Refeição Cultural
Osasco, 28 de abril de 2024. Domingo.
Um livro que fala de amor. Das vivências e dos amores. Escrevivências... como nos explica Conceição Evaristo ao nos presentear com textos de vivência e criação, vivência e escrita. Vivências pessoais que de certa forma representam a coletividade.
Tem dias que escrevo com dificuldades, dias ou momentos nos quais a vontade era calar, silenciar, não registrar nada. Mas neste momento do viver, minha missão autoimposta é exercer um pouco da escrevivência que a intelectual nos ensina a fazer. Às vezes, o pessoal pode ser da dimensão universal.
A leitura desta obra de Evaristo se deu em contextos difíceis. A primeira metade do livro li na estrada, em um ônibus. Estava levando meu pai de Uberlândia a São Paulo para atender a um desejo dele. Tive uns dias complexos... Meu foco de atenção era ele, a leitura era a distração, a tentativa de abstração do contexto. Não foi uma leitura ideal. Até porque a temática era o amor de outra categoria, não o filial.
A segunda metade da leitura se deu num momento um pouco melhor do que o primeiro tempo de contato com a viagem nos amores de Fio Jasmim e das mulheres que amaram Fio Jasmim. Revi as 75 páginas lidas no início do mês e terminei o romance três semanas depois.
A história de cada personagem feminina me fazia sentir-me em casa ao me colocar no mundo de cada uma delas, um mundo ao mesmo tempo ficcional e verdadeiro, cenário da realidade concreta de cada cidadezinha desse nosso Brasil de misérias e miseráveis. Vi no personagem Fio Jasmim até o comportamento de pessoa conhecida. Escrevivências.
Um livro de brasileiras e brasileiros, de uma brasileiríssima escritora, com histórias e vivências ao mesmo tempo únicas e coletivas, reais e ficcionais, universais.
Livro para ler e ler e reler, assim como todos os livros de Conceição Evaristo.
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MULHERES QUE AMAM
Tina (Juventina), Aurora, Antonieta, Dolores, Dalva, Neide, Pérola Maria, Angelina, Eleonora...
Pérola Maria, de Chegada Feliz...
Neide Paranhos, do Vale dos Laranjais... o príncipe negro e sua princesa.
Aurora Correa Liberto, de Vila Azul... tomava banho sem roupa nas águas do Rio Naipã. Tinha a moleira aberta e por isso era sem juízo.
Antonieta Véritas da Silva, de Remanso Velho... a do corpo maravilha.
Dolores dos Santos, de Ardência Antiga... (que história de família!). Felizmente, as mulheres da família tinham a avó dona Hermengarda...
Dalva Amorato, de Águas Infindas... com dois filhos, Dalva Ruiva deixou marido ausente e ex-patroa tia dele e foi atrás de seus sonhos.
Juventina Maria Perpétua, de 17 anos, foi pra Chegada Feliz... foi ser a "Virgem de Ébano".
E temos ainda Eleonora Distinta de Sá... ela e Fio Jasmim, que serão cúmplices na amizade, nos lamentos e na solidão.
Que vivências!
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Momentos marcantes...
GENTE SEM JUÍZO
"(...) Aurora pensou que podia ter sido um engano tátil, de uma sensibilidade excessiva das mãos. Sorrindo, então, ela pegou a mão do moço bonito e lhe pediu que ele tocasse o alto da cabeça dela. Ele assim o fez. E, ao sentir o quase imperceptível e macio afundamento da cabeça dela, Jasmim riu e riu. Ela também! Descobriram-se. Tinham a moleira aberta, eram ambos sem juízo." (p. 47)
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SOLIDÃO
"Com a morte da mãe, Dolores experimentou não só a certeza de estar só no mundo, pois não tinha mais nenhum parente sanguíneo, como teve certeza de sua solidão. Com quem repartir a amargura que estava sentindo naquele momento? Com quem falar? A quem chamar para dividir a dor? Seria a dor algo que se pode dividir, assim como se reparte a alegria? Dolores se lembrou das alegrias vividas às escondidas entre ela, a mãe e a avó, sem que o velho Belizário soubesse. Recordou-se das lágrimas vertidas juntas, a mãe e ela, quando a avó Hermengarda se foi. E também do desejo vivido das duas, brigando com a morte, pois ela deveria ter levado o avô e não a avó. E agora com quem dividir essa dor? Por entre lágrimas viu a pessoa de Sô Damião, empregado antigo da casa, soluçando feito criança, ao perceber que sua patroa, mulher tão sofrida pelo desprezo do pai, tinha ido. Dolores teve desejo de abraçar sua dor à dor de Sô Damião, mas se conteve. E viveu a sua angústia, sozinha." (p. 63)
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A VINGANÇA QUE VIROU PRUDÊNCIA (CONSCIÊNCIA E SOLIDARIEDADE NO UNIVERSO FEMININO)
"E de repente seu ódio contra Fio Jasmim se transformou em prudência, em juízo, em consciência. Buscou no fundo de sua bolsa de viagem a foto e pela primeira vez viu os detalhes. Pérola Maria, cercada das crianças, tinha uma expressão serena. Contemplou profundamente a foto e, no lugar de Pérola, outras mulheres apareciam: vó Hermengarda; mãe Maria da Cruz; a velha Clementina, tia do Sô Damião; Santina, a mulher que morava lá na entrada de Nova Ardência; Cleide do Vicente, uma antiga colega de escola; Joana, a mãe que cuidava das quatro meninas sozinha; Laurinda, a que noivara aos dezoito anos de Ovídio, o noivo que nunca marcava a data do casamento; e outras e outras. Cada uma aparecia ora com um rosto pleno de alegria, ora não só com o rosto, mas com o corpo debulhado em lágrimas. Ora independentes de seus homens, ora puxadas pela mão por eles, ora brutalmente empurradas. Ora deitadas, ora em pé. Ora alisando as crias, ora as enforcando. Uma gama de mulheres, um universo feminino em ebulição, mesmo quando aparentemente estático." (p. 75)
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PERSPECTIVAS: NA LUTA PELOS SONHOS, CADA UM TRABALHA VENDENDO O PREDICADO QUE TEM
"Novamente organizou uma planilha de gasto: aluguel da casa, pagamento de escola e de acompanhante para as crianças, despesas alimentares, etc. E ainda, ou principalmente, custear seus estudos, os preliminares e depois o curso de Farmácia. A solução veio rápida, sem dúvida, sem constrangimento algum. Ia trabalhar vendendo o seu corpo. Sexo. Se fosse cantora, venderia a voz; se fosse bailarina, venderia o corpo no movimento da arte de dançar; se fosse professora, venderia a sua capacidade, a sua didática, o conteúdo aprendido, para ensinar; se fosse médica, a sua capacidade de cuidar, de curar, de orientar na procura e na conservação da saúde; se fosse cozinheira, o seu dom de cozinhar. Não tinha nenhum desses predicados e talvez esses tomassem mais tempo para aprender. E para Dalva Ruiva se tratava de correr contra o tempo, ou melhor, agarrar um tempo que ficou vazio, sem movimento algum para a realização de seus sonhos. E sem qualquer acanhamento ou dúvida, Dalva Ruiva tomou informações de como agir..." (p. 84)
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PERSPECTIVAS E ACULTURAMENTOS: APRENDEU QUE SER HOMEM ERA TER VÁRIAS MULHERES
"(...) fora concebido em uma menina de quinze anos, quando o homem já beirava os seus quase sessenta. Fio cresceu ouvindo as proezas do pai. Aprendera com ele que ser homem era ter várias mulheres..." (p. 93)
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"O pai de Jasmim, homem já maduro, cuja flor já não gozava de haste tão rija, sorria feliz ouvindo as histórias do filho. Na escuta dos jactados encontros de Jasmim com as mulheres, o pai, saudoso das façanhas do passado, se reconhecia na virilidade do filho. Ficava imaginando mulheres oferecidas diante dele a brincar desejantes e carinhosas com seu ereto lírio negro. Bem se vê que a lição que Fio Jasmim tivera em casa estava sendo muito bem aproveitada." (p. 94)
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MULHERES FILHAS DE MULHERES, SÓ
"(...) Com a mãe dela havia sido assim. O pai de sua irmã mais velha agira dessa forma. Ela, a segunda filha, sabia somente que um outro homem, seu pai, também não ficara, tinha partido antes mesmo de ela nascer. Do pai, Tina mal sabia o apelido. As suas duas outras irmãs, as mais novas, os pais eram homens também desconhecidos para elas. A mãe de Tina, Alda Jovelina, parecia querer devolver com a mesma intensidade o desprezo a ela e às suas filhas. O nome do pai nunca era dito. Só o da mãe. Pai era uma imagem vazia. Durante muito tempo, época ainda da infância de Tina, só a mãe e as tias lhe bastavam para a sua vida-menina..." (p. 100)
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HOMENS NÃO CHORAM?
"(...) E, como proprietário de uma extensa gleba, o homem ali tinha o dever de dominar as mulheres, de alguma forma. E mais, tinha ainda de desafiar e causar inveja a outros machos. Não sendo de bom tom o derramamento das dores do macho - assim pensava Fio Jasmim -, por isso ele calou qualquer sintoma de mortificação em sua vida. Pouco importava a dolorida lembrança de ter sido preterido pelo coleguinha branco para representar um príncipe. Era preciso esquecer essa lembrança, negá-la sempre. Só as fêmeas podem dar vazão às suas agonias, às suas aflições, das menores às maiores. E, por isso, sempre os olhos secos de Fio Jasmim diante da morte e da vida..." (p. 129)
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CONVITE À LEITURA
E o final das histórias, eu deixo a descoberta para vocês leitoras e leitores...
Obrigado por compartilhar conosco essa maravilha, querida Conceição Evaristo!
Até hoje me recordo de nossas horas conversando no voo entre Panamá e Havana, Cuba, em 15 de fevereiro deste ano. Foi muito legal conhecê-la, e um orgulho porque sou seu admirador e fã.
William
Bibliografia:
EVARISTO, Conceição. Canção para ninar menino grande. 2. ed. - Rio de Janeiro: Pallas, 2022.
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