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domingo, 6 de junho de 2021

Odisseia (Homero) - Ulisses chega a Ítaca (XIII)



Refeição Cultural

"Adormecido Ulisses desembarcam,
Nas mesmas colchas e lençóis envolto;
À sombra da oliveira os dons colocam,
À larga obtidos por mercê de Palas,
Fora da estrada, a fim que não lhos toque,
Antes que ele desperte um viandante,
Isto acabando, para a Esquéria voltam.
" (LIVRO XIII, v. 86-92, p. 239)


Finalmente, Ulisses chega a Ítaca, trazido pelos Feácios. As notas da edição que tenho são muito legais. O professor Medina nos explica que este Livro XIII da epopeia equivale ao início da segunda parte da Odisseia

"Calam-se todos: refere-se ao final da narração de Ulisses, contida nos livros IX-XII, feita para Alcino, e que conta os fatos que lhe haviam ocorrido desde a saída de Tróia até sua chegada à ilha de Calipso. O que lhe vai ocorrer depois, ou seja, o período que vai desde esta chegada até sua boa acolhida entre os Feácios é algo que já foi narrado por Ulisses a Alcino e Areta no fim do livro VII. O livro XIII se distingue totalmente dos anteriores e dá de fato início à segunda parte da Odisseia, onde a ação se desenvolverá de maneira bem mais lenta. Ulisses, uma vez acabado seu 'romance de aventuras', é novamente focalizado na corte de Alcino, e o rei dos Feácios vai preparar agora a viagem de volta do herói a Ítaca. Ora, tanto a viagem como o sonho de Ulisses lembram novamente uma profunda experiência dos limites do homem, arrematada simbolicamente com a transformação do navio dos Feácios num rochedo (daí por diante Atena se faz mais presente); Alcino pode ser, pois, entendido como o rei barqueiro que conduz as almas à ilha dos Bem-Aventurados, sendo, pois, todo episódio dos Feácios considerado como um poema escatológico." (Nota 1, LIVRO XIII, p. 235, Antonio Medina)

Outras duas partes deste livro (ou canto) merecem destaque: a polêmica acerca da possibilidade de se desembarcar dormindo o nosso herói ou não e a deusa Pala mudando a aparência de Ulisses para que ele consiga alcançar sua casa e realizar a sua vingança contra os homens que lá estão há 3 anos dilapidando seu patrimônio e querendo sua esposa.

Os Feácios desembarcam Ulisses dormindo. O tradutor Odorico Mendes faz uma nota muito interessante, discutindo a posição de Aristóteles, que afirma na Poética que há inverossimilhança nesta questão. É fantástico! 

Leio dois séculos depois da tradução da Odisseia para o português um debate entre o maranhense Odorico Mendes (XIX) e Aristóteles (século V a.C.) sobre uma obra de alguns séculos antes da vida do filósofo, a Odisseia é do século VIII a.C.

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"Adormecido Ulisses desembarcam,
Nas mesmas colchas e lençóis envolto;
" (v. 86-87)

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NOTA DE ODORICO MENDES

"Na opinião de Aristóteles, seria esta inverossimilhança intolerável, se as belezas do estilo não fizessem esquecer a pequenez da invenção. Sem embargo da sentença do oráculo da Antiguidade, faria algumas observações a favor do poeta. A inverossimilhança consiste em desembarcarem a Ulisses dormindo sem que ele despertasse. Advirta-se, porém, que depois de quebrar-se o navio onde longamente padeceu, depois de nadar quase três dias com o auxílio da cintura de Leucotéia, depois de escalavrar as mãos nos rochedos, ainda não tinha assaz reparado as forças perdidas: o sono mais salutar foi o que dormiu no bosque antes de lhe aparecer Nausica; porquanto na cidade, onde esteve dois dias, pouco descansou, levando quase todo o tempo a narrar suas aventuras, o que por certo não lhe diminuía o cansaço. Necessariamente, ao chegar ao navio dos Feácios, devera cair em profunda modorra. Tenho visto mudarem-se muitos adormecidos, principalmente meninos, sem darem por si; e o que a idade faz nos meninos, podia fazer em Ulisses a extraordinária fadiga. Se Aristóteles tivesse passado por iguais trabalhos, talvez não teria despertado nem cochilado." (Nota 86-87, LIVRO XIII, p. 239, Odorico Mendes)

No fim deste canto fantástico da Odisseia, a deusa Pala, que agora irá acompanhar o herói até o fim de suas aventuras em Ítaca, decide disfarçá-lo na forma de um velho malvestido para que ele consiga chegar de surpresa e enfrentar aqueles que dilapidam sua casa e seu patrimônio, interessados em desposar Penélope.

"Vou, para ignoto seres, enrugar-te
A lisa pele dos flexíveis membros,
Sumir-te a loura coma, em despiciendos
Andrajos envolver-te, e aos vivos olhos
O brilho embaciar, para que a todos,
Mesmo a filho e mulher, pareças torpe.
" (LIVRO XIII, v. 304-309, p. 245)


Foram bons meus entendimentos de hoje sobre a Odisseia. A leitura dos clássicos da literatura mundial nos permite refletir sobre muitas questões culturais. Intertextualidades entre autores e críticos é uma delas.

Para ler a postagem anterior desta epopeia clássica, clique aqui.

William


Bibliografia:

HOMERO. Odisseia. Tradução de Manuel Odorico Mendes. Edição de Antonio Medina Rodrigues. - 2. ed. - São Paulo: Ars Poetica: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. - (Coleção Texto & Arte; 5).


sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Tempo (III)



"Enquanto Macondo festejava a reconquista das lembranças, José Arcadio Buendía e Melquíades sacudiram a poeira da velha amizade. O cigano estava disposto a ficar no povoado. Tinha estado à morte, realmente, mas tinha voltado porque não pôde suportar a solidão. Repudiado pela sua tribo, desprovido de toda faculdade sobrenatural como castigo pela sua fidelidade à vida, decidiu se refugiar naquele cantinho do mundo ainda não descoberto pela morte, dedicado à exploração de um laboratório de daguerreotipia. José Arcadio Buendía nunca tinha ouvido falar desse invento. Mas quando se viu a si mesmo e a toda a sua família plasmados numa idade eterna sobre uma lâmina de metal com reflexos, ficou mudo de espanto..." (MÁRQUEZ, Record-Altaya, p. 52/53)


Refeição Cultural

"Tinha estado à morte, realmente, mas tinha voltado porque não pôde suportar a solidão."

Que expressão profunda essa! Fiquei imaginando as vítimas da pandemia de Covid-19 isoladas em biombos, com toda a parafernália tecnológica que salva vidas, ou sem elas, se não houver recursos, a suportar a solidão, e lidando com o risco de morte. Dura realidade que poderia ocorrer em quantidade menor de casos, se as vítimas não estivessem em grandes países sob controle político de trogloditas "liberais" de direita.

E pensar que os políticos de direita que causam a morte de milhares de pessoas por Covid-19, por fazerem o oposto das recomendações das autoridades de saúde, são os legítimos representantes das elites e das casas grandes que simbolizam séculos de exploração e dominação das maiorias de pessoas sem posses, sem direitos e sem cidadania.

Estou lendo o livro O tempo na narrativa, de Benedito Nunes, é já tomei conhecimento de diversos conceitos a respeito do tempo. Já fazia um certo tempo que havia estudado a temática e a leitura está me trazendo de volta conceitos e reflexões que vieram em momento muito pertinente, tanto para a minha vida pessoal, quanto para o momento social e coletivo em que nos encontramos.

Na Poética, de Aristóteles, temos uma rara referência ao espaço em relação ao tempo: "Silencia a respeito do espaço, e apenas uma vez, para reforçar a distinção entre epopeia e tragédia, refere-se expressamente ao tempo. Enquanto a tragédia limita-se, tanto quanto possível, ao período de um dia, a epopeia tem duração ilimitada." (NUNES, 1995, p. 7)

Na sequência da citação acima, o texto segue apresentando conceitos e referências. Uma tragédia, apresentação dramática através de personagens e com público presente, não deve passar de algumas horas de apresentação. Mas tanto a tragédia quanto a epopeia são gêneros que se baseiam na mimese: "a mímesis praxeos, imitação ou representação da ação, que cada uma realiza de forma diferente, a primeira pela atuação dos personagens, e a segunda pela narração." (p. 7)

Depois, vimos os conceitos de tempo físico e psicológico, tempo cronológico e tempo histórico, tempos linguísticos e tempos verbais. Aqui podemos lembrar rapidamente de temas como a hora que não passa quando estamos no aguardo de algo que queremos; as eras que já marcaram a vivência dos povos do mundo; as diversas formas que as línguas têm de marcar os tempos como modo, pessoas, aspectos etc.

Leitura do capítulo três, "Os tempos da narrativa". Em relação à obra literária de caráter épico ou narrativo, existem 3 planos: "o da história, do ponto de vista do conteúdo, o do discurso, do ponto de vista da forma de expressão, e o da narração, do ponto de vista do ato de narrar." (p. 27)

Citando Todorov, Nunes nos explica a diferença entre o tempo do discurso e o tempo da história, podendo ser o tempo da história pluridimensional. A história, o enredo, pode ter diversos eventos ao mesmo tempo, mas todos devem ser apresentados de forma linear no tempo do discurso.

(É um saco quando eventos externos, do ambiente externo em relação ao local onde estamos concentrados na leitura, nos atrapalham a leitura. encerro o estudo neste momento)

William


Bibliografia:

MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Tradução de Eliane Zagury. Coleção Mestres da Literatura Contemporânea. Editora Record/Altaya.

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. Série Fundamentos. Editora Ática, São Paulo, 1995.