Refeição Cultural
Teremos que recriar leitores e leitoras
Penso que uma das tarefas que teremos pela frente será recriar os leitores e leitoras, no sentido de recriar o gosto pela leitura de fôlego, a leitura reflexiva, a leitura para além de algumas palavras ou memes, para além das chamadas das notícias, das mensagens rápidas, das formas de comunicação que dominaram o mundo no século XXI. Leitores que se desliguem das redes sociais para ler sem interrupção a cada segundo.
Nos séculos anteriores, escritores como Machado de Assis tomaram para si a responsabilidade de criarem a figura do leitor e da leitora de ficção, leitores de textos literários. Nesse processo também se estabeleceram os acordos tácitos entre escritor e leitor, do tipo: olha, leitor, isso é uma ficção, tá!
Por fim, não podemos esquecer nunca dos contextos nos quais os escritores produziram suas obras ficcionais ao longo da história da literatura mundial. Machado de Assis e demais escritores brasileiros do século XIX, por exemplo, escreviam para pouquíssima gente alfabetizada. Gente sem hábito de leitura de romance ou poesia se compararmos com outras partes do mundo naquela época.
Agora vivemos algo muito louco. Estamos no século XXI, e a tecnologia que inventamos nos fez chegar ao ponto de ser possível passar 24 horas do dia ligados nas redes sociais, fisgados e capturados em redes virtuais na internet (bolhas). De imagem em imagem, de meme em meme, a cada frase de efeito ou chamadas espalhafatosas, o dia se consome sem a pessoa conseguir se desconectar por uma ou duas horas para ler textos.
Se o texto for longo, "longo" que digo é com duas páginas, com mais de dois parágrafos, quase ninguém o lê porque ele seria muito grande e tomaria muito tempo... enfim, é nisso que estamos nos transformando, humanos que não leem mais. (sem contar que no mundo das imagens e vídeos ainda temos as séries intermináveis para prender os humanos nelas)
Em meu contato com Machado neste domingo, pensei nisso ao ler o conto "Trina e una", publicado em A Estação, janeiro-fevereiro de 1884. O conto foi um dos 50 contos escolhidos por John Gledson em sua coletânea.
Os grandes escritores demonstram através de suas técnicas e habilidades comunicativas que sempre tiveram a preocupação de criar leitores, de criar o gosto pela leitura de ficção, leitura pelo prazer de ler, pelo gosto da reflexão através da leitura, leitura de passa tempo. Bem como os outros tipos de objetivos que também existem nas literaturas mais engajadas, de cunho social, por exemplo.
O conto "Trina e una" é um bom exemplo de uso de técnicas de diálogo com os leitores. Machado exercita sua ironia afiadíssima enquanto conversa ora com a leitora, ora com o leitor de seu texto ficcional. Ele inclusive deixa claro que o texto é ficção, ele brinca com leitores dizendo que não inventaria tal personagem se não fosse para tal papel no enredo. É demais!
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TRINA E UNA
Alguns momentos nos quais o narrador do conto conversa com os leitores do texto.
1. "A primeira coisa que há de espantar o leitor é o título, que lhe anuncia (posso dizê-lo desde já) três mulheres e uma só mulher." (p. 279)
2. "Que o leitor se não enfastie com tais minúcias; não há aí uma só palavra que não seja necessária." (p. 280)
3. "Puro efeito de arte; cálculo e combinação de gestos. São assim as obras meditadas; são assim os longos frutos de longa gestação." (p. 281)
4. "A secreta razão era dissimular quaisquer impaciências namoradas, mostrar que não fazia caso dela, e ver se assim... Compreenderam, não? Era a aplicação daquele pensamento, que não sei agora, se é oriental ou ocidental, em que se compara a mulher à sombra: segue-se a sombra, ela foge; foge-se, ela segue." (p. 285)
5. "Não hei de inventar um homem grave e hábil só para evitar uma certa impressão às leitoras. Tal era ele, tal o dou." (p. 285)
COMENTÁRIOS
Muito interessantes os momentos de diálogo entre o narrador e a pessoa que lê, assim como as ironias machadianas nesses diálogos.
No exemplo "2", Machado estabelece conosco a regra básica da poética dos contos e poesias: "não há aí uma só palavra que não seja necessária".
Esse é um dos ensinamentos básicos para os estudantes de Letras: lembrem-se que cada palavra em cada verso é interligada com o verso seguinte e assim sucessivamente, estrofe por estrofe etc. Inclusive os poemas de determinados livros de poesias dão um sentido ao todo do livro. O mesmo se dá com os contos, que devem ser certeiros nas palavras, nas ideias e ou ações, no tempo entre o início e o fim da estória.
Os outros itens que deixei de exemplo demonstram o que estou dizendo, as ironias e os tratos entre escritor (narrador) e o leitor ou leitora.
É isso! Vamos ter que recriar os públicos leitores para aquilo que escrevemos, inclusive leitores para os escritores de literatura, poesia e outras formas de artes.
Quando fui dirigente eleito de entidade de saúde dos trabalhadores, tive que fazer uma experiência dessas, de criar um público leitor. Comecei a escrever uma espécie de diário de prestação de contas e de formação e informação sobre a temática da saúde. No início do mandato as postagens tinham alguns leitores, depois foram dezenas e quando terminei o mandato as postagens tinham centenas e milhares de leitores.
Acredito ser possível criar e recriar públicos leitores, sejam de textos literários, políticos ou outros quaisquer.
Abraços! E leiam, se puderem e quiserem salvar os fantásticos cérebros humanos que a natureza nos legou.
William
Bibliografia:
ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 14ª reimpressão, 2015.
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