sexta-feira, 23 de junho de 2023

Diário e reflexões - Linguagem II



Refeição Cultural

Osasco, 23 de junho de 2023. Sexta-feira.


UM MUNDO DE ANALFABETOS

A primeira postagem deste blog de cultura foi o conto "O alienista" de Machado de Assis, postagem feita em 23 de dezembro de 2007 (ler o conto e comentários aqui). Lembro aos leitores que a obra de Machado é de domínio público: pode ser reproduzida e divulgada sem pagar direitos autorais. Fico contente ao olhar para trás e ver o início desta jornada de leituras, escritas e reflexões: começar com Machado de Assis foi um acerto deste blog.

Machado de Assis, em seu tempo, tinha uma percepção perspicaz de que quase não havia leitores no Brasil do século 19. Eram raras as pessoas que iriam ler o que ele escrevesse nos meios da época, jornais e revistas. Livros tinham públicos menores ainda porque eram de pouco acesso às massas populares. E pouca gente tinha dinheiro também, coisa óbvia num país escravocrata e com poucas pessoas detendo todos os meios materiais: a nobreza e a casa-grande e seus apaniguados, agregados e lacaios.

Ao darmos um salto no tempo, saindo do século 19 de Machado de Assis para o século 21 do Brasil pós-golpe de Estado em 2016, após os governos de merda de Temer e Bolsonaro, e pós-pandemia mundial de Covid-19, vemos um cenário dramático no que diz respeito às perspectivas de acesso à educação formal e às oportunidades de formação intelectual da população brasileira, principalmente quando imaginamos a formação política e cultural da classe trabalhadora e das pessoas sem acesso aos direitos básicos da cidadania.

O cenário atual para a formação do ser humano, na minha opinião, é dramático.

Para além da complexidade das dimensões centrais da vida humana no que diz respeito ao acesso aos meios de sobrevivência - emprego, moradia, assistência médica etc -, tenho uma preocupação cada dia maior com o não aproveitamento das potencialidades inatas ao cérebro humano, essa máquina fantástica desenvolvida na espécie animal homo sapiens ao longo de milhões de anos. 

Tenho uma teoria a respeito da alteração rápida que vem ocorrendo em nossa linguagem humana com o uso das atuais ferramentas tecnológicas que criamos - as redes sociais e aparelhos de comunicação -, que facilitaram a comunicação sem a necessidade de escrever as mensagens. 

Outra preocupação é pelo fato de o domínio dessa tecnologia de comunicação estar concentrado nas mãos de poucos seres humanos, falo das big techs, concentradas em poucas e poderosas corporações. Viramos commodities, dados comercializáveis com o objetivo de lucro. E nos tornamos coisas manipuláveis...

Após a criação e popularização das redes sociais e a ampliação da comunicação social através de vídeos e áudios, a linguagem escrita - uma invenção humana recente e de poucos milhares de anos - vem perdendo relevância e com isso até as pessoas alfabetizadas e de bom grau de instrução formal começam a perder a capacidade de se expressar através da produção de textos escritos. 

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As pessoas ainda são alfabetizadas nas fases escolares, mas depois passam a perder a capacidade de produção de texto escrito por absoluta falta de uso da língua escrita.

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Faz pouco mais de duas décadas, só duas décadas, que as tecnologias de comunicação foram se popularizando rapidamente e cada vez mais pessoas passaram a se comunicar por áudio e vídeo, sem a necessidade de produzir textos escritos. Isso foi fazendo com que as bases da linguagem escrita padrão começassem a se perder: acentos, ortografia, construção sintática, uso de palavras com sentidos semânticos adequados etc. O cérebro humano é muito plástico, se adapta a tudo o tempo todo, se não faz parte de nossa vida ler e escrever, essas habilidades serão deixadas de lado pelo cérebro humano.

Comecei esta postagem falando de nosso grande escritor Machado de Assis e finalizo a reflexão com ele. 

Machado tinha noção da falta de leitores em sua época, e diversos estudos nas últimas décadas abordam a genialidade do Bruxo do Cosme Velho ao criar diversos tipos de leitores e leitoras em seus romances, contos e demais textos e gêneros discursivos. 

Fico pensando o risco que estamos correndo de nos tornarmos uma sociedade mundial ágrafa, sem o registro escrito, após milhares de anos de avanços da sociedade humana justamente por causa dessa invenção revolucionária: a escrita. 

- Ah, William, isso não aconteceria, que exagero!

Entendam a preocupação: se a maioria da população mundial se tornar analfabeta - analfabetismo real, funcional e até político -, se não souber mais o símbolo linguístico, se não tiver boa capacidade de interpretação de textos, ficando o texto escrito restrito a uma pequena porcentagem de pessoas que têm as habilidades de escrever, ler e produzir registros de cultura, teremos um retrocesso incalculável no conhecimento humano produzido ao longo de milênios.

Machado de Assis escreveu como poucos escritores de sua época, e felizmente alcançou no futuro mais leitores que na época da produção de suas obras geniais. Agora corremos o risco de uma população mundial regredir na habilidade inventada por nós de registrar o conhecimento humano através de símbolos linguísticos.

Por incômodo com o tema, talvez volte a ele mais vezes. Aliás, sou só mais um humano na sociedade humana perdendo a capacidade de ler e escrever. Se eu não ler e escrever com regularidade meu cérebro focará em outras coisas para seguir com sua função animal de sobrevivência.

Reflitam sobre isso. Aliás, reflexão leva tempo. Transformar informação em conhecimento leva tempo de reflexão. Vocês conseguem parar com seus cliques e dedinhos subindo telas para refletirem por algum tempo?

William


Post Scriptum: ler aqui postagem anterior sobre Linguagem. A postagem seguinte sobre esta série pode ser lida aqui.


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