Refeição Cultural
Osasco, 20 de julho de 2023. Quinta-feira.
Após uma noite fria, levantei-me por volta de onze horas. Estava com fome. Fome? Por acaso, eu sei o que é fome para dizer que estava com fome? Francamente, não sei o que é fome. Toda vez que a barriga rói, algo biológico de meu corpo animal, sinto uma espécie de vergonha porque posso saciar a fome quando e como quiser... milhões de irmãs e irmãos brasileiros não podem.
Milhões de pessoas no mundo estão com fome neste momento. E não é por falta de comida disponível. É por decisão política dos homens. É o capitalismo, comida não é comida, comida é mercadoria no capitalismo.
Pensei no Henrique, um ser humano que fica pelas ruas aqui da região. Como terá passado a noite? Como saber? Será que já comeu alguma coisa hoje?
Após um banho quente para destravar o corpo, fui buscar pão. Com a moeda, o meio de troca no capitalismo, fui até a padaria adquirir essa mercadoria, pão. O valor de uso do pão é ser alimento, comida.
Num dos faróis estava aquele senhor dos cachorros. Outro ser humano que fica pelas ruas da região. Ele tem vários cachorros. Hoje, ele está no farol onde normalmente fica outro rapaz pedindo dinheiro com uma plaquinha e um copinho balançando moedas.
Comecei a leitura do livro dois da primeira parte "Fantine", de Os miseráveis. No cenário do romance de Victor Hugo, o capitalismo está em sua primeira fase na França, no período após a Revolução Francesa, a burguesia e os demais grupos de poder disputam espaço. Os pobres, os miseráveis, seguem se ferrando como sempre ao longo dessas disputas de poder na parte de cima da sociedade de reis, nobres, igreja e burguesia.
No cenário frio dos alpes aparece a figura de um andarilho, cabeça raspada, roupas surradas, um saco nas costas, chegando a Digne e tentando se hospedar e comer alguma coisa, está faminto. O narrador diz que ele deve ter pouco menos de 50 anos.
O andarilho tentou se hospedar por três vezes e pagar por um prato de comida. Foi escorraçado e não conseguiu hospedagem nem comida. Está faminto e com frio. O nome do andarilho é Jean Valjean.
"Depois que transpôs a cerca, não sem dificuldade, vendo-se outra vez no meio da rua, só, sem asilo, sem teto, sem abrigo, expulso até daquela cama de palha e daquela miserável casinha de cachorro, mais deixou-se cair do que sentou-se sobre uma pedra, e parece que alguém que passava o ouviu exclamar: 'Nem sequer sou um cão!'" (p. 108)
A fome. Os miseráveis...
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PRIMEIRA PARTE - FANTINE
LIVRO 2: A QUEDA
I. O fim de um dia de caminhada
Este é o capítulo no qual os leitores conhecem Jean Valjean.
"(...) Era um homem ainda no vigor da idade, robusto, encorpado, de estatura mediana. Poderia ter uns quarenta e seis ou quarenta e oito anos. Escondia-lhe parte do rosto, queimado pelo sol e pelo calor, e banhado de suor, um boné de pala de couro (...) na mão, um enorme cajado nodoso; os pés sem meias calçando sapatos ferrados; a cabeça rapada e uma longa barba." (p. 99)
Já descrevi acima a forma lamentável como foi tratado na cidade de Digne.
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II. A prudência aconselhada pela sabedoria
Neste capítulo, vemos como a igreja e seus dogmas dominaram por séculos a nossa vida, sendo religiosa ou não a pessoa no mundo ocidental.
O bispo de Digne reflete sobre um livro chamado "Deveres" e a importância dele para padres e doutores determinarem os deveres de todo mundo na sociedade.
A descrição é de um cenário do início do século 19 na França. O cenário no qual o senhor Myriel demonstra como os dogmas da igreja pautam a sociedade humana daquela época poderia ser repetido para demonstrar que aqueles dogmas ainda valiam para o mundo no qual nasci em 1969 no Brasil. É mole?
"(...) O livro dividia-se em duas partes: a primeira tratava dos deveres de todos, a segunda tratava dos deveres de cada um, segundo a classe a que pertence. Os deveres de todos são os principais. Há quatro que são os indicados por São Mateus: deveres para com Deus (Mt 6), deveres para consigo mesmo (Mt 5, 29-30), deveres para com o próximo (Mt 7, 12), deveres para com as criaturas (Mt 6, 20-25). Quanto aos outros deveres, o bispo os havia encontrado indicados e prescritos em outras fontes; aos soberanos e aos súditos, na Epístola aos Romanos; aos magistrados, às esposas, às mães e aos jovens, em São Pedro; aos maridos, aos pais, aos filhos e aos criados, na Epístola aos Efésios; aos fiéis, na Epístola aos Hebreus; às virgens, na Epístola aos Coríntios. Com todas essas prescrições, ele formava laboriosamente um todo harmônico, que tencionava apresentar às almas." (p. 110)
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III. Heroísmo da obediência passiva
Neste capítulo, Jean Valjean entra na casa do religioso e se apresenta.
"- Bem, meu nome é Jean Valjean. Era presidiário, passei dezenove anos na cadeia. Fui liberado há quatro dias e estou indo para Portarlier, que é meu destino. Quatro dias andando desde Toulon. Hoje andei doze léguas a pé. No fim da tarde, chegando a este lugar, fui a uma hospedaria, mas mandaram-me embora por causa do passaporte amarelo que eu tinha apresentado na prefeitura. Era preciso. Fui a outra pousada; disseram-me: 'Vá embora!' Assim, tenho andado de um lado para o outro, sem que ninguém queira acolher-me. Bati à porta da cadeia, o carcereiro não quis abrir. Entrei numa casinha de cachorro; o cão me mordeu e expulsou como se ele fosse um homem; diriam até que ele sabia quem eu era! (...) Estou muito cansado, doze léguas a pé... e com bastante fome. Posso ficar?" (p. 114)
E ele foi aceito naquela casa, foi convidado a se sentar para cear e a dormir numa cama com lençóis limpos.
No passaporte daquele homem vinha escrito:
"Jean Valjean, condenado libertado, natural de... (isso é indiferente para vocês), passou dezenove anos na prisão. Cinco anos por roubo com arrombamento, catorze por tentar quatro vezes evadir-se. É um homem muito perigoso". (p. 115)
Jean Valjean foi preso e condenado por roubar um pão para alimentar sua irmã viúva e sete crianças pequenas... ele tinha uns 25 anos de idade.
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IV. Pormenores sobre as queijarias de pontarlier
Neste capítulo, a irmã do bispo de Digne, a senhorita Baptistine, troca carta com uma amiga e descreve detalhes do que aconteceu naquela noite na qual Jean Valjean foi acolhido na casa deles.
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V. Tranquilidade
Neste capítulo, o bispo de Digne acompanha o hóspede até seu quarto para descansar numa cama decente, coisa que Jean Valjean não fazia há dezenove anos.
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Comentário
A partir daqui, passamos a acompanhar um dos mais carismáticos personagens da literatura mundial. Um homem simples que passou a maior parte da vida preso por causa de uma côdea de pão subtraída de um estabelecimento comercial para saciar a fome de sobrinhos e da irmã viúva.
Jean Valjean é como uma dessas pessoas de nossa atualidade que acaba sendo presa e condenada por roubar uma barra de chocolate ou um pacote de bolacha. Mais de um terço dos mais de 800 mil presos no Brasil não foram julgados nem condenados.
Mas são pessoas como Jean Valjean... se chegarem a ser julgadas serão condenadas pois a justiça deve ser implacável no capitalismo com a questão da "corrupção" praticada pelos pobres e miseráveis. Há que se dar o exemplo...
A fome... ontem e hoje. Dois séculos depois do cenário do romance de Victor Hugo, milhões de seres humanos passam fome.
É o capitalismo que determina por questões políticas que comida não é comida, é mercadoria, é capital.
Que desgraça isso! "Miséria miséria, em qualquer canto..."
William
Post Scriptum - Para ler o texto anterior sobre essa leitura, é só clicar aqui. O comentário seguinte sobre o clássico pode ser lido aqui.
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