segunda-feira, 20 de março de 2023

Leitura: O homem que amava os cachorros - Leonardo Padura



Refeição Cultural

Osasco, 20 de março de 2023. Segunda-feira.


INTRODUÇÃO

A leitura de O homem que amava os cachorros (2009), do escritor cubano Leonardo Padura, foi uma leitura difícil para mim, considerando que tenho relativa facilidade para ler grandes romances, grandes tanto no tamanho quanto na fama que carregam. 

Peguei o livro para ler no primeiro dia do ano e achei que a leitura seria mais fácil do que foi. Demorei dois meses para ler 20 capítulos, cerca de 360 páginas, parei por duas semanas e depois decidi ler de uma vez os 10 capítulos finais, mais 230 páginas.

Um dos motivos para escolher Leonardo Padura e este livro dele para ler no início do ano foi meu desejo de conhecer um pouco mais sobre Cuba e o povo cubano sob a ótica de um escritor consagrado e da atualidade, em plena produção literária. 

Quase nada sei sobre esse encantador país socialista, país de José Martí, de Alejo Carpentier, de Fidel Castro e de um dos povos mais aguerridos do mundo. Nem a poderosa URSS resistiu aos ataques ardilosos do império norte-americano e Cuba resiste até hoje! Foda isso! Enfim, só sei de Cuba o trivial que os menos ignorantes sabem.

Na leitura adotei uma estratégia de evitar saber qualquer coisa sobre a obra. Não li o prefácio do livro antes de acabar o romance, prefácio feito por ninguém menos que o professor Gilberto Maringoni, que admiro muito. Não li nem as orelhas do livro. Não li nada na internet sobre a obra. Me lembro do amigo Coelho me dizer muitos anos atrás que eu precisava ler este livro porque ele era demais. Agora, ao postar a foto do livro na rede social, vi que muitas pessoas gostaram muito do livro. E ele é bom mesmo, muito bom!

Este comentário sobre a minha leitura do livro é mais sobre o impacto que a obra teve em mim durante a leitura do que sobre aspectos do romance. Tem muita gente boa que escreveu sobre as características impactantes da arte de Padura neste romance histórico, neste "thriller histórico", como diz o professor Maringoni. 

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OS SERES HUMANOS FAZEM A HISTÓRIA, MAS A FAZEM DE ACORDO COM AS CIRCUNSTÂNCIAS DA ÉPOCA HISTÓRICA

"Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram." (Karl Marx. O 18 de brumário de Luís Bonaparte, São Paulo, Boitempo, 2011, p. 25)


Esta citação de Marx feita pelo professor Maringoni no prefácio ao livro de Leonardo Padura é central para eu tentar compreender meus sentimentos durante a leitura do romance que aborda a vida, o exílio e o assassinato de León Trótski pelo comunista espanhol Ramón Mercader a mando de Josef Stálin. O romance O homem que amava os cachorros tem esse enredo, com o acréscimo do ambiente cubano, pois a história se passa na ilha caribenha, dos anos 1970 até os anos iniciais deste século.

As leituras de História sempre são mais lentas para mim, ou as leituras de História mescladas com análises de outras ciências. O livro de Eric Hobsbawm, A era dos extremos, por exemplo, gastei um século para ler. Era foda ler mais que algumas páginas porque tomar conhecimento de tudo aquilo me estufava. Tinha que parar de ler e refletir, deglutir. O livro do filólogo sobrevivente do nazismo Victor Klemperer, LTI: A linguagem do 3º Reich, também foi dificílimo de ler. Cada capítulo era uma porrada nos sentidos e tinha que parar.

É engraçado como as coisas são meio sem padrão comigo (sem determinismos, sem certezas de resultados) porque quando li em 2021 (comentário aqui) em 15 dias as 150 páginas de trótski - a paixão segundo a revolução (1986), de Paulo Leminski, foi uma leitura rápida de um conteúdo complexo e abrangente sobre a história tanto da Rússia quanto do líder revolucionário, texto que incluiu uma análise dos personagens da obra fenomenal Os irmãos Karamázov, de Dostoiévisk. Enfim, tirando essa exceção de leitura complexa mais rápida, em geral demoro com textos que envolvem história, política, filosofia e ciências.

OS TRÊS CENÁRIOS DO ROMANCE

O romance começa introduzindo o personagem cubano Iván em sua dura vida de cidadão de país socialista vivendo as dificuldades econômicas, políticas e sociais de uma Cuba sob embargo econômico há décadas e sem os subsídios da União Soviética após o fim do regime comunista russo no início dos anos 90. A miséria cotidiana e a falta de alimentos básicos nos dão um mal-estar tremendo.

Em outro cenário e tempo histórico, vemos Liev Davidovich se deslocando no exílio pelas estepes geladas nos anos 30 e se lembrando do processo de coletivização das terras e bens dos povos que viviam na enorme extensão geográfica da Rússia. Uma frase me deixou pensando muito em como deve ter sido o processo (ver abaixo). De certa forma, o processo não foi muito diferente dos capitalistas que tomaram todas as terras dos camponeses na Inglaterra e demais países europeus nos séculos anteriores à Revolução de Outubro.

"Mas os ativistas políticos enviados por Moscou já andavam por aquelas terras, decididos a transformar as tribos nômades em trabalhadores de fazendas coletivas e suas cabras montesas em gado estatal, assim como a demonstrar a turcomanos, cazaques, uzbeques e quirguizes que o seu costume ancestral de adorar pedras ou árvores da estepe era uma atitude antimarxista deplorável a que deviam renunciar em favor do progresso de uma humanidade capaz de compreender que, ao fim e ao cabo, uma pedra é só uma pedra e que não se sente outra coisa além de um simples contato físico quando o frio e o esgotamento devoram as forças humanas e, no meio de um deserto gelado, um homem armado apenas de sua fé encontra um pedaço de rocha e o leva aos lábios." (p. 49)

Num terceiro cenário, conhecemos o jovem catalão Ramón Mercader, comunista lutando na Guerra Civil Espanhola (1936-39). Essa parte da história me enfiou nas recordações de minhas duas décadas de movimento sindical. Toda vez que o romance entrava no cenário espanhol, era só para o leitor tomar conhecimento da guerra fratricida no seio da militância da esquerda. Os "companheiros" e "companheiras" se destruíram uns aos outros, enquanto os nacionalistas, a extrema-direita e os fascistas avançavam até a vitória final e a derrota acachapante da esquerda e dos republicanos. 

Sobre o romance de Leonardo Padura, sintetizo minha opinião dizendo que a obra é fenomenal, exigiu muita pesquisa, muita amarração dos conteúdos estudados e uma criatividade de escritor que poucos teriam para preencher as lacunas que faltam nas narrativas que abordam contextos e histórias reais. Só os grandes escritores fazem isso com maestria. Machado de Assis falava sobre essa questão de preencher lacunas quando narrava histórias ou estórias ficcionais. Saramago também aborda muito isso, as lacunas preenchidas pelos escritores, é só ler A viagem do elefante (2008).

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ENTRE TROTSKISTAS, STALINISTAS E BOLHAS DIVERSAS DA ESQUERDA

Retomo a citação de Karl Marx para encerrar a postagem a respeito da leitura do livro O homem que amava os cachorros e os sentimentos diversos que senti ao longo da leitura.

"Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram." (Karl Marx. O 18 de brumário de Luís Bonaparte, São Paulo, Boitempo, 2011, p. 25)


Quando cheguei ao movimento sindical como diretor eleito de um dos principais sindicatos do país, comecei a conviver com as direções do movimento, o que é diferente de pertencer às bases dos movimentos sociais. Eu já havia participado de várias ações episódicas do movimento sindical e estudantil, que também é uma experiência bem interessante. Contudo, nas cúpulas dos movimentos, a paixão e o romantismo que nos movem são intensificados até o limite do ideal.

Como não vou fazer uma retrospectiva histórica da minha experiência no movimento sindical, sintetizo um pouco pensando nas circunstâncias que não escolhemos quando fazemos parte de um período histórico, como explica Marx na citação acima.

Ao ler o romance histórico de Padura, com os personagens Iván, Liev Davidovich (Trótski), Ramón Mercader, dentre outras figuras reais ou ficcionais, o leitor se envolve com a trama, toma posição, escolhe lado, e assim também ocorre na vida real, normalmente. No romance de Padura, minha simpatia estava com Liev Davidovich, perseguido, escorraçado, exilado, humilhado, vítima de fake news, lawfare e julgamentos arbitrários e assassinado de forma covarde.

E na vida real em relação aos trotskistas, stalinistas, comunistas, socialistas, capitalistas, marxistas, fascistas, nazistas, esquerdistas, direitistas, liberais, conservadores, reacionários, privatistas, socialdemocratas, e outras nomenclaturas que têm diversas funções, para o bem e para o mal, de acordo com o uso delas? Esses nomes são parte integrante do que nós somos, homo sapiens, espécie animal que cria abstrações para organizar o mundo em tribos, em guetos, em antagonismos, e cria comunidades imaginárias o tempo todo, tanto para o bem comum quanto para o mal comum (dos outros).

Quando comecei a entender no movimento sindical a qual grupo eu pertencia, passei a compreender como as coisas funcionavam nos movimentos sociais. Do ponto de vista do grupo no qual eu estava, me lembro que ser stalinista era algo pejorativo, que remetia a autoritarismo. Ser trotskista era algo que não iria a lugar algum, porque onde houvesse mais de um militante, haveria uma divisão e fragmentação do movimento (risos). 

Como todo grupo puxa sardinha pra sua rede, bom era o grupo político ao qual eu pertencia (risos), era democrático, plural, de massas, pela base, e exercia uma forma de decisão sempre focada no convencimento e só se votava como último recurso, pois votar de cara a proposta "A" contra a proposta "B" era chance de divisão, de rachas, de ressentimentos. Convencer politicamente era melhor que simplesmente votar e pronto (contar garrafinhas, qual grupo tem mais crachás), que os derrotados aceitem e acabou (a minoria se submete e pronto?). Chamávamos isso de consenso progressivo. Minha formação política foi essa. Hoje, nem assembleias presenciais existe mais para se fazer oposição a uma proposta da direção...

As circunstâncias históricas que nos foram transmitidas eram as novidades do Novo Sindicalismo, a criação da CUT, do Partido dos Trabalhadores, as Diretas Já e a luta contra a ditadura militar, a conciliação de classes - que vigorou durante esse período que foi do final dos anos 70 até o golpe de Estado em 2016. Me politizei de forma orgânica nessa época histórica, mais especificamente a dos anos noventa adiante, do neoliberalismo dos fernandos no Brasil e depois nos governos do PT.

Quantas vezes durante a leitura do romance de Padura não me peguei olhando para trás e vendo nossas divisões e rachas por questões tanto importantes de objetivos, estratégias e táticas, quanto por questões menores, de personalismo e prioridades corporativas que superavam e muito as questões de classe... Talvez por isso a leitura tenha sido tão truncada para mim. Pelas circunstâncias históricas que nos foram legadas ontem, quando eu fiz parte daquela história e naquelas condições, e pelas que nos foram legadas hoje, em 2023, absolutamente diferentes daquelas condições nas quais me formei politicamente.

É hora de terminar a postagem. O livro do escritor cubano Leonardo Padura me convenceu da qualidade excepcional de sua arte e vou ler outros livros dele. Em relação ao tempo histórico e às circunstâncias que nos foram transmitidas, eu sigo na torcida pelo nosso governo Lula e apoiando o que eu entendo ser correto - e ainda estou calado em relação ao que julgo estar errado -, mas tem coisas que saltam aos olhos em nosso governo e precisamos contribuir para que o governo dê certo porque os inimigos estão avançados em seus projetos de nos tirar do poder e de nos eliminar, porque o mundo é assim.

William


Bibliografia:

PADURA, Leonardo. O homem que amava os cachorros. Tradução de Helena Pitta. 2ª ed. - São Paulo: Boitempo, 2015.


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