Refeição Cultural
Osasco, 03 de março de 2023. Noite de sexta-feira.
"Eis o motivo de o ex-presidente insistir que 'nunca na história deste país...'. Irritados, os supostos 'formadores de opinião' não percebem que Lula não está se dirigindo a eles e martelam a tecla de que a história não começou com Lula, o que é verdade. Contudo, ouvido vários degraus abaixo, o bordão adquire sentido distinto: Nunca na história dos mais humildes o Estado olhou tanto para eles." (p. 81)
Hoje li o 1º capítulo - "Raízes sociais e ideológicas do lulismo" - do livro de André Singer e mesmo sendo uma análise de um período anterior da história política brasileira, um olhar sobre o comportamento do eleitorado brasileiro entre as eleições de 1989 e as eleições de 2010, é possível vermos explicações para o que ocorreria após o golpe de 2016 e a eleição de Bolsonaro em 2018. Tenho a impressão, inclusive, que o eleitorado lulista descrito por Singer - os muito pobres e o subproletariado - foi fundamental de novo para a eleição de Lula em 2022.
"A combinação de elementos que empolga o subproletariado é a expectativa de um Estado suficientemente forte para diminuir a desigualdade sem ameaça a ordem estabelecida." (p. 52)
Li o capítulo relembrando o Brasil daquele período. Pertenci ao subproletariado nos anos oitenta e depois ao proletariado, após os anos noventa. Fui sindicalista nos anos dois mil e vivi intensamente cada momento descrito por Singer no capítulo.
Me lembro como se fosse ontem a crise do "mensalão" em 2005 e 2006, e as crises sucessivas inventadas pelos manipuladores da casa-grande para desacreditar o governo Lula e a esquerda. Me lembro também de nossos acertos como, por exemplo, as campanhas para estabelecermos uma política nacional de valorização do salário mínimo etc.
Talvez a maior parte de nós da militância nunca tenha compreendido que os pobres no Brasil são de direita, são conservadores e não se identificam com a esquerda. Não é culpa deles, isso é uma questão histórica da luta de classes, e sabemos o poder da ideologia da classe dominante e a manipulação da consciência das massas sem acesso à educação e formação política.
A mudança substancial nas eleições de 2006 em relação às eleições de 1989,1994, 1998 e 2002 é que nessas os muito pobres e miseráveis votavam sempre na direita, nos coronéis, nos candidatos da casa-grande e endinheirados das metrópoles e na de 2006 votaram pela primeira vez na "esquerda", em Lula. Isso se repetiu em 2010 ao votar na candidata de Lula. Surgia ali o fenômeno do lulismo.
Os pobres elegeram Collor em 1989 e FHC nas seguintes e Lula só reverteu essa história dos muito pobres votarem na direita após seu primeiro mandato como presidente do país (2003-2006).
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POBRE QUER MELHORIA DE VIDA SEM SE ENVOLVER EM LUTA DE CLASSE
"Identificada como opção que punha a ordem em risco, a esquerda era preterida em benefício de solução pelo alto, de uma autoridade constituída que pudesse proteger os mais pobres sem ameaça de instabilidade. Esse seria o sentido da adesão intuitiva à direita no espectro ideológico. Era comum, nas pesquisas, os eleitores de baixa escolaridade entenderem a direita como o que é 'direito' ou como sinônimo de 'governo', a esquerda sendo o 'errado' e a oposição..." (p. 58/59)
MARX E O 18 BRUMÁRIO
"Marx, em O 18 Brumário, revela que a projeção de anseios numa figura vinda de cima, que deriva da necessidade de ser constituído enquanto ator político desde o alto, é típica de classes ou frações de classe que têm dificuldades estruturais para se organizar." (p. 59)
Pelos números observados nas eleições brasileiras avaliadas antes do fenômeno do lulismo é possível tirar a conclusão que o teto de 30% era da "esquerda" e não do líder "Lula". Ainda na eleição de 1998, isso é observado:
"Em decorrência, os argumentos da campanha de Lula de que Fernando Henrique tinha abaixado 'a cabeça para os banqueiros e agiotas internacionais [...], aumentou os juros [...] e as empresas estão fechando e demitindo' não atraíram mais do que os cerca de 30% de votos válidos que pareciam, então, constituir o teto do candidato, quando, na realidade, eram o teto da esquerda, socialmente limitada pela rejeição do subproletariado no extremo inferior de renda." (p. 62)
ENTRAM EM CENA OS PROGRAMAS DO GOVERNO LULA
Com as políticas sociais do governo Lula ao longo do primeiro mandato, houve uma mudança no perfil dos apoiadores e eleitores de Lula.
"Em resumo, o tripé formado pelo Bolsa Família, pelo salário mínimo e pela expansão do crédito, somado aos referidos programas específicos, e com o pano de fundo da diminuição de preços da cesta básica, resultou em diminuição da pobreza a partir de 2004, quando a economia voltou a crescer e o emprego a aumentar." (p. 68)
Esses resultados DA Política, como nos ensina Marilena Chauí no livro Leituras da Crise (ela discorre sobre a diferença entre a ética da política e a ética na política), fizeram com que Lula fosse reeleito mesmo após o massacre da crise do "mensalão", crise criada pela mídia da casa-grande por praticamente dois anos.
"Ou seja, durante a fase em que os atores políticos tinham a atenção voltada para as denúncias do 'mensalão', o governo concluía em silêncio o 'Real do Lula', que, diferentemente do original, beneficiava apenas a camada da sociedade que não sai nas revistas." (p. 69)
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"SÍNDROME DO FLAMENGO" OU ELEITOR POBRE NÃO TEM IDEOLOGIA PARTIDÁRIA
Singer traz um conceito formulado por Fábio Wanderley Reis usado para explicar a ascensão do MDB nos anos setenta e depois generalizado como visão estrutural da política brasileira.
"A 'Síndrome do Flamengo' faz o eleitor de baixa escolaridade escolher o partido mais ou menos como opta por um time de futebol. O MDB dos anos 1970 era o 'partido do povo', assim como o Flamengo era o 'time do povo'." (p. 71)
Achei interessante essa questão e isso me faz compreender até as mudanças dos eleitores nas últimas eleições, após o golpe de Estado em 2016.
"(...) Ou seja, não um partido de classe, mas do povo. Nesse script, o PT estaria agora substituindo o MDB dos anos 1970, tanto na falta de conteúdo quanto na capacidade de reter a lealdade popular." (p. 73)
LULISMO SE ESTABELECE NO PT
"Em resumo, argumentarei que o lulismo era uma força nova em 2006, a qual aderiu ao PT lentamente, mas acabou por tomar conta do partido, que, por seu turno, já vinha mudando de orientação programática desde 2002." (p. 74)
PROLETÁRIOS DEVERIAM TER MAIS CONSCIÊNCIA DE CLASSE DO QUE SUBPROLETARIADO DESORGANIZADO
"Para trabalhadores com carteira assinada e organização sindical, a luta de classes em regime democrático oferece alternativas de autodefesa em momentos de instabilidade. Porém, os que não podem lançar mão de instrumentos equivalentes, por não estarem organizados, seriam vulneráveis à propaganda oposicionista contra a 'bagunça'." (p. 75)
QUEM SÃO OS SUBPROLETÁRIOS, FOCO DO LULISMO?
"Subproletários são aqueles que 'oferecem a sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais'. Estão nessa categoria 'empregados domésticos, assalariados de pequenos produtores diretos e trabalhadores destituídos das condições mínimas de participação na luta de classes'." (p. 77)
Essa citação conceitual é de Paul Singer dos anos 80 e no texto nos é informado que o subproletariado era nada menos que 48% do PEA (População Economicamente Ativa).
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"Dado o seu tamanho, o subproletariado encontra-se no centro da equação eleitoral brasileira, e o coração do subproletariado está no Nordeste. Não somente porque na região empobrecida, que é a segunda mais populosa do país, habita boa parte dos subproletários, mas porque dela irradiam os subproletários que buscam oportunidade no centro capitalista, que é o Sudeste. Nucleado no Nordeste, onde Lula conta com elementos biográficos, mas estendendo-se para o conjunto do país, o lulismo, segundo indicam os dados eleitorais de 2006 e 2010, fincou raízes no subproletariado brasileiro." (p. 78)
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E AGORA, JOSÉ?
André Singer termina o capítulo com a pergunta de um milhão de reais. Como o PT e a CUT vão organizar a classe trabalhadora como pretendem sabendo dessas características do subproletariado e da multidão na informalidade e fora do alcance das organizações da esquerda?
"Em outras palavras, apesar do sucesso do PT e da CUT, a esquerda nao foi capaz de dar a direção ao subproletariado, fração de classe particularmente difícil de organizar. O subproletariado, a menos que atraído por propostas como a do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tende a ser politicamente constituído desde cima, como observou Marx a respeito dos camponeses da França em 1848. Atomizados pela sua inserção no sistema produtivo, ligada ao trabalho informal intermitente, com períodos de desemprego, necessitam de alguém que possa, desde o alto, receber e refletir as suas aspirações dispersas. Na ausência de avanço da esquerda nessa seara, o primeiro mandato de Lula terminou por encontrar outra via de acesso ao subproletariado, amoldando-se a ele, mais que o modelando, e, ao mesmo tempo, fazendo dele uma base política autônoma. É isso que obriga a esquerda a se reposicionar." (p. 79/80)
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Capítulo com uma análise inteligente e perspicaz para que possamos compreender o Brasil e o povo brasileiro em relação à sua composição e seu comportamento nas questões políticas.
A primeira postagem sobre o livro de Singer pode ser lida aqui.
William
Bibliografia:
SINGER, André. Os sentidos do lulismo - Reforma gradual e pacto conservador. 1ª ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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