Refeição Cultural
Osasco, 28 de junho de 2023. Quarta-feira.
A serviço da Vida fui,
a serviço da Vida vim;
só meu sofrimento me instrui,
quando me recordo de mim.
(mas toda mágoa se dilui:
permanece a Vida sem fim.)
(Cecília Meireles, Vaga Música, 1942)
OS MISERÁVEIS (MISÉRIA MISÉRIA EM QUALQUER CANTO...)
Fiquei pensando em alguém com quem pudesse desabafar. Me veio à memória algumas pessoas... Não, não quero falar com ninguém. A minha tristeza é uma tristeza acostumada, estou acostumado a ela faz décadas. É o que sou. Sempre fui esse, mesmo nos momentos em que brilhei, em que fiz algo útil. No fundo era triste. A diferença era que tinha feito algo de bom. Isso pacífica o coração.
Hoje foi um daqueles dias em que precisei abrir o chuveiro ao acordar e ficar embaixo da água caindo na cabeça por um tempo, de olho fechado e sentindo a água cair. Me lembrei que fazia isso quando era diretor da Cassi e enfrentava uma máquina patronal contra mim. Os caras quase me destruíram durante o mandato. Aguentei firme até o fim. A saúde capenga que tenho hoje deve ter algum reflexo disso, afinal de contas, somos hoje o que sobrou de ontem.
Um dos conceitos que mais martelam na minha cabeça por esses dias é o da miséria, os miseráveis, as misérias gerais. Miséria miséria em qualquer canto, diziam os Titãs. Os miseráveis...
Eu me sinto tão esquisito que sinto que perdi o direito de me incluir entre os miseráveis porque não tenho dificuldades materiais. Como se os miseráveis dessa terra sofressem só de misérias materiais... claro que a maioria dos miseráveis da Terra padecem de carências materiais... é uma miséria nauseante, pois que proposital. Com isso, parece que perdi o lugar de fala e não posso me incluir entre os miseráveis dessa terra que padecem misérias mil, sejam elas materiais ou espirituais.
Não me sinto um mal-agradecido, sou grato ao acaso da natureza por ter me tornado uma pessoa que viveu essas décadas que vivi. Olho para trás, de onde saí e aonde cheguei, e vejo que fui agraciado pela deusa Fortuna que define o destino de toda a humanidade como pensavam os povos antigos da Grécia. Sou um afortunado. Isso me tira o direito de reconhecer a tristeza que me sufoca? De sentir os efeitos das misérias que me afligem? As misérias para as quais não tenho poder de solução? Uma tristeza às vezes miserável nos tira o ar, comprime o peito, dilacera a alma (essa identidade que o homo sapiens tem em si).
As cenas que não posso evitar me apertam o peito, me derramam hormônios terríveis corpo afora. Estou aqui, não tem como evitar o mundo. O rapaz que ao entregar a marmita descobre que o restaurante só pagou a ele dois reais (dois reais!)... a aquisição de mais uma coisa sem necessidade em casa porque não se consegue suportar a cultura capitalista de destruição do mundo e criação de necessidades desnecessárias na vida das pessoas... a garrafa de cachaça vazia na bancada do jovem que anda destruindo seu fígado e rins, como as pessoas estão bebendo, meu deus!
O espanto do rapaz quase garoto ao ver que só pagaram dois reais para ele vir trazer a marmita me fez lembrar os trocados que ganhava ao lavar carros dos endinheirados do Umuarama quando eu era pequeno, eu nem alcançava o teto dos carros... Me lembrou de quando cruzava Uberlândia de uma ponta a outra de bicicleta pra entregar um remédio por alguns tostões de salário, aquele salário de miséria. Esses empregos de merda dos anos oitenta voltaram piores que naquela época nos dias atuais do capitalismo mundial, dias brasileiros de miséria após os desgraçados Temer e Bolsonaro e toda a canalha que banca o que eles fizeram e significam para a classe trabalhadora brasileira e mundial.
A dor de ver o mundo ao qual pertenci mudar tanto... miséria miséria em qualquer canto... Por que eu não consigo aceitar contribuir com o conhecimento que acumulei na vida laboral e sindical com pessoas de uma corrente política que ainda têm alguma consideração por mim e me pedem para escrever e dar palestras sobre algo que acumulei conhecimento por décadas de lutas da classe trabalhadora? Eu não sei!
Talvez eu tenha uma espécie de gratidão fora de moda em relação ao movimento sindical que me fez mudar tanto na vida. Desde o início da vida sindical sentia que jamais me veria em outra corrente política ou outro partido. O modo de ser do movimento ao qual pertenci é hoje semelhante ao fazer sindical que combatemos a vida toda, e que triste isso! Dá uma tristeza danada ver o que ajudei a construir virar uma mesmice do que se tem por aí. E nunca fui expulso ou coisa do tipo, só fui escanteado, como uma fita cassete deixada num canto pra embolorar e virar lixo.
Pensando no álcool que destrói corpo e alma dos jovens que amamos, e na exploração idêntica à escravidão nos poucos tipos de empregos que existem hoje e ainda no consumismo desnecessário imposto a nós goela abaixo pelas máquinas capitais de manipulação dos desejos, olho para trás e vejo o meu caminhar pelas veredas percorridas, e vejo que eu poderia estar na condição comum e predominante dos que bebem demais, dos que estão escravizados em subempregos, dos que consomem sem necessidade tendo ou não tendo recurso salarial pra isso.
O que me fez ser o que sou foi um conjunto de casualidades da vida a cada vereda que fui tomando. E como sempre me lembro, nunca fui condutor, sempre fui conduzido (o acaso)... é como se houvesse mesmo essa ficção que os humanos inventam - deuses, destino etc. Nem meritocracia é, não foi porque tinha uma ética cristã de fazer bem-feito o que me comprometia a fazer desde quando quebrava cano de merda que terminei tendo uma previdência privada após trinta anos de trabalho bancário em banco público... foi o puro acaso que determinou a condição e o momento em que estou.
Eu bebi muita bebida alcoólica desde muito novo, desde que andava pelo bairro Marta Helena após os dez anos de idade, quando nos mudamos de São Paulo para Uberlândia. Foi lá que passei a brigar na rua, foi lá que amassei barata na cara no barraco de placa de muro onde moramos, foi lá que fiz diversos trabalhos braçais desde menino. Não trabalhei criança e adolescente porque quis ou por algum tipo de ética. Ética do caralho essa de pobre ter que ser escravo enquanto filho de rico curte a vida.
Eu quis ter um monte de bens materiais como todo mundo de meu ambiente cultural, isso é assim. Somos fruto da cultura local de onde vivemos. Queria casa, moto, mulheres, dinheiro na conta pra viajar, e nunca me esqueço o quanto queria trabalhar menos e poder dormir um pouco mais. Vivia cansado pelos cantos. Miséria miséria em qualquer canto... me lembro que tinha um encanto pelo mundo da cultura, queria poder ler ler e ler mais. E não conseguia. Quis bens materiais como todo mundo quer. É humano isso.
EM CADA VEREDA PERCORRIDA, UMA PESSOA INDICOU O CAMINHO A DESBRAVAR
As veredas foram sendo percorridas. Os caminhos foram sendo pisados, mesmo quando não havia caminho, mas no andar, os caminhos iam sendo feitos. Ser o que sou foi fruto do caminhar, das veredas, das pessoas com quem cruzei no caminho e foram elas que me conduziram, de verdade. Quando olho para trás, vejo uma pessoa na encruzilhada de cada caminho que enveredei... é incrível isso!
Quando descobri a história do jovem Chris McCandless e a frase que ele nos legou lá do meio do Alasca, percebi que aquele conceito de felicidade se encaixava um pouco no que tinha sido o meu viver: "Happiness Only Real When Shared".
É verdade essa questão da felicidade compartilhada. Me lembro de minha vida até os dez anos assim. Me lembro dos momentos na dura adolescência quando não estava só. Me lembro dos anos de depressão e fúria, dos momentos de querer morrer e de querer agredir o mundo, no salvamento e no alívio, nunca estava só. Me lembro do quanto amei e fui amado. Me lembro da compreensão que tiveram comigo. O que somos são as oportunidades que tivemos. É triste ver tanta gente com tão pouca oportunidade de se encontrar e ser feliz.
E a vida foi percorrida assim, de vereda em vereda, andando e abrindo caminhos.
O período de vida política e de representação sindical da classe trabalhadora foi repleto de aprendizagem e formação da ideologia e da ética que tenho hoje.
A oportunidade do convívio com tanta gente de luta e progressista e com cultura de classe trabalhadora me modificou para sempre. Ao ir me incorporando ao movimento sindical cutista e da corrente política hegemônica fui me moldando como ser humano e por ser convidado a novos desafios o tempo todo, cresci e contribuí para o crescimento da corrente e do movimento.
Devo minha ética à participação política na luta de classes, principalmente a partir do momento no qual virei membro da categoria bancária do país.
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Hoje, sinto que para mim tudo mudou. Até faço volume nas ruas, em algum encontro de militância partidária, mas não me sinto parte de algo como já senti. E sequer temos potência para mudar algumas coisas no âmbito pessoal e da vida do país.
A Cassi que defendi ontem, por exemplo, hoje incentiva demanda espontânea com apoio do próprio movimento sindical para o qual passei quatro anos explicando o modelo assistencial da autogestão, que deveria ser o inverso do que é hoje. Venceu a lógica do mercado, oferecer serviços e terceirização de tudo. E ainda com desculpa de que se está fazendo Atenção Primária. A Cassi virou quase uma oferta de "check-up" em saúde... Deve ser por causa daquele ditado que o rio segue pro mar... Viva a demanda espontânea ao invés do controle populacional de forma preventiva como era preconizado pela Estratégia Saúde da Família.
O movimento sindical hoje é exatamente como o mundo no qual vivemos (materialismo histórico?), o mundo no qual fomos experimento de ferramentas tecnológicas que passaram a alterar o comportamento de bilhões de pessoas. É impossível fazer Política num mundo onde quem tem opinião diferente dos donos das bolhas é cancelado como os algoritmos fazem nas máquinas digitais e redes sociais.
Tenho várias teorias observando o mundo. Numa delas, penso que a linguagem escrita tende a perder a importância e seremos todos analfabetos, sociedades ágrafas (mas com escribas e sofistas manipulando as massas). Noutra teoria, imagino um novo ser humano menos homo sapiens, mais parecido com vacas e galinhas em pastos e granjas... com menos capacidade de reação para reverter essas misérias todas do mundo capitalista. Algo como zumbis digitais, como diz o neurocientista Miguel Nicolelis em entrevistas.
Miséria miséria em qualquer canto...
William
Post Scriptum: para ler o texto anterior dessa série Lembranças, é só clicar aqui.
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