Refeição Cultural
Osasco, 28 de abril de 2024. Domingo.
O registro será confessional, texto que aborda sentimentos e acontecimentos pessoais, coisas que deveriam sempre ser guardadas para si, mas que as pessoas acabam publicizando por sermos o que somos, humanos, animais vaidosos (mas que clamam também), que contam coisas, que não aguentam segredos.
Noites mal dormidas as últimas. Acordei quebrado, com dores nas costas. Dores. Coisa que nas idades anteriores nem sabia o que era. Coisas, não coisa. As dores são no plural. Se prestar atenção, tem dor em vários pontos do corpo. E eu nem tenho a idade de meus pais, esses sim devem sentir dores. Meu pai fala das dele há mais de uma década. Vai saber o quanto delas transformou ele no que é hoje.
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CONCEITO DE CANSAÇO
Ao acordar, tive que ligar o chuveiro e ficar embaixo da água morna para reviver e então viver o dia de domingo. Se tentar interpretar o sonho que vivenciava ao acordar, talvez compreenda um pouco do cansaço que senti ontem à noite. Senti um treco horrível ao perceber ser responsável pela mágoa de alguém.
Antes de ter sido diretor eleito em uma autogestão em saúde, o conceito de cansaço que trazia em meu corpo e em minha imaginação conceitual era o cansaço de Louis Creed após voltar da floresta onde enterrou o gato Church, no livro O Cemitério, de Stephen King. A cena dele chegando todo enlameado e exausto e caindo na cama marcou aquele leitor adolescente e nunca mais tive uma referência melhor do que era um cansaço extremo.
Isso mudou por volta dos quarenta e cinco anos de idade. Após décadas de conceito de cansaço referenciado a partir de uma cena literária de um livro de suspense, meu corpo e minha mente fixaram um novo conceito de cansaço. Desde os primeiros meses na gestão da operadora na qual atuava como representante de centenas de milhares de participantes, com a responsabilidade de defender os direitos em saúde deles, já experimentava na minha solidão do acordar um cansaço que só conseguia superar ficando um tempo embaixo do chuveiro do apartamento onde morava em Brasília.
Tem dias que sinto por algum tempo (que deve ser superado logo) um cansaço tão profundo como aquele que descrevi acima. Ele quase te paralisa, te impede de viver. É preciso acionar suas energias internas guardadas na razão consciente do que você é e chacoalhar aquela coisa mortal e seguir adiante. Afinal de contas, viver é uma oportunidade diária.
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AS DORES DOS AMORES
Ontem, estava escrevendo um comentário sobre a leitura do livro de Conceição Evaristo sobre os amores sem juízo, interpreto assim a temática central do livro Canção para ninar menino grande. O personagem Fio Jasmim tem a moleira aberta e por isso é um homem sem juízo. O livro é sobre amor. Amores. Histórias reais e ficcionais sobre vivências de amores sem nenhuma racionalidade ou cálculo ou consequência. Escrevivências como a autora nos conta de sua técnica narrativa.
Numa troca de palavras, ouço de minha companheira que eu ando isso e aquilo, cotidianidades dos lares, e me toco que a magoei bastante por não ter escrito nada a ela na data de seu aniversário. Não tive o que dizer. Foda isso. Ando isso e aquilo mesmo. Desculpas como as duas semanas que passei cuidando das questões de saúde de meus pais não servem para nada. Nada. É horrível ser responsável por dissabores de alguém, ainda mais de pessoas queridas e próximas a nós. Certas coisas não têm conserto. Feitas estão.
Fiquei tão mal pela percepção do feito que minha energia se dissipou. A bateria arriou. Deixei de lado o texto sobre os amores e os dissabores dos amores e fiquei procurando cantos até que acordei quebrado no dia de hoje.
O mês de abril vai terminando. Iniciei o mês nas tretas com meu pai, ele insistindo em renovar a carta de motorista vencida há tempos do jeito que ele achava que tinha que ser. O cara não escuta ninguém pra nada. Todas as sugestões racionais são nada. Nonada. Ajudei ele a fazer as coisas do jeito dele. Foi foda. Só uns poucos pra saber o que foram esses dias. Foram uma merda! Nesse intervalo de tempo, minha irmã pegou dengue, minha sobrinha pequena pneumonia, depois minha mãe pneumonia, a crise que meu pai teve precisa ser investigada para saber se ele tem algo mais sério, alguma senilidade dos oitenta adiante. Eu andei uns dias meio foda também.
Enfim, o mês dos amores e das dores vai terminando.
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TÁ FODA, MAS A LUTA CONTINUA
Um músico negro chama a polícia após ser ameaçado com uma faca, dois policiais desgraçados do governo fascista de São Paulo chegam para atender a ocorrência, apertam o pescoço do músico - a vítima -, imobilizam ele e jogam gás de pimenta nos olhos dele a troco de nada... (racionalmente, afirmo para mim mesmo que se isso acontecesse comigo eu reagiria e morreria, pois a polícia do governo paulista é assassina e o governador carioca disse que se dane isso).
Um outro rapaz negro é filmado sendo abordado em São Paulo por dois policiais do governo fascista e o rapaz já vai levantando a mão. Sem trocar palavras e sem reação alguma do abordado, os policiais começam a bater nele com cassetetes e o rapaz instintivamente se defende e reage. Os policiais o agridem com violência, um deles saca a arma e o executa a queima roupa e a sangue frio. Como disse acima, eu morreria também.
Quer dizer, nos dois casos citados, talvez eu não morreria porque minha pele é branca e as cenas reais não se dariam. A chance de fazerem isso comigo seria menor porque é crime ser preto no Brasil, e é pena de morte ser preto e pobre, periférico. Sou privilegiado por causa da cor da minha pele. O Brasil é o país dos privilegiados e dos condenados sem crimes.
Vivo no país dos desgraçados. Temos os desgraçados que não alcançam graça porque são periféricos, pobres, pretos, gente subgente. Gente que pertence às bases da pirâmide social. Gente que vai ser presa e morta e descartada por todo tipo de bandido, os bandidos bandidos e os bandidos fardados. Sem defesa, sem julgamento. E as receitas de desgraças só aumentam. Agora prender periféricos vai dar lucro em cadeias privadas, os periféricos que serão presos por um baseado de maconha. Por uma barra de chocolate. Por "desacato".
E temos os desgraçados desgraçados mesmo, gente má, gente escrota. Os desgraçados que podem matar por andarem em Porsche a 156 Km/h, os desgraçados que podem estuprar e pagar montanhas de dinheiro para as autoridades para voltarem para as suas casas-palácios, os desgraçados que podem cometer qualquer ilegalidade que lhe derem na cabeça porque são inimputáveis como o genocida e ladrão de joias ex-presidente que pode tudo e contra ele não pega nada, porque as autoridades e políticos brasileiros têm MEDO de prender o bandido.
A luta continua, claro! Mesmo com tudo que acontece o tempo todo, mesmo com toda a injustiça, tem muita gente boa lutando por um mundo melhor. Gente que ontem mesmo estava reunida organizando as lutas para combater e reverter todas essas desgraças que enfeiam o nosso mundo.
Viver vale a pena. E as desgraças se combatem com pessoas que enchem as nossas esperanças de graças, gente que acorda em meio às suas cotidianidades complexas e acha tempo para se doar para as ações coletivas e as boas ações para melhorar o seu entorno, o mundo de todos nós.
Gente assim vi reunida ontem na assembleia que fui pela manhã e na reunião do PT que partipei de tarde. Gente que faz valer a pena seguir lutando, do jeito que cada um puder contribuir.
A essa gente dou graças! Graças a vocês que lutam por um mundo melhor para todes.
Somos seres de contradição, mas somos seres históricos. Fazemos história todos os dias.
Não existe um futuro determinado. Fazemos o futuro hoje. Não esmoreçam.
William
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