segunda-feira, 5 de junho de 2023

Diário e reflexões - Linguagem


Sancho Panza, La Habana, Cuba.

Refeição Cultural

Osasco, 05 de junho de 2023. Segunda-feira.


UM MUNDO ORAL: O FIM DA LINGUAGEM ESCRITA

"- Aquí encaja bien el refrán - dijo Sancho - de 'dime con quién andas: decirte he quién eres'. Ándase vuestra merced con encantados ayunos y vigilantes: mirad si es mucho que ni coma ni duerma mientras con ellos anduviere..." (Don Quijote de la Mancha, Alfaguara, 2004, p. 730)


Os idiomas com os quais tenho mais contato cotidiano são os idiomas Português, Espanhol, Inglês e Japonês. Português é a minha língua pátria, minha língua mãe. Espanhol estudei na graduação em Letras. Inglês a gente aprende um pouco por ser a língua do imperialismo que domina o mundo, a língua se impõe nos países dos outros. Japonês inventei de estudar e ora estudo ora largo (não sei nada, só umas coisinhas). Não sei com profundidade nenhum desses idiomas, nem a minha língua materna eu sei. Os que sabem línguas estão se tornando exceção e vão desaparecer, sem reposição...

Quando decidi ser aluno na Universidade de São Paulo, no início dos anos dois mil, escolhi prestar o vestibular para o curso de Letras. Entrei na FFLCH e estando na graduação, no ciclo básico do primeiro ano, mudei a intenção de fazer habilitação em Inglês para fazer habilitação em Espanhol. Havia tido contado com disciplinas em Língua Espanhola naquele primeiro ano e fiquei encantado com o idioma.

O mundo andou. O mundo mudou. Mudança é a certeza sempre, tudo muda. Hoje tenho uma teoria, por pura observação, de que a linguagem escrita pode desaparecer ou seu conhecimento voltar a ser um conhecimento de uma pequena parcela dos humanos, como nas eras iniciais dos textos escritos, saber restrito a escribas, "sábios", copiadores etc. Caminhamos para ter um grupo que usa o texto escrito para dominar uma maioria dominada sem dominar a língua. 

Com a predominância da comunicação humana por vídeo, áudio, imagens e memes em redes sociais e meios virtuais quem aprende minimamente a escrever, usar o símbolo linguístico, desaprende em seguida, assim que passa a se comunicar pelas outras formas. O cérebro humano é plástico e se adapta a tudo. Se os humanos não leem e não escrevem, essa habilidade deixa de existir. Lembro aqui que a escrita e os signos linguísticos são uma invenção humana, a escrita não é uma habilidade inata da comunicação como a fala.

Exceção, exceder, excesso, acesso, sucesso, sessão, seção, sucessão, "há" verbo e "a" preposição ou artigo, "afim" e "a fim" etc são palavras da língua portuguesa com sentidos e usos absolutamente diferentes. Se elas não são lidas ou escritas durante um processo de comunicação é evidente que o cérebro perderá a habilidade de usá-las, inclusive no sentido semântico, não só na questão de escrevê-las. Esse exemplo é uma amostra de um problema muito maior.

Comecemos a imaginar a dimensão do problema da perda da capacidade de uso da linguagem escrita. Há um evidente empobrecimento da linguagem humana em andamento. Além da questão central da alfabetização de milhões de crianças e adolescentes, temos o fato de até os alfabetizados estarem perdendo a habilidade que antes tinham, mesmo que minimamente. O treco é complicado, o fenômeno está aí na nossa frente e não me parece que algo possa ser feito para frear essa tendência.

Além dos analfabetos funcionais e analfabetos políticos, há uma tendência a nos tornarmos analfabetos na linguagem como éramos antes de aprender a escrever nas fases iniciais da vida.

Essa é uma leitura só minha ou mais pessoas têm percebido essa tendência de morte da linguagem escrita?

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AS REFERÊNCIAS DE HOJE SÃO "INFLUENCIADORES" ANALFABETOS FUNCIONAIS E POLÍTICOS

A língua de Camões, a língua de Shakespeare, a língua de Cervantes... essas figuras históricas são consideradas referências em suas línguas maternas, pessoas que escreveram muito e cujos textos se tornaram referência de uma linguagem culta, padrão, textos com organização sintática e semântica que poderiam balizar uma comunicação perfeita nas suas respectivas línguas.

O tempo de Camões, Shakespeare e Cervantes passou... E hoje, qual a referência para milhões de pessoas? 

Às vezes, tenho a impressão de que caminhamos para a linguagem predominante ser quase um grunhido, gritos e vociferações. 

As referências não mais de milhares, mas de milhões de seguidores, são pessoas que mal falam a língua básica de seu idioma. A referência na comunicação global tem sido vociferações, grunhidos, repetições de palavrões a cada frase dita por um youtuber ou "influenciador" qualquer de alguma mídia dessas. O mundo está se tornando um mundo dominado por "criadores de conteúdo" como esses aí das redes sociais. Nem estou abordando a questão do "conteúdo" em grande parte sem base na realidade, mentiras, invenções etc.

É essa a reflexão do momento, minha (in)digestão cultural!

William


Post Scriptum: o texto seguinte desta série sobre Linguagem pode ser lido aqui.


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