Refeição Cultural
Osasco, 8 de março de 2023. Quarta-feira. Dia Internacional das Mulheres.
Sem pertencimento
Estava olhando as anotações de minha Carteira de Trabalho e Previdência Social. Nela, os registros feitos ao longo do tempo auxiliam minha memória ao olhar para trás e ver a mim mesmo em diferentes etapas do viver, a começar pela cara de menino na foto do documento, eu tinha 12 anos no dia em que tirei minha CTPS, 21 de janeiro de 1982.
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UMA DIGRESSÃO
Em um dos registros, consta que trabalhei numa escola de idiomas entre os dias 3 de janeiro de 1991 e 31 de dezembro do mesmo ano. Eu era assessor administrativo. Tinha 22 anos.
Me lembro como se fosse hoje as instruções da dona da escola, Glória, para os processos seletivos que fazia. Ela dizia pra eu nunca contratar uma mulher, nunca, porque mulheres menstruam e têm enxaqueca, engravidam, mulheres vivem faltando por qualquer motivo, filhos, família etc. Hoje, tenho claro as explicações sobre as relações de classe no capitalismo. Glória não era uma mulher naquele contexto, era uma capitalista. Lugar de fala tem um pouco a ver com isso.
Essa postagem não tem como tema a questão do dia internacional das mulheres, poderia ser se o meu papel social ainda fosse o que ocupei por um bom tempo em minha vida, de representante de classe. Hoje não teria sentido escrever sobre o tema, não eu. Infinitas serão as matérias e artigos e declarações e posições a respeito da luta central das mulheres pela emancipação e igualdade tão necessárias. Eu não sou mais representante de classe e nem influenciador de segmento algum da sociedade.
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NARRADOR DEMIURGO DE MINHA HISTÓRIA
Quando olho para trás, com o conhecimento que acumulei até hoje, fica mais fácil compreender as diversas etapas da vida pelas quais passei. É como se eu fosse um desses narradores demiurgos em romances ficcionais, que sabem tudo sobre o passado, o presente e o futuro dos personagens, sabe o que eles pensam e o que fariam e não fariam de acordo com seus caracteres.
Começo essas lembranças pelo fim ou pelo começo (ab ovo)? Ou começo in medias res (pelo meio da história)? Meu último registro em Carteira de Trabalho data de 03 de abril de 2019. Meu primeiro registro data de 07 de fevereiro de 1984.
Ao longo de 40 anos fui personagem de várias histórias da classe trabalhadora brasileira, fui subproletário e proletário, trabalhando sem carteira assinada anos seguidos em trabalhos intermitentes, depois passei a maior parte da vida laboral como bancário, em funções de baixa remuneração - escriturário e caixa executivo -, e ao final da vida laboral acabei ocupando uma posição de alta remuneração, por ter sido representante de classe numa função de direção. Aos 50 anos, após quase 27 anos na empresa que trabalhei, saí sem festas de despedidas e tapinhas no ombro.
Escrever diários, ou memórias, não é um troço fácil, não é. O personagem se expõe. Alguns personagens são clássicos por suas memórias e suas exposições. Os personagens machadianos, por exemplo, são das melhores criações que um homo sapiens produziu para essa espécie tão contraditória e autodestrutiva que somos. Vamos acabar mais dia menos dia, vamos acabar com tudo. Isso não é pessimismo, é leitura da realidade.
UMA VIDA PROCURANDO ALGO, TALVEZ SENTIDOS, TALVEZ PERTENCIMENTOS
Neste exato momento em que escrevo me sinto sem pertencimento a qualquer coisa da sociedade humana. É uma constatação. A sorte é que algumas coisas movem o animal humano, uma certa ética ou talvez algum sentimento desses que chamamos amor, responsabilidade, solidariedade, caráter ou coisa do tipo. Contrato social resume o que quero dizer.
Desde meus tempos de trabalhos intermitentes, trabalhos braçais, na infância, alguma coisa me movia para seguir e seguir e tentar de novo e sonhar em ter um amanhã melhor que aquele que vivia no dia a dia. Uma das lembranças mais fortes que tenho daquele período de um trabalhador jovem em trabalhos duros é a vontade que sentia que o dia terminasse para que pudesse sair daquilo e descansar e dormir. Era impossível ser feliz... e me lembro do cansaço. Por isso, quando o despertador toca, a gente quer dormir um pouco mais, ainda não estamos descansados.
Quando tirei a Carteira de Trabalho aos 12 anos de idade foi porque era preciso vender minha força de trabalho desde a tenra idade, era dura a vida que levávamos - meu pai, minha mãe, minha irmã e eu - como subproletários brasileiros vivendo numa cidade do Brasil dos ditadores e ricos desgraçados que faziam a vida do povo uma merda. Meu conhecimento atual me permite ver melhor esses personagens nos anos oitenta.
É nessa fase tão comum da vida das classes trabalhadoras, entre a infância, adolescência e vida adulta no mundo do trabalho, que as pessoas levam vidas miseráveis e são exploradas de forma vil e humilhante. E como seres humanos racionais (homo sapiens) nós tentamos nos agarrar a qualquer coisa que nos dê alguma esperança num amanhã melhor que o momento (mesmo que seja após a morte!). Marx explica as religiões nesse contexto, e a crença em algo que dê sentido e esperança no viver faz grande diferença na vida dos explorados e infelizes.
Durante 40 anos de venda da minha força de trabalho busquei sentidos e justificativas que dessem completude ao meu viver. Durante esse período busquei sentidos nas religiões, no envolvimento em lutas coletivas, procurei respostas nos estudos e nos livros, na ciência, em tudo quanto é coisa que se possa imaginar do mundo humano.
Tive pouco tempo pra pensar, cismar, refletir sobre as coisas. A vida de subproletário é trabalhar, fazer os estudos formais e dormir. A vida de proletário, idem. A vida era imediata, ela é imediata para aquela imensa maioria que só vive pra benefício de uma minoria (elite desgraçada!). Eu ainda odeio os ricos! Compreendo a ignorância (não saber) do povo da classe à qual pertenço (pertenço?).
COMUNIDADES IMAGINÁRIAS, ABSTRAÇÕES HUMANAS
Dois livros que li na última década responderam várias perguntas não necessariamente feitas, mas contidas nos curiosos, naquelas pessoas que têm aquela curiosidade filosófica. O livro do neurocientista e professor Miguel Nicolelis - O verdadeiro criador de tudo - Como o cérebro humano esculpiu o universo como nós o conhecemos (2020) e o livro de Benedict Anderson - Comunidades imaginadas - Reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo (1991) foram leituras que esclareceram grande parte das minhas perguntas sobre a vida e o universo no qual vivemos.
Ambos, explicam como se dão as abstrações humanas, as criações imaginárias que os homo sapiens executam diariamente e ao longo da história dessa espécie e que foram responsáveis por tudo de bom e ruim que nós fizemos nesse planeta nos últimos milhares de anos. Sapiens, de Yuval Harari, também aborda um pouco isso, mas eu não terminei a leitura do livro.
O fato é que criamos deuses há milhares de anos - ontem e hoje, em todos os cantos do mundo -, criamos línguas, símbolos e linguagens, criamos culturas, fazemos guerras de extermínio, destruímos coisas como a própria natureza para criarmos outras coisas, criamos a filosofia, a ciência e a educação e através delas alguns homo sapiens passaram a manipular zilhões de homo sapiens e a dominar o que as pessoas acreditam e defendem - ideologia - mesmo que apoiem coisas que vão prejudicar a elas mesmas, as abstrações e as ideias são mais fortes que elas mesmas.
E assim, como um reles mortal, me vi pertencendo a um monte de abstrações ao longo da existência. Me senti brasileiro, me vi católico e crente nas coisas para além da matéria e da física, depois percebi que as metafísicas não cabiam mais em minhas concepções de mundo, e as relações de classe me fizeram ser de esquerda quando tive oportunidade de acesso à palavra e opinião do meu lado da classe, a dos que vendem a força de trabalho para sobreviver. Após uma vida adulta com muito pertencimento a diversas comunidades imaginadas - a do Banco do Brasil, a dos bancários, a dos movimentos sociais de esquerda - hoje estou no limbo, não me sinto pertencente a nada. Isso é triste!
Não sou aposentado porque com as reformas da previdência talvez eu morra antes de ser considerado um aposentado pelo governo de meu país. Sou beneficiário de fundo de pensão e tenho remuneração certa por ter contribuído por décadas e recebo o que as regras estatutárias definiram ao passar a gozar o direito.
Não sou contador nem professor porque nunca atuei nas áreas nas quais fiz graduação: Ciências Contábeis e Letras. Ao ter a ocupação de bancário a vida toda, acabei não tendo uma profissão. Bancário é ocupação e não profissão. Escriturário, caixa executivo e sindicalista é ocupação e não profissão.
No início dessas memórias e reflexões, que já se estenderam e é hora de finalizar, falei de não me sentir pertencente a nada e ao mesmo tempo saber de meus contratos sociais, de minhas responsabilidades enquanto um ser social de relações.
Minha saída da política se deu talvez por minhas características, nunca fui de paparicar ninguém e sempre fui honesto nas opiniões e, sendo assim, não caibo mais no espaço político que militei por décadas.
Nas relações com seres humanos sinto uma falta de pertencimento incrível - não só nas minhas relações familiares, com conhecidos e estranhos - porque os seres humanos de hoje são como são - relações em bolhas de "iguais" -, se você endossa e paparica alguém ou algo você faz parte da bolha, se não, não.
O desejo é quase que o silêncio total, quando se pensa pais, filhos, conhecidos, estranhos. Não é todo dia que estamos com saco pra falar amém e sim sim para qualquer ser humano que não tolera um "mas", um "veja bem", uma discordância.
É isso. Sem pertencimento. Contudo, estou ciente que devo me alimentar de forma equilibrada, praticar atividades físicas que preservem o corpo para o viver. Alimentar o cérebro, essa casa de meu "espírito". Aliás, até isso está foda! Estou lendo política, história, ciências, culturas, línguas, mas só por automatismo. O aprender algo novo está sem sentido, sendo o que sou hoje...
Os contratos sociais me mantêm! Tudo bem! Seguirei me cuidando. Tenho pessoas que me mantêm por aqui. Não fossem elas... (me lembrei dos tempos de revolta de subproletário e proletário, eu compreendia por que as pessoas viravam terroristas ao terem suas casas e famílias e amigos mortos pelo inimigo...)
William
Post Scriptum: a leitura do capítulo anterior de minhas Lembranças pode ser feita aqui.
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