Refeição Cultural
"Adormecido Ulisses desembarcam,
Nas mesmas colchas e lençóis envolto;
À sombra da oliveira os dons colocam,
À larga obtidos por mercê de Palas,
Fora da estrada, a fim que não lhos toque,
Antes que ele desperte um viandante,
Isto acabando, para a Esquéria voltam." (LIVRO XIII, v. 86-92, p. 239)
Finalmente, Ulisses chega a Ítaca, trazido pelos Feácios. As notas da edição que tenho são muito legais. O professor Medina nos explica que este Livro XIII da epopeia equivale ao início da segunda parte da Odisseia.
"Calam-se todos: refere-se ao final da narração de Ulisses, contida nos livros IX-XII, feita para Alcino, e que conta os fatos que lhe haviam ocorrido desde a saída de Tróia até sua chegada à ilha de Calipso. O que lhe vai ocorrer depois, ou seja, o período que vai desde esta chegada até sua boa acolhida entre os Feácios é algo que já foi narrado por Ulisses a Alcino e Areta no fim do livro VII. O livro XIII se distingue totalmente dos anteriores e dá de fato início à segunda parte da Odisseia, onde a ação se desenvolverá de maneira bem mais lenta. Ulisses, uma vez acabado seu 'romance de aventuras', é novamente focalizado na corte de Alcino, e o rei dos Feácios vai preparar agora a viagem de volta do herói a Ítaca. Ora, tanto a viagem como o sonho de Ulisses lembram novamente uma profunda experiência dos limites do homem, arrematada simbolicamente com a transformação do navio dos Feácios num rochedo (daí por diante Atena se faz mais presente); Alcino pode ser, pois, entendido como o rei barqueiro que conduz as almas à ilha dos Bem-Aventurados, sendo, pois, todo episódio dos Feácios considerado como um poema escatológico." (Nota 1, LIVRO XIII, p. 235, Antonio Medina)
Outras duas partes deste livro (ou canto) merecem destaque: a polêmica acerca da possibilidade de se desembarcar dormindo o nosso herói ou não e a deusa Pala mudando a aparência de Ulisses para que ele consiga alcançar sua casa e realizar a sua vingança contra os homens que lá estão há 3 anos dilapidando seu patrimônio e querendo sua esposa.
Os Feácios desembarcam Ulisses dormindo. O tradutor Odorico Mendes faz uma nota muito interessante, discutindo a posição de Aristóteles, que afirma na Poética que há inverossimilhança nesta questão. É fantástico!
Leio dois séculos depois da tradução da Odisseia para o português um debate entre o maranhense Odorico Mendes (XIX) e Aristóteles (século V a.C.) sobre uma obra de alguns séculos antes da vida do filósofo, a Odisseia é do século VIII a.C.
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"Adormecido Ulisses desembarcam,
Nas mesmas colchas e lençóis envolto;" (v. 86-87)
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NOTA DE ODORICO MENDES
"Na opinião de Aristóteles, seria esta inverossimilhança intolerável, se as belezas do estilo não fizessem esquecer a pequenez da invenção. Sem embargo da sentença do oráculo da Antiguidade, faria algumas observações a favor do poeta. A inverossimilhança consiste em desembarcarem a Ulisses dormindo sem que ele despertasse. Advirta-se, porém, que depois de quebrar-se o navio onde longamente padeceu, depois de nadar quase três dias com o auxílio da cintura de Leucotéia, depois de escalavrar as mãos nos rochedos, ainda não tinha assaz reparado as forças perdidas: o sono mais salutar foi o que dormiu no bosque antes de lhe aparecer Nausica; porquanto na cidade, onde esteve dois dias, pouco descansou, levando quase todo o tempo a narrar suas aventuras, o que por certo não lhe diminuía o cansaço. Necessariamente, ao chegar ao navio dos Feácios, devera cair em profunda modorra. Tenho visto mudarem-se muitos adormecidos, principalmente meninos, sem darem por si; e o que a idade faz nos meninos, podia fazer em Ulisses a extraordinária fadiga. Se Aristóteles tivesse passado por iguais trabalhos, talvez não teria despertado nem cochilado." (Nota 86-87, LIVRO XIII, p. 239, Odorico Mendes)
No fim deste canto fantástico da Odisseia, a deusa Pala, que agora irá acompanhar o herói até o fim de suas aventuras em Ítaca, decide disfarçá-lo na forma de um velho malvestido para que ele consiga chegar de surpresa e enfrentar aqueles que dilapidam sua casa e seu patrimônio, interessados em desposar Penélope.
"Vou, para ignoto seres, enrugar-te
A lisa pele dos flexíveis membros,
Sumir-te a loura coma, em despiciendos
Andrajos envolver-te, e aos vivos olhos
O brilho embaciar, para que a todos,
Mesmo a filho e mulher, pareças torpe." (LIVRO XIII, v. 304-309, p. 245)
Foram bons meus entendimentos de hoje sobre a Odisseia. A leitura dos clássicos da literatura mundial nos permite refletir sobre muitas questões culturais. Intertextualidades entre autores e críticos é uma delas.
Para ler a postagem anterior desta epopeia clássica, clique aqui.
William
Bibliografia:
HOMERO. Odisseia. Tradução de Manuel Odorico Mendes. Edição de Antonio Medina Rodrigues. - 2. ed. - São Paulo: Ars Poetica: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. - (Coleção Texto & Arte; 5).
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