu exclamar: 'Nem sequer sou um cão!'" (p. 108)

A fome. Os miseráveis...

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PRIMEIRA PARTE - FANTINE

LIVRO 2: A QUEDA

I. O fim de um dia de caminhada

Este é o capítulo no qual os leitores conhecem Jean Valjean. 

"(...) Era um homem ainda no vigor da idade, robusto, encorpado, de estatura mediana. Poderia ter uns quarenta e seis ou quarenta e oito anos. Escondia-lhe parte do rosto, queimado pelo sol e pelo calor, e banhado de suor, um boné de pala de couro (...) na mão, um enorme cajado nodoso; os pés sem meias calçando sapatos ferrados; a cabeça rapada e uma longa barba." (p. 99)

Já descrevi acima a forma lamentável como foi tratado na cidade de Digne.

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II. A prudência aconselhada pela sabedoria

Neste capítulo, vemos como a igreja e seus dogmas dominaram por séculos a nossa vida, sendo religiosa ou não a pessoa no mundo ocidental.

O bispo de Digne reflete sobre um livro chamado "Deveres" e a importância dele para padres e doutores determinarem os deveres de todo mundo na sociedade.

A descrição é de um cenário do início do século 19 na França. O cenário no qual o senhor Myriel demonstra como os dogmas da igreja pautam a sociedade humana daquela época poderia ser repetido para demonstrar que aqueles dogmas ainda valiam para o mundo no qual nasci em 1969 no Brasil. É mole?

"(...) O livro dividia-se em duas partes: a primeira tratava dos deveres de todos, a segunda tratava dos deveres de cada um, segundo a classe a que pertence. Os deveres de todos são os principais. Há quatro que são os indicados por São Mateus: deveres para com Deus (Mt 6), deveres para consigo mesmo (Mt 5, 29-30), deveres para com o próximo (Mt 7, 12), deveres para com as criaturas (Mt 6, 20-25). Quanto aos outros deveres, o bispo os havia encontrado indicados e prescritos em outras fontes; aos soberanos e aos súditos, na Epístola aos Romanos; aos magistrados, às esposas, às mães e aos jovens, em São Pedro; aos maridos, aos pais, aos filhos e aos criados, na Epístola aos Efésios; aos fiéis, na Epístola aos Hebreus; às virgens, na Epístola aos Coríntios. Com todas essas prescrições, ele formava laboriosamente um todo harmônico, que tencionava apresentar às almas." (p. 110)

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III. Heroísmo da obediência passiva

Neste capítulo, Jean Valjean entra na casa do religioso e se apresenta.

"- Bem, meu nome é Jean Valjean. Era presidiário, passei dezenove anos na cadeia. Fui liberado há quatro dias e estou indo para Portarlier, que é meu destino. Quatro dias andando desde Toulon. Hoje andei doze léguas a pé. No fim da tarde, chegando a este lugar, fui a uma hospedaria, mas mandaram-me embora por causa do passaporte amarelo que eu tinha apresentado na prefeitura. Era preciso. Fui a outra pousada; disseram-me: 'Vá embora!' Assim, tenho andado de um lado para o outro, sem que ninguém queira acolher-me. Bati à porta da cadeia, o carcereiro não quis abrir. Entrei numa casinha de cachorro; o cão me mordeu e expulsou como se ele fosse um homem; diriam até que ele sabia quem eu era! (...) Estou muito cansado, doze léguas a pé... e com bastante fome. Posso ficar?" (p. 114)

E ele foi aceito naquela casa, foi convidado a se sentar para cear e a dormir numa cama com lençóis limpos.

No passaporte daquele homem vinha escrito:

"Jean Valjean, condenado libertado, natural de... (isso é indiferente para vocês), passou dezenove anos na prisão. Cinco anos por roubo com arrombamento, catorze por tentar quatro vezes evadir-se. É um homem muito perigoso". (p. 115)

Jean Valjean foi preso e condenado por roubar um pão para alimentar sua irmã viúva e sete crianças pequenas... ele tinha uns 25 anos de idade.

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IV. Pormenores sobre as queijarias de pontarlier

Neste capítulo, a irmã do bispo de Digne, a senhorita Baptistine, troca carta com uma amiga e descreve detalhes do que aconteceu naquela noite na qual Jean Valjean foi acolhido na casa deles.

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V. Tranquilidade

Neste capítulo, o bispo de Digne acompanha o hóspede até seu quarto para descansar numa cama decente, coisa que Jean Valjean não fazia há dezenove anos.

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Comentário

A partir daqui, passamos a acompanhar um dos mais carismáticos personagens da literatura mundial. Um homem simples que passou a maior parte da vida preso por causa de uma côdea de pão subtraída de um estabelecimento comercial para saciar a fome de sobrinhos e da irmã viúva.

Jean Valjean é como uma dessas pessoas de nossa atualidade que acaba sendo presa e condenada por roubar uma barra de chocolate ou um pacote de bolacha. Mais de um terço dos mais de 800 mil presos no Brasil não foram julgados nem condenados. 

Mas são pessoas como Jean Valjean... se chegarem a ser julgadas serão condenadas pois a justiça deve ser implacável no capitalismo com a questão da "corrupção" praticada pelos pobres e miseráveis. Há que se dar o exemplo...

A fome... ontem e hoje. Dois séculos depois do cenário do romance de Victor Hugo, milhões de seres humanos passam fome. 

É o capitalismo que determina por questões políticas que comida não é comida, é mercadoria, é capital.

Que desgraça isso! "Miséria miséria, em qualquer canto..."

William


Post Scriptum - Para ler o texto anterior sobre essa leitura, é só clicar aqui. O comentário seguinte sobre o clássico pode ser lido aqui.


Bibliografia:

HUGO, Victor. Os miseráveis. Tradução de Regina Célia de Oliveira. Edição especial. São Paulo: Martin Claret, 2014.

terça-feira, 11 de julho de 2023

Os miseráveis - Victor Hugo (8)



Refeição Cultural

Osasco, 11 de julho de 2023. Terça-feira.


PRIMEIRA PARTE - FANTINE

LIVRO I: UM JUSTO

XI. Uma restrição

Neste capítulo, o narrador ou Victor Hugo, pois ainda não concluí se o narrador transmite as visões de mundo do escritor ou não - me parece que o narrador demiurgo é o Hugo -, apresenta uma restrição a uma atitude do bispo de Digne, o senhor Myriel, em relação ao comportamento dele no que diz respeito a Napoleão Bonaparte.

"A não ser por isso, ele era e foi, em tudo, justo, verdadeiro, equitativo, inteligente, humilde e digno; benéfico e benevolente, que é outra espécie de beneficência. Era um padre, um sábio e um homem. Até mesmo, é preciso dizer, nessa opinião política que acabamos de reprovar-lhe, e que estamos dispostos a julgar quase severamente, era tolerante e fácil, mais talvez do que nós, que aqui falamos." (p. 88)

Vale lembrar que o Monsenhor Bienvenu chegou a esta posição na hierarquia da Igreja por ter caído nas graças do imperador num encontro fortuito (descrito no início do livro).

O narrador vê como certa ingratidão o descaso do Bispo de Digne na hora da queda de Napoleão. O bispo lhe virou as costas. O narrador diz que o povo só perdoou o bispo porque o amava. Bonaparte era muito querido pelo povo.

Antes dessa avaliação, o narrador nos conta que o bispo era malquisto por seus pares acima e abaixo na hierarquia de poder da igreja porque fazia voto de pobreza e não compartilhava da suntuosidade da função. Ele chegou a se retirar de um importante sínodo dizendo que incomodava o ambiente com seus ares de rústico e:

"Uma outra vez disse ainda: O que querem? Aqueles monsenhores são príncipes. E eu, não passo de um pobre bispo aldeão." (p. 85)

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XII. Solidão de Monsenhor Bienvenu

"Diga-se de passagem, o sucesso é algo bastante repugnante. Sua falsa semelhança com o mérito engana os homens. Para a multidão, o sucesso tem quase o mesmo perfil que a superioridade (...) Ser bem-sucedido: teoria. Prosperidade supõe capacidade. Ganhe na loteria e será considerado um homem hábil. Quem triunfa é venerado. Nasça com sorte e pronto, o resto virá por si; seja feliz, e será visto como grande..." (p. 90)

Interessante. Victor Hugo aponta bem antes no tempo - mais de século - questões da realidade atual das redes sociais. O que ele descreve ali é semelhante ao que virou a vida humana e social no século 21: "youtubers" e pessoas "famosas" do nada viram "influenciadores" com milhões de seguidores, influenciadores sem conhecimento algum de nada... e ficam ricos, e muitas vezes poderosos, e muitas vezes induzem de forma perigosa o comportamento de milhões de pessoas.

E quem se mantém nos seus princípios se torna um solitário, alguém até para se evitar. Atualíssimo! Uma pessoa como ele poderia ser hoje um "cancelado".

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XIII. Em que acreditava

"Monsenhor Bienvenu havia sido, em outros tempos, se dermos crédito às histórias sobre sua juventude e virilidade, um homem de paixões, e violento, talvez. Sua mansidão universal era menos um instinto da natureza que o resultado de uma grande convicção filtrada em seu coração através da vida, e lentamente absorvida por ele, pensamento por pensamento; pois um caráter, assim como uma rocha, pode ser escavado por gotas de água. E essas escavações nunca mais se desfazem; essas formações são indestrutíveis." (p. 92)

Essa caracterização do personagem Myriel é bem interessante. Penso muito sobre isso em minha vida. Poderia dizer que sei o que o narrador está descrevendo: as pessoas podem mudar por convicção!

O senhor Myriel organizou sua vida de forma a seguir os dogmas religiosos. Sem analisar Deus; só contemplar tudo o que fora feito por Ele já bastava. E pronto.

"(...) Não analisava Deus; deslumbrava-se com Ele. Refletia sobre esses magníficos encontros de átomos que dão forma à matéria, revelam as forças ao constatá-las, criam as individualidades na unidade, as proporções na extensão, o inumerável no infinito, e, por meio da luz, produzem a beleza. Esses encontros se enlaçam e se desenlaçam sem cessar, daí resultando a vida e a morte." (p. 94)

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XIV. O que pensava

O monsenhor Bienvenu pensava que o questionamento aos dogmas da igreja se fossem feitos, deveriam ser feitos por gênios, que não era o caso dele porque "O que iluminava aquele homem era o coração. Sua sabedoria era feita da luz que nele existia".

O narrador caracteriza assim o senhor Myriel:

"Há homens que trabalham na extração do ouro; ele trabalhava na extração da piedade. Sua mina era a miséria universal. O sofrimento geral era sempre uma ocasião para a bondade. Amai-vos uns aos outros, era sua afirmação mais completa; não desejava nada mais que isso, ali estava toda a sua doutrina." (p. 96)

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COMENTÁRIO

Terminei a leitura do Livro 1 da primeira parte "Fantine".

Conheci o personagem Myriel, padre que virou bispo de Digne após cair nas graças de Napoleão Bonaparte num encontro fortuito. Ele agora é o Monsenhor Bienvenu e vive com sua irmã Baptistine e com a criada Magloire, ambas mais novas que ele, que tem 75 anos.

Percebi que o narrador em terceira pessoa é um demiurgo, sabe tudo a respeito das personagens e da história que vai nos contar, conversa com o leitor ao longo do romance. O livro foi lançado em 1862, a técnica de Victor Hugo é bem interessante.

Vou ler esse romance durante meses. Normal. É como se assistisse a capítulos de novelas ou episódios de séries nos dias de hoje.

William


Post Scriptum - Para ler o texto anterior sobre essa leitura, é só clicar aqui. O texto seguinte sobre o clássico de Victor Hugo pode ser lido aqui.


Bibliografia:

HUGO, Victor. Os miseráveis. Tradução de Regina Célia de Oliveira. Edição especial. São Paulo: Martin Claret, 2014.

sábado, 1 de julho de 2023

Os miseráveis - Victor Hugo (7)



Refeição Cultural

Osasco, 01 de julho de 2023. Sábado.


Os miseráveis tem diálogos entre os personagens que colocam o leitor a refletir. Às vezes, a reflexão parte da descrição do próprio narrador sobre alguma característica de personagem ou evento ocorrido.

Nos capítulos abaixo, fiquei pensativo sobre a questão de haver ou não vida após a morte, diálogo entre um senador e o bispo. O senador repete o argumento já comum à época sobre a utilidade para a burguesia, nobreza e a igreja de se fazer crer na questão de alguma compensação após a morte para os miseráveis e despossuídos da Terra.

Outro diálogo interessante é entre o bispo de Digne e um velho à beira da morte num casebre afastado de tudo. O moribundo é um "convencional", um revolucionário sobrevivente dos julgamentos posteriores ao período do terror, 1793. A comunidade local tem desprezo por ele, e não se conforma dele não ter sido ao menos banido, já que não foi decapitado. Ele sobreviveu aos julgamentos porque não se provou que ele tenha sido um dos que apoiaram a decapitação do rei.

O romance traz muita história, o tempo todo.

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PRIMEIRA PARTE - FANTINE

LIVRO 1: UM JUSTO

VII. Cravatte

Neste capítulo, vemos como o bispo de Digne é um destemido. Ele foi pregar nas montanhas mesmo sabendo que lá havia bandidos muito perigosos. Voltou vivo e ainda trouxe de volta alguns pertences roubados por eles na sacristia de uma igreja local.

"Nunca temamos nem os ladrões nem os assassinos. Estes são perigos externos, pequenos perigos. Temamos a nós mesmos. Os preconceitos, esses são os ladrões, os vícios, esses são os assassinos. Os grandes perigos estão dentro de nós. Que importa o que ameaça nossa vida ou nossas bolsas?! Preocupemo-nos apenas com o que ameaça nossa alma." (p. 67)

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VIII. Filosofia depois de beber

Este é o capítulo do bom diálogo entre o senador e o bispo. Os argumentos do senador sobre não existir nada desse mundo místico pregado pela igreja é interessante. Imagino a leitura à época da circulação do livro na França.

"(...) A vida é tudo! Que o homem tenha um outro futuro em outro plano, acima, abaixo, em qualquer lugar, não creio em uma só palavra! Recomendam-me desapego e sacrifício, devo ficar atento a tudo que faço, preciso quebrar a cabeça a respeito do bem e do mal, do justo e do injusto, do lícito e do ilícito. Por que? Porque terei de prestar contas sobre minhas ações. Quando? Depois da morte. Que belo sonho! Após minha morte, bem esperto quem me pegar! Imaginem se é possível uma sombra agarrar um punhado de cinzas! Falemos a verdade, nós, os iniciados..." (p. 69)

E Deus?

"(...) E depois veremos Deus. Ora! Tolices, todos esses paraísos! Deus é uma futilidade monstro. Eu não diria isso no Moniteur, caramba! Mas posso cochichar, aqui entre amigos. Inter pocula. Sacrificar a Terra pelo paraíso é largar a presa pela sombra! Ser enganado pelo paraíso! Nada mais tolo! Sou o nada. Chamo-me senhor conde Nada, senador. Eu existia antes de meu nascimento? Não. Existirei depois de minha morte? Não. O que sou? Um pouco de pó agregado por um organismo. O que tenho a fazer sobre esta terra? Tenho a escolha. Sofrer ou gozar. Onde me levará o sofrimento? Ao nada. Mas terei sofrido. Onde me levará o gozo? Ao nada. Mas terei gozado. Minha escolha está feita. É preciso ser devorador ou devorado. Eu devoro. Antes ser dente do que erva. Essa é a minha verdade..." (p. 70)

Deus é útil para os miseráveis, para aqueles que não têm nada...

"(...) Não me deixo levar por frivolidades! Depois disso, é preciso haver alguma coisa para aqueles que estão por baixo, para os pés-descalços, para os de pequeno ganho, para os miseráveis. Fazem-nos engolir as lendas, as quimeras, a alma, a imortalidade, o paraíso, as estrelas. E eles mastigam tudo. E colocam em seu pão seco. Quem não tem nada tem o bom Deus. É o mínimo. De minha parte, não coloco obstáculos, mas fico com o senhor Naigeon. O bom Deus é bom para o povo!" (ibidem)

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IX. Retrato do irmão feito pela irmã

Neste capítulo vemos uma correspondência trocada entre a senhora Baptistine, irmã do bispo de Digne, e a viscondessa de Boischevron. Nela, se conta as aventuras do bispo, como aquela de ir às montanhas e lidar com os bandidos.

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X. O bispo em presença de uma luz desconhecida

Este é o capítulo do diálogo do Monsenhor Bienvenu e o convencional G., da época da Revolução Francesa.

Foi um capítulo um pouco mais longo que os anteriores. Diálogo bem interessante entre o religioso e o ateu.

Uma cena bonita é no momento da morte do revolucionário, quando o bispo lamenta que ele seja ateu. E ele diz:

"- Existe o infinito. Ele está aí. Se o infinito não tivesse um 'eu', o eu seria o seu limite; e ele não seria infinito; em outras palavras, não existiria. Ora, ele existe. Logo tem um eu. Esse eu do infinito é Deus." (p. 83)

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NÃO SOU NADA, MAS SE ESTOU POR AQUI...

"Sou o nada. Chamo-me senhor conde Nada, senador. Eu existia antes de meu nascimento? Não. Existirei depois de minha morte? Não. O que sou? Um pouco de pó agregado por um organismo..."


Sábado à tarde. Mesmo sonolento, olhos pesados ao tentar ler Os miseráveis, tenho a consciência do que sou. Não posso apagar o que sei. E isso gera naquele que sabe, naquele que não é ignorante, um dever de fazer.

As descobertas da ciência ao longo do tempo estão disponíveis a todas as pessoas que têm algum acesso às informações. 

O conhecimento que tenho sobre saúde e sobre o corpo de um animal humano, e sobre carga genética, e sobre estilo de vida, me geram o dever de saber que devo praticar algum tipo de exercício aeróbico, além de regular o que como.

Fiquei pensando sobre a vida e sobre o que ainda gostaria de fazer enquanto corria e me esforçava para manter a respiração num bom nível na subidona perto de casa. E o quadril me lembrando o tempo todo que ele existe...

Por que preciso correr? Porque sem uma atividade aeróbica que funcione como atividade que controle os níveis de colesterol ruim no sangue e que me ajude a controlar a pressão arterial eu estaria me submetendo a um risco maior de interromper a vida ou a qualidade de vida caso sobreviva a um infarto ou acidente vascular.

O que ainda quero fazer? Quais metas tenho para perseguir neste momento de minha existência? Já que não tenho o tempo passado, só o tempo presente, o que gostaria de fazer e por que não faço hoje, amanhã?

O que gostaria de fazer que está ao meu alcance fazer?

Gostaria de diminuir a injustiça no mundo, de acabar com a miséria. Ter a consciência da injustiça e da miséria do mundo humano me faz infeliz a não caber em mim. 

Resolver isso não está ao meu alcance, não é algo que eu possa resolver ou realizar hoje ou amanhã...

Mas e então, o que faço para gerar algum nível de satisfação hoje ou amanhã? E que eu não me sinta mal por isso?

Miséria miséria em qualquer canto...

William


Post Scriptum: ver aqui a postagem anterior. A postagem seguinte sobre o clássico pode ser lida aqui.


Bibliografia:

HUGO, Victor. Os miseráveis. Tradução de Regina Célia de Oliveira. Edição especial. São Paulo: Martin Claret, 2014.