Refeição Cultural - Cem clássicos
"Ama - Seu nome é Romeu, e é um Montéquio: filho único de seu grande inimigo.
Julieta - Meu único amor, nascido de meu único ódio! Cedo demais o vi, ignorando-lhe o nome, e tarde demais fiquei sabendo quem é. Monstruoso para mim é o nascedouro desse amor, que me faz amar tão odiado inimigo." (p. 43)
Eu havia lido Romeu e Julieta em 2005. Fiquei impactado pela obra na época. Antes dessa tragédia shakespeariana, já tinha lido Hamlet e Otelo, o mouro de Veneza. E depois ainda li Macbeth. Reli a história dos jovens Montéquio e Capuleto neste domingo. Meu sentimento em relação à obra neste momento de leitura foi de tristeza.
Eu poderia dizer que Romeu e Julieta não se trata de uma trama de amor, se trata de uma estória de ódio, de como o ódio domina e destrói tudo ao redor. É uma tragédia triste demais, mas é uma temática por demais atual, haja vista que a base da destruição das relações humanas no Brasil e dos direitos sociais após o golpe de 2016 é a manipulação das pessoas através do estímulo ao ódio e daí se vai às demais consequências após as pessoas terem se transformado em bichos-feras, em zumbis sem capacidade de pensamento e racionalidade.
A tragédia começa e termina com pessoas brigando e se matando porque são da parte dos Montéquio ou dos Capuleto. Até os deuses estão de saco cheio de tanto ódio de parte a parte e decidem dar uma lição nas famílias destacando o "destino" para colocar um ponto final nas desavenças na cidade com perdas terríveis para todos: as duas famílias e até a família do rei.
"Julieta - É só teu nome que é meu inimigo. Mas tu és tu mesmo, não um Montéquio. E o que é um Montéquio? Não é mão, nem pé, nem braço, nem rosto, nem qualquer outra parte de um homem. Ah, se fosses algum outro nome! O que significa um nome? Aquilo a que chamamos rosa, com qualquer outro nome teria o mesmo e doce perfume. E Romeu também, mesmo que não se chamasse Romeu, ainda assim teria a mesma amada perfeição que lhe é própria, sem esse título. Romeu, livra-te de teu nome; em troca dele, que não é parte de ti, toma-me inteira para ti." (p. 48)
Muito boa essa reflexão da personagem Julieta.
Eu me lembrei do magnífico texto de Rubem Alves sobre o nome (ler aqui). Nós usávamos esse texto nos cursos de formação que fazíamos na confederação dos bancários. Os nomes às vezes podem nos aprisionar ou podem servir para gerar falsas expectativas nos outros, ou ainda, podem nos fechar portas e oportunidades, como no caso do ódio entre os Montéquio e os Capuleto.
EXÍLIO
"Romeu - Exílio! Por misericórdia, diga morte, pois o banimento carrega muito mais terror em seu olhar do que a morte. Não diga exílio.
Frei Lourenço - Desde agora está banido de Verona. Sê paciente, pois o mundo é vasto, é amplo.
Romeu - Não há mundo fora dos muros de Verona, mas sim o purgatório, a tortura, o próprio inferno. Ser daqui banido é o mesmo que ser banido do mundo, e exílio do mundo é a morte. Estar exilado é mero eufemismo para estar morto. Quando o senhor chama a morte de exílio, está decapitando-me com machado de ouro, e o senhor carrega um sorriso no rosto quando o seu golpe me assassina." (p. 87)
Uma questão muito em voga por causa da tomada do país pela banalidade do mal após o golpe de Estado e a ascensão da máfia e das milícias ao poder e a desilusão que tem pautado a vida e a morte do povo brasileiro é o exílio, o ir-se daqui. Mesmo estando no século XXI das facilidades tecnológicas do mundo virtual, exílio não é qualquer coisa simples.
Eu particularmente acho algo muito complicado essa questão de exílio, de ir embora daqui, sair do Brasil. Além de não me ver morando em outro país, tem a questão de encarar a tristeza da destruição de nosso mundo por parte do bolsonarismo como algo irreversível. Essa gente pestilenta que chegou ao poder e dominou as instituições do país deve ser retirada de lá e jogada no lixo da história. Temos que recuperar o que é nosso e não podemos desistir do Brasil.
NINGUÉM SENTE A DOR DO OUTRO
"Romeu - O senhor não pode falar daquilo que não sente. Fosse jovem como eu, fosse Julieta o seu amor, estivesse o senhor recém-casado e Teobaldo morto, o senhor louco de paixão como eu e como eu banido, então sim, poderia falar, então sim, poderia arrancar os cabelos e deixar-se cair no chão, como faço eu agora, para ter as medidas de uma sepultura que só falta ser cavada." (p. 89)
Muitos intelectuais discutem essa questão da impossibilidade de se colocar no lugar do outro e de descrever a dor do outro. Muitas vezes é melhor dizer que a dor existe, mas não tentar explicar ou descrever o que os outros sentem.
AS MULHERES TRATADAS COMO COISAS
"Capuleto - (...) Sê minha filha, e entrego-te ao meu amigo; caso contrário, enforca-te, pede esmolas, passa fome, morre nas ruas, pois, pela minha alma, não mais te reconhecerei como minha filha, e nada do que é meu passará para teu usufruto. Pensa bem, reflete, que sou homem de palavra e não volto atrás." (p. 102)
Tem uma frase de Julieta, dita em um dos momentos mais dramáticos da tragédia, que achei muito forte, muito dura:
"Se nada funcionar, tenho a capacidade de morrer" (Julieta, p. 104)
Que foda!
O PIOR VENENO
"Romeu - Aqui está o seu ouro, o pior veneno para a alma humana, o que comete mais assassinatos neste mundo detestável - mais que esses pobres compostos que o senhor está impedido de vender. Sou eu quem estou lhe vendendo veneno; o senhor não me vendeu nenhum. Adeus. Compre comida, e acrescente carnes a esse seu esqueleto. - Venha, licor estimulante. Não és veneno. Vamos até à sepultura de Julieta, pois é lá que devo te usar." (p. 126)
O "DESTINO" DECIDIU
O frei mandou um mensageiro levar uma carta a Romeu, em Mântua, mas o mensageiro sequer conseguiu sair de Verona por causa de uma quarentena de uma peste. Com isso, Romeu veio atrás de Julieta, pois recebera a notícia de sua morte e enterro. Mas o amante não sabia das articulações entre o Frei Lourenço e Julieta e os desencontros se mostraram fatais.
"Príncipe - (...) Onde estão os inimigos? - Capuleto! - Montéquio! - Vejam que maldição recaiu sobre o ódio de vocês, que até mesmo os céus encontraram meios de matar, com amor, as vossas alegrias! E eu, por fechar meus olhos às vossas discórdias, também perdi dois de minha família. Fomos todos punidos." (p. 139)
É isso! Mais um clássico relido.
William
Bibliografia:
SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. In: Tragédias. Tradução: Beatriz Viégas-Faria. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2003.
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