Refeição Cultural
Domingo, 19 de setembro de 2021. Osasco, São Paulo.
Silêncio relativo na varanda de casa. Sol forte lá fora, calor de quase 30º. Além do som dos carros na avenida lá embaixo, os sabiás da região seguem cantando, cantando, cantando. Nessa época do ano, eles cantam a noite toda. É maravilhoso! No meio da madrugada, o canto dos sabiás predomina sobre qualquer outro som que venha de forma episódica.
Agora mesmo - onze e meia da manhã -, os joões-de-barro cantam também. Os bem-te-vis idem. As maritaquinhas conversam entre si. Uma sirene de ambulância; os motoboys trabalhando sem direito algum. Um helicóptero que passou no céu: a repressão ou algum magnata passeando. Mas, de fundo, segue o canto dos sabiás...
Reli o conto machadiano "A igreja do Diabo" (1883). Quando lemos obras fantásticas, inteligentes, simbólicas e metafóricas como essa, ficamos perplexos com a existência de seres humanos como Machado de Assis. Ao ler o conto no meu contexto de mundo, de vida, de localização, é como se tivéssemos encomendado ao Machado o texto para publicar neste domingo de sol e canto do sabiá no Brasil pós golpe de 2016.
O Diabo avisa a Deus que vai fundar uma igreja na Terra, com todos os dogmas e liturgias que as igrejas de Deus têm. O Diabo se estabelece e domina o mundo. Ele explica o sucesso de sua estratégia de expansão dos empreendimentos. Ele trabalha fortemente com a venalidade e com o fim da solidariedade humana, essa praga.
NO CAPITALISMO, TUDO SE VENDE E SE COMPRA
Se os homens podem vender as coisas materiais que dizem ser suas, por que não poderiam vender seu corpo, sua honra, seus desejos, seus princípios...
"Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório..." (p. 187)
A SOLIDARIEDADE, ESSA PRAGA COMUNISTA
"Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença, em alguns casos, ódio ou desprezo..." (p. 188)
MACHADO E SEUS LEITORES
O escritor mulato sabia de duas coisas ao escrever seus romances, contos, crônicas e reflexões: o Brasil era uma terra de analfabetos miseráveis (censo de 1876) e os poucos que sabiam ler eram os da "burguesia", essa gente burra, ignorante, iletrada que não mudou nada em 150 anos.
Por isso sua leitura não é simples. Sua técnica narrativa tinha que fazer como nossos artistas fizeram na ditadura civil-militar de 1964-1985, eles tinham que escrever com mensagens nas entrelinhas, pra essa gente burra e troglodita não entender a mensagem, a ironia.
BRASIL É GOVERNADO PELO ANTICRISTO
Enfim, dias atrás li o editorial de Mino Carta na revista Carta Capital nº 1172 (ler aqui) e ele citava Celso Amorim e Leonardo Boff, que explicou o que é ser anticristo e deixou claro que o sujeito que ocupa a cadeira da presidência do país é o anticristo.
Ler Machado de Assis com o olhar e a experiência do leitor que teve a oportunidade na vida de se alfabetizar e de se politizar é descobrir que desde sempre nós tivemos pessoas que fizeram a sua parte e o que era possível para criticar a situação miserável em que a ampla maioria dos povos vivem, não por ser natural, mas porque os valores que prevalecem naqueles contextos são os de minorias privilegiadas.
CENTENÁRIO DE PAULO FREIRE - Que posso dizer sobre nosso educador maior? Paulo Freire vive! Eu esperancei e vivenciei a experiência do método de Freire ao atuar na formação sindical por muitos anos. Viva Paulo Freire!
NOMADLAND - Assisti ontem ao filme Nomadland (2020), ganhador do Oscar 2021 e fiquei pensativo, fiquei triste, constatei o que já sabia. Mas as reflexões ficam para outra hora, se é que escrevo algo a respeito. No filme, vemos tudo que o Diabo introduziu em sua igreja, a venalidade, a questão da solidariedade, tudo.
Aliás, no filme vemos as franjas, questão central do conto de Machado. Nem tudo está perdido, nem tudo. Caso queiram ler o conto, é só clicar aqui.
Bom domingo!
William
Bibliografia:
ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 14ª reimpressão, 2015.
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