Refeição Cultural
Osasco, 10 de março de 2023. Noite de sexta-feira.
"Enquanto os meios de pagamento cresçam, cada fração de classe pode cultivar o seu lulismo de estimação. Responsável, apesar de algo populista, para os bancos. Nacionalista, ma non troppo, para os industriais. Promotor do emprego, embora precário, para o proletariado. Apoiador do crédito para a agricultura familiar, ainda que relutante quanto a enfrentar o latifúndio, para os trabalhadores rurais. Por isso, o presidente pode pronunciar, para cada uma delas, um discurso aceitável, usando conteúdos diferentes em lugares distintos e, sobretudo, tomando cuidado para que os conflitos não impliquem radicalização e mobilização. Porém, o entusiasmo, capaz de sustentá-lo nos momentos difíceis, como foi o 'mensalão', o lulismo só vai encontrar em meio ao subproletariado, o que está relacionado ao fato de que, como toda solução arbitral, tem como prioridade atender à própria base, a que garante a sua continuidade. Daí que, de todas as políticas adotadas, a integração do subproletariado seja a decisiva." (p. 203)
Terminei hoje a leitura desse ensaio fundamental de André Singer sobre Lula e o fenômeno do lulismo na história do Brasil e do povo brasileiro. O livro é espetacular ainda hoje, mais de uma década após a publicação da tese do jornalista e cientista social.
O livro é dividido em quatro capítulos, além da introdução e de um posfácio.
- Introdução: Alguns temas da questão setentrional
1 - Raízes sociais e ideológicas do lulismo
2 - A segunda alma do Partido dos Trabalhadores
3 - O sonho rooseveltiano do segundo mandato
4 - Será o lulismo um reformismo fraco?
- Posfácio: No meio do caminho tinha uma pedra
Ao longo da leitura dos capítulos fiz postagens com alguns comentários e citações. Sobre a Introdução, ver aqui. A leitura do 1º capítulo comentei nesta postagem aqui. Os comentários do 2º capítulo podem ser lidos aqui. E as impressões do 3º capítulo, aqui.
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O TESTE ELEITORAL DO LULISMO
"A vitória de Dilma Rousseff na eleição de outubro de 2010 mostrou a vigência do realinhamento e garantiu por pelo menos mais quatro anos a extensão do lulismo..." (p. 169)
A eleição de 2010 comprovou o que Singer demonstra ao longo do livro. O perfil dos eleitores de Lula mudou entre 1989 e 2010, inverteu-se, houve um realinhamento. Os muito pobres e subproletários que sempre votaram contra a esquerda até 2002 foram decisivos nas eleições de Lula em 2006 e Dilma, indicada por Lula na eleição seguinte.
LULISMO
É o governo Lula melhorar a vida do povão sem nenhuma arruaça ou revolução.
"A transferência de votos de Lula para Dilma entre os mais pobres e no Norte/Nordeste implica que o projeto político de reduzir a pobreza sem contestar a ordem, particularmente nos bolsões de atraso regional em que a pobreza se fixou ao longo da história brasileira, conquistou corações e mentes, tornando plausível a longa duração para o lulismo que venho supondo desde o início desta exposição." (p. 175)
EXPORTAÇÃO DE COMMODITIES AJUDOU O LULISMO
Singer afirma que a expansão mundial da economia e a valorização das commodities contribuíram para o sucesso dos governos Lula. Mas não foi só isso. As políticas de governo foram mais que centrais.
"Foi a fortuna da conjuntura internacional associada à virtù de apostar na redução da pobreza com ativação do mercado interno que produziu o suporte material do lulismo." (p. 179)
AUMENTO DO EMPREGO E RENDA DO TRABALHO
"Isso quer dizer que o fator fundamental na redução da desigualdade durante o governo Lula foi o expressivo aumento do emprego e da renda, na qual a valorização do salário mínimo teve rol crucial, e não as políticas compensatórias, fossem elas de corte neoliberal ou não." (p. 184)
ERA PRA SER UM REFORMISMO "FORTE", MAS O POSSÍVEL FOI UM REFORMISMO "FRACO"
Singer explica que o desejo do petismo com "o espírito de Sion", o grupo que criou o PT nos anos 80, era pra termos um reformismo forte, mas a realidade se impôs e após os anos noventa, principalmente a partir de 2002 com a "Carta ao povo brasileiro" - prevaleceu "o espírito do Anhembi" e tivemos um reformismo fraco, sem rupturas e contestação ao capitalismo.
"As condições para o programa de combate à pobreza viriam da neutralização do capital por meio de concessões, não do confronto. A manutenção da tríade juros altos, superávits primários e câmbio flutuante faria o papel de acalmar o capital. De outro lado, a simpatia passiva dos trabalhadores, para quem a ativação do mercado interno e a recuperação do mercado de trabalho representavam benefícios reais, garantiu a paz necessária para não haver radicalização. Após o 'mensalão' e a emergência do lulismo, sobretudo no segundo mandato, com sustentação social própria formada pelos votos do subproletariado, Lula pôde implantar a fórmula 'ordem e mudança' com maior liberdade e resultados melhores, como vimos no capítulo anterior." (p. 188/189)
Em resumo:
"ao tomar das propostas originais do PT aquilo que não implicava enfrentar o capital como seria o caso da tributação das fortunas, revisão das privatizações, redução da jornada de trabalho, desapropriação de latifúndios ou negociação de preços por meio dos fóruns das cadeias produtivas, o lulismo manteve o rumo geral das reformas previstas, não obstante aplicando-as de forma muito lenta. É a sua lentidão que permite interpretá-lo como tendo um sentido conservador..." (p. 192/193)
REFORMISMO FRACO
"A conversão da segunda alma do PT ao lulismo (o espírito do Anhembi) e seu correspondente ideológico, o desenvolvimento de um capitalismo popular, deixou vazio o lugar do anticapitalismo, hoje disputado por pequenas siglas como o PSOL e o PSTU, já que a esquerda do PT tem impacto dentro do partido, mas pouco fora dele. Essa situação carrega um paradoxo: o de que a esquerda no Brasil ganhou e perdeu, ao mesmo tempo, com a ascensão do lulismo. No momento em que um projeto reformista, mesmo fraco, avança na redução da sobrepopulação trabalhadora superempobrecida permanente, aumentando o contingente proletário, a luta ideológica parece recuar para um estágio anterior ao conflito capital/trabalho." (p. 219)
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COMENTÁRIO
Eu tive acesso à tese de André Singer sobre o lulismo durante o segundo mandato do presidente Lula. Era dirigente sindical dos bancários no Sindicato e na Confederação e achei a tese muito coerente com a realidade que vivíamos no país.
Muitas impressões que tinha a respeito da sociedade brasileira foram confirmadas com os dados que Singer apresentava em relação às eleições presidenciais desde a redemocratização. Os pobres não votavam e não simpatizavam com a esquerda. Exemplo: minha família de pobres e conhecidos pobres. Votaram no Collor, no FHC e na pqp, menos no Lula e no PT.
A eleição de Lula em 2002 teve toda uma conjuntura favorável. O neoliberalismo tinha fodido com o país e com o povão, tinha dizimado a classe média também, parte dela composta por funcionários públicos e ex-públicos - demitidos pelas privatizações -, a classe trabalhadora se ferrou com os tucanos.
Vi, vivi e ajudei a construir os mandatos de Lula e Dilma como dirigente da classe trabalhadora entre 2003 e 2018, tenho em minha pele todas as nossas conquistas do 1º dia do mandato de Lula até o golpe contra Dilma em 2016. Fomos do inferno ao céu com o PT no governo e do céu ao inferno com os bandidos no poder entre 2016 e 2022.
A volta de Lula à presidência do Brasil em 2023 é, na minha opinião, a vitória do lulismo. Não tínhamos outra liderança no país capaz de conquistar os 50,9% dos votos válidos na eleição viciada de 2022 através de uma máquina fraudulenta e corrupta que usou o orçamento público e meios desonestos para tentar manter os milicianos no poder central.
Acho o livro muito atual, mesmo considerando que Singer o escreveu antes das manifestações de junho de 2013, antes da Lava Jato, antes de Aécio e Cunha, antes do golpe e antes da aberração que colocaram no poder em 2018, com Lula preso numa masmorra de forma ilegal e sem poder concorrer.
A leitura já nem teria sentido para mim, recolhido em casa, fora do movimento político por não caber mais nos espaços onde militei por mais de duas décadas. O mundo mudou e as pessoas mudaram, não há mais convívio político se a gente tem personalidade e posição política, e nunca fui de paparicar ninguém.
Após uma conversa com o amigo e companheiro de tantas jornadas, o mestre Carlindo do Dieese, acabei pegando o livro na mão e toquei a leitura até o fim. Foi bom! Clareei mais ainda minha visão do mundo no qual estamos enfiados.
Basta. Registrada a impressão. André Singer é um cientista político que nos legou uma grande interpretação do povo brasileiro e do Brasil.
Obrigado, Singer!
William
Post Scriptum (12/3/23): No sábado pela manhã, li o posfácio do livro - "No meio do caminho tinha uma pedra". Nele, André Singer nos fala um pouco de seu percurso formativo, de sua experiência como jornalista e professor no Departamento de Ciência Política da USP e a gênese da ideia do lulismo. O texto é dividido em 3 partes: tempos de esperança, tempos de experiência e tempos de reflexão. Gostei muito do texto. Cito abaixo um conceito de Singer que já conhecia dos tempos de leitura de Edward Said (ler aqui) sobre a questão do papel do intelectual.
"Penso que cabe ao intelectual participar da vida pública de modo peculiar. Justamente por não ser representante, a não ser de si mesmo, ele tem a liberdade de falar o que os profissionais não podem dizer. Deve fazer uso dessa franquia para, com a bagagem do conhecimento acumulado, intervir na agenda pública, usando, sem medo, o senso de perspectiva histórica que o treino intelectual propicia. A sociedade necessita de balizas fundamentadas no mar de eventos encapelados que os jornais, revistas, televisões e páginas de internet oferecem dia a dia." (p. 247)
Bibliografia:
SINGER, André. Os sentidos do lulismo - Reforma gradual e pacto conservador. 1ª ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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