Refeição Cultural
"Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um - 'ai, nhonhô!' - ao que eu retorquia: - 'Cala a boca, besta!'" (p. 48)
Fico pensando no Machado de Assis escrevendo nas décadas de 1860, 1870, 1880 e daí adiante, até que falecesse já no século XX, em 1908, no período político que conhecemos como Primeira República. Machado nasceu em 1839, descendente de avós paternos negros, e no ano seguinte, 1840, começou no Brasil o Segundo Reinado, com D. Pedro II, que governou o país até 1889, com a instalação da Primeira República.
Eu nasci em 1969, ano seguinte ao Ato Institucional nº 5, que recrudesceu a ditadura civil-militar implantada no Brasil com o golpe de 1964 (golpe apoiado pelos EUA e pela elite branca brasileira: a casa-grande). Nessa mesma década de 1960, as pessoas de pele preta ou parda ou as pessoas negras, mestiças e afrodescendentes de várias partes do mundo lutavam por seus direitos humanos, civis, políticos.
Na África do Sul, os negros lutavam contra a lei, contra o apartheid, há décadas. Nelson Mandela e seus companheiros do CNA queriam um país com direitos iguais para todos os cidadãos, independente da cor de suas peles e demais características pessoais.
Nos EUA, os negros lutavam pelos mesmos direitos pelos quais lutavam os negros sul-africanos. Acreditem, a lei nos Estados Unidos era como a lei do apartheid dos brancos sul-africanos. Havia espaços para brancos e espaços para negros. Só a partir de 1964 que as leis de direitos civis igualaram brancos e negros.
Na década de 1960 meus pais já eram adultos, já estavam casados (casaram-se em agosto de 1965), e o mundo era racista do mesmo jeito que havia sido por séculos. Enquanto se disfarçava o racismo nas mídias dos brancos, nas rádios e TVs e novelas, e nos veículos impressos, no Brasil, nos EUA e na África do Sul negros eram discriminados e não tinham os mesmos direitos que os brancos.
RACISMO GERA DESIGUALDADE SOCIAL - Preconceito gera discriminação e discriminação gera falta de oportunidades e desigualdade social. O poder e a riqueza do país estavam nas mãos dos brancos nos anos 1960, nas décadas e séculos anteriores e ainda HOJE.
Meus pais adotaram uma menina negra e eu nasci depois dela. O racismo nunca deixou de existir no Brasil dos séculos de colonização e dominação por parte de europeus brancos. Os negros e afrodescendentes são maioria do povo brasileiro e são uma minoria esmagadora na questão dos direitos humanos, civis e políticos. "Minoria" neste caso vem de "menos", ou seja, são maioria da população, mas têm menos direitos em tudo.
Não é fácil olhar para trás e imaginar em flashbacks como deve ter sido uma negra crescendo e vivendo no meio de um monte de brancos pobres, a família pobre brasileira, essa sim toda miscigenada, misturada, fruto dos cinco séculos de colonização do branco macho de fora com as mulheres índias, negras, mestiças que nos pariram. Faz poucos anos que ouvi um familiar dizer que preto tinha que matar pequeno para não virar bandido quando crescesse... (já estávamos no século XXI, juro pra vocês).
No meu caso, sou branco de cabelo "ruim" porque minha mãe é branca de cabelo "ruim". O cabelo "ruim" é como nós ouvimos falar ao longo de nossas vidas nos anos 1960, 1970, 1980, 1990 etc. Em determinado momento de nossas vidas era politicamente incorreto falar as coisas que os brancos da casa-grande e seus meios de comunicação pensavam do povo brasileiro miscigenado. Era.
Agora voltamos ao passado. Com o golpe e a "ponte para o futuro" voltamos ao passado escravagista. Com as reformas dos golpistas, tucanos, emedebistas e bolsonaristas, voltamos ao passado. Com o novo golpe de Estado, em 2016, com a manipulação do povo através do ódio e do medo, regredimos até os séculos XX e XIX e os outros pra trás. Podem falar as barbaridades que quiserem de novo. Os tempos são de homens Brás Cubas e milhões de prudêncios!
PAI CONTRA MÃE
Um dos últimos textos de Machado de Assis, publicado em 1906 no livro Relíquias de casa velha, foi o conto "Pai contra mãe". O texto é forte! Meus olhos encheram de lágrimas só de pensar nele para escrever neste instante. (ler o conto aqui)
Esse conto, para mim, resume há mais de um século o que nós somos, nós negros, mestiços e brancos pobres, brasileiros, sem posses; nós somos como aqueles personagens do conto, somos como Cândido Neves, Clara, tia Mônica e Arminda.
Esse conto explica nossa gênese, explica meus familiares e conhecidos brancos, negros, mestiços, pobres ou remediados, cheios de ódio contra todos, contra negros, contra os diferentes, contra os outros. Explica por que somos o que somos.
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Isso foi o que refleti nesta manhã de sexta-feira, 27 de agosto de 2021, ao ler alguns capítulos do Memórias, de Machado de Assis, e ao ver um vídeo do site Meteoro Brasil sobre "Por que hospitalidade não é o forte dos EUA", publicado hoje.
William
Bibliografia:
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. 1ª ed. - São Paulo: Panda Books, 2018.
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