Refeição Cultural
Osasco, 29 de março de 2023. Quarta-feira.
"Uma operação de resgate tem como intuito salvar o corpo que está sendo flagelado e levá-lo para um outro lugar, onde será restaurado. Quem sabe, depois de uma reabilitação, ele pode até seguir operante na vida. Isso partindo da ideia de que a vida é útil, mas a vida não tem utilidade nenhuma. A vida é tão maravilhosa que a nossa mente tenta dar uma utilidade a ela, mas isso é uma besteira. A vida é fruição, é uma dança, só que é uma dança cósmica, e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária. Uma biografia: alguém nasceu, fez isso, fez aquilo, cresceu, fundou uma cidade, inventou o fordismo, fez a revolução, fez um foguete, foi para o espaço; tudo isso é uma historinha ridícula. Por que insistimos em transformar a vida em uma coisa útil? Nós temos que ter coragem de ser radicalmente vivos, e não ficar barganhando a sobrevivência. Se continuarmos comendo o planeta, vamos todos sobreviver por só mais um dia." (p. 108/109)
A leitura de Ailton Krenak é algo tão fantástico, espetacular, que a gente lê um parágrafo e para e olha pro horizonte e fala ou pensa "puta que o pariu!"... cada verdade, cada porrada que a gente leva que dá vontade de mudar, de mudar a vida, de mudar as coisas, de mudar o rumo de tudo. Essa é a impressão mais direta que posso registrar ao falar do livro A vida não é útil (2020) do filósofo e pensador indígena dos povos Krenak.
Este pequeno livro com 5 textos provocadores e reveladores da forma como os povos originários veem a natureza e tudo que nela existe é um livro gigante no conteúdo.
A VIDA É UMA FRUIÇÃO
A vida é uma fruição nos ensina Krenak. Vejam como essa ideia se parece com aquela conhecida por nós de que a vida é a jornada e não o destino. "Life's a journey, not a destination" já cantava a banda Aerosmith na música Amazing décadas atrás.
Quando li um dos textos deste livro no auge da pandemia de Covid-19 em 2021 - "O amanhã não está à venda" - fiquei tão pensativo após ouvir as lições de Krenak que nunca me esqueci da ideia do quanto somos convencidos ao achar que podemos adiar as coisas e deixá-las para amanhã como se tivéssemos domínio sobre o amanhã. Na pandemia, poderíamos morrer em alguns dias ao respirar o vírus (ler comentário aqui).
A VIDA NÃO É ÚTIL
Agora, neste momento, hoje, as lições de Krenak me pegam em cheio, me puxam a orelha. Estou numa fase complexa de minha vida, de adaptação à uma nova realidade social, fora das funções que exerci ao longo da vida e que deram sentido ao meu viver, quando me senti "útil" pela primeira vez na existência. Aí o sábio filósofo indígena nos diz:
"Nós estamos, em nossa relação com a vida, como um peixinho num imenso oceano, em maravilhosa fruição. Nunca vai ocorrer a um peixinho que o oceano tem que ser útil, o oceano é a vida. Mas nós somos o tempo inteiro cobrados a fazer coisas úteis. É por isso que muita gente morre cedo, desiste dessa bobagem toda e vai embora..." (p. 109)
Forte demais essa mensagem!
RELAÇÕES UTILITARISTAS
Ainda sobre essa questão do "útil" eu tenho uma tese há muito tempo sobre as relações utilitárias que vivemos nessa sociedade capitalista. Com o advento das tecnologias de comunicação e redes sociais das últimas duas décadas o utilitarismo foi exponenciado ao limite do possível. A gente só existe, só é considerado, só tem relações sociais enquanto é útil de alguma forma.
"CIVILIZAR-SE" NÃO É UM DESTINO
Outro conceito que me deixou pensando demais é sobre essa invenção humana de que temos um destino a ser alcançado: nos "civilizarmos". A história seria linear e nosso destino seria avançar e avançar como uma regra determinada.
"O pensamento vazio dos brancos não consegue conviver com a ideia de viver à toa no mundo, acham que o trabalho é a razão da existência. Eles escravizaram tanto os outros que agora precisam escravizar a si mesmos. Não podem parar e experimentar a vida como um dom e o mundo como um lugar maravilhoso (...) Como se 'civilizar-se' fosse um destino. Isso é uma religião lá deles: a religião da civilização." (p. 113)
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Outros conceitos e ideias de Krenak:
NÃO EXISTEM MAIS GOVERNOS, SÓ CORPORAÇÕES
"Hoje essa cultura de revoluções, de povos que se movem e derrubam governos, criam outras formas de governança, não tem mais sentido. Nem na América Latina, nem na África, nem em continente nenhum. Isso porque os governos deixaram de existir, somos governados por grandes corporações." (p. 15)
O CAPITALISMO VAI ACABAR COM TUDO
"O capitalismo quer nos vender até a ideia de que nós podemos reproduzir a vida. Que você pode inclusive reproduzir a natureza. A gente acaba com tudo e depois faz outro, a gente acaba com a água doce e depois ganha um dinheirão dessalinizando o mar, e, se não for suficiente para todo mundo, a gente elimina uma parte da humanidade e deixa só os consumidores." (p. 66)
O CAPITALISMO TIRA TUDO ATÉ DE QUEM NÃO QUER SABER DELE
"A verdade é que nós não precisamos de nada que esse sistema pode nos oferecer, mas ele nos tira tudo o que temos." (p. 67)
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Para finalizar, mais dois conceitos que me deixaram cismando demais:
TEMPO?
"Acredito que nossa ideia de tempo, nossa maneira de contá-lo e de enxergá-lo como uma flecha - sempre indo para algum lugar -, está na base do nosso engano, na origem de nosso descolamento da vida." (p. 70)
AMANHÃ?
"Há muito tempo não programo atividades para 'depois'. Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã." (p. 88)
Demais as lições do sábio Ailton Krenak. É livro pra ler sempre, todo dia, para nos lembrarmos o que somos: natureza. Somos parte da natureza.
"Temos que abandonar o antropocentrismo; há muita vida além da gente, não fazemos falta na biodiversidade." (p. 81)
William
Bibliografia:
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. Pesquisa e organização Rita Carelli. - 1ª edição - São Paulo: Companhia das Letras, 2020
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