segunda-feira, 6 de março de 2023

Lendo: Os sentidos do lulismo (III) - André Singer



Refeição Cultural

Osasco, 5 de março de 2023. Domingo nebuloso. (só terminei na segunda o texto que comecei no domingo)


A leitura do 2º capítulo do livro de André Singer, me fez olhar para trás e ver a nossa vida brasileira de forma clara e transparente como a água de Bonito (MS). Lula, o PT e o povo brasileiro são bastante próximos daquilo que Singer nos apresenta em sua tese sobre o lulismo. O capítulo 2 se chama "A segunda alma do Partido dos Trabalhadores".

O capítulo analisa um período que vai das eleições de 1989 até as eleições de 2010, da criação do Partido dos Trabalhadores em 1980 ("o espírito do Sion") até a "Carta ao povo brasileiro" em 2002 ("o espírito do Anhembi"). Contrapõe essas duas almas do PT até aquele momento no qual o livro foi editado, 2012.

Ler o livro hoje, entendendo ser uma análise antes das manifestações de junho de 2013, antes do Golpe de 2016, antes de Temer e Bolsonaro, é muito esclarecedor para compreender o Brasil que viveu as eleições de 2022, a vitória do lulismo no ano passado, porque avalio que não foi o PT que venceu as eleições de 2022, foi Lula. E isso nos dá uma fragilidade gigantesca em relação ao futuro, que não existe (só o hoje existe).

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LER E ESCREVER SÃO ATOS DE BUSCA PELO CONHECIMENTO, E UM ATO DE AMOR AO PRÓXIMO

Não tem sido fácil ler. Confesso. Banzo... Faço um esforço pessoal ao ler textos políticos ou materiais formativos que alimentem meu cérebro de algo novo para que eu não caia na rotina imbecilizante que envolveu a humanidade quase que completamente, não posso deixar meu cérebro morrer. Somos natureza, somos matéria, somos o instante, somos finitos. Sou o acúmulo de meus esforços, de minhas relações afetivas e das casualidades do viver. Escrever uma postagem desta dá um trabalho da porra! Contudo, o esforço de fazê-la já é alimento cognitivo, uma refeição cultural. E, às vezes, até contribuo com uma ou duas pessoas que leram esse esforço honesto e compartilhado com o mundo.

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O ESPÍRITO DE SION

Singer nos lembra um pouco do que foi o "espírito" da reunião ocorrida na escola da Congregação Nossa Senhora do Sion no dia da fundação do Partido dos Trabalhadores, em fevereiro de 1980:

"(...) a proposta de fundação do partido, aprovada em Congresso dos Metalúrgicos (janeiro de 1979), falava em criar um partido 'sem patrões', que não fosse 'eleitoreiro' e que organizasse e mobilizasse 'os trabalhadores na luta por suas reivindicações e pela construção de uma sociedade justa, sem explorados e exploradores', expressão que significava, na época, uma referência cifrada ao socialismo." (p. 88)

Em seguida, Singer descreve um pouco das forças políticas e segmentos sociais que participaram daquela construção partidária: grupos de intelectuais de diversas áreas do saber e cultura, grupos religiosos das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o movimento sindical mais combativo (novo sindicalismo) e movimentos sociais. É uma mistura de segmentos sociais histórica essa que criou o PT. 

Aliás, as mentiras que a extrema-direita inventa sobre o partido são muito ridículas e só fazem efeito porque as pessoas são muito preconceituosas e ignorantes (ignoram, não sabem)! O PT é um partido de crentes, de gente que tem religião e fé, sou ateu e militei no movimento sindical e partidário por décadas e nunca vi na vida tanto crente junto (pessoa que crê em algo além da matéria)! Talvez a proporção seja de uns 8 em cada 10 esquerdistas que se persignam, que têm seus deuses, santos e orixás. É uma riqueza imensa esse sincretismo religioso!

O partido foi criado pelos trabalhadores organizados a partir do "novo sindicalismo" surgido no final dos anos 70 e início dos anos 80. Até Perry Anderson descreve o PT como algo único no mundo pós-guerra.

"(...) A singularidade brasileira foi anotada por Perry Anderson, para quem o PT constituiu o único partido de trabalhadores de massas criado no planeta depois da Segunda Guerra Mundial." (p. 90)

Singer nos conta que o PT começou a fazer mudanças a partir dos anos 90 por causa do refluxo no mundo do trabalho, eram os efeitos do neoliberalismo, a recessão, desemprego etc.

"(...) Reconhecendo que o quadro havia se transformado, o I Congresso do PT, em 1991, elabora estratégia que busca ampliar o espaço para a luta institucional, uma vez que o movimento social entrara em descenso." (p. 93)

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O ESPÍRITO DO ANHEMBI

André Singer afirma:

"Se existe um momento específico que simboliza a irrupção da segunda alma do PT, acredito ter sido o da divulgação da 'Carta ao Povo Brasileiro', em 22 de junho de 2002..." (p. 95)

Que pena! E eu, bancário do BB recém-eleito diretor do Sindicato em abril daquele ano, estava naquele exato momento aguardando minha liberação do local de trabalho, a agência Vila Iara em Osasco, para começar a atuar como sindicalista no maior sindicato da categoria no país. Isso significa que o meu aprendizado do fazer política já seria com base na 2ª alma do PT e da Articulação Sindical da CUT. Um grupo que entendia que o capitalismo venceu...

"A alma do Anhembi, expressa no programa 'Lula 2002', compromete-se com a estabilidade e atira as propostas de mudança radical ao esquecimento. Enquanto a alma do Sion, poucos meses antes, insistia na necessidade de 'operar uma efetiva ruptura global com o modelo existente', a do Anhembi toma como suas as 'conquistas' do período neoliberal: 'a estabilidade e o controle das contas públicas e da inflação são, como sempre foram, aspiração do todos os brasileiros', afirma." (p. 97)

Eu começaria a aprender a ser sindicalista a partir de agosto de 2002 e enquanto isso, nas profundezas da alma do PT e da CUT, começava uma tendência a aceitar que o capitalismo vinha pra ficar. Eu lia documentos e textos falando do socialismo enquanto objetivos históricos, mas os objetivos imediatos sempre falavam primeiro, afinal, nós tínhamos que apresentar resultados dos processos de negociação entre capital e trabalho. E apresentamos resultados por vários anos seguidos!

"O que estava em jogo, na verdade, era o abandono da postura anticapitalista que o partido adotara na fundação..." (p. 98)

Dias atrás, agora em março de 2023, vi uma entrevista do novo presidente do PT-SP, o companheiro Kiko, ao Breno Altman, e em certo momento fiquei chocado (a gente ainda se surpreende!) ao ver afirmações na linha do que está dito por Singer em relação à alma do Anhembi. O capitalismo venceu... temos que melhorar um pouco a vida das pessoas... etc. E olha que passei a entender melhor o que era "conciliação de classe" uns anos depois de já ser sindicalista.

FIM DO AUTOFINANCIAMENTO DO PARTIDO

Aprendi no movimento sindical a expressão "quem cria, sustenta" em relação a lutar pelo fim do imposto sindical e pela sindicalização massiva dos trabalhadores para termos sindicatos independentes de governo e patrão.

Singer descreve o que aconteceu com o PT quando o espírito do Anhembi passou a dominar o partido. Ele cita um estudo de Pedro Floriano Ribeiro que diz:

"A grande guinada na estrutura de financiamento do PT ocorre em 1996: de um ano a outro, a participação do fundo partidário no total das receitas petistas passa de 12,3% para mais de 72%". (p. 100)

Singer acrescenta que a contribuição de empresas também aumentou a partir dos anos 2000. E termina o parágrafo demonstrando o fim do princípio de quem cria, sustenta.

"Em contraste, a participação dos filiados no financiamento do partido, que fora de 30% em 1989, caíra para menos de 1% em 2004." (p. 100)

O capítulo é longo e não dá pra colocar na postagem muita coisa.

O autor vai explicar o processo de popularização do partido nas classes de menor renda, ocupando o lugar que o MDB teve durante o período da ditadura. O PT vai perder base na classe média e nos grupos mais ideológicos à esquerda.

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"Em resumo, os indicadores empíricos convergem na direção de que, depois de 2002, o partido passa a ter menos força relativa na classe média, nos eleitores de alta escolaridade, no Sul/Sudeste e nas capitais das regiões mais ricas, cuja aceitação o caracterizava desde a fundação. Por outro lado, ampliou em escala significativa o suporte entre os eleitores de baixa renda, de baixa escolaridade, no Norte/Nordeste, nas metrópoles periféricas e no entorno das capitais. O PT vai, portanto, na mesma direção que o lulismo, tornando-se um partido popular." (p. 116/117)

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"PARTIDO DOS POBRES"

"Pode-se dizer que, depois de 2006, o partido ficou muito mais próximo do Brasil do que era até meados dos anos 1990, mostrando que estava certa a intuição de Juarez Guimarães quando ele escreveu que 'o PT tornou-se nos últimos anos mais nacional, mais brasileiro, mais sertão, mais samba, mais negro, mais nordestino e mais amazônico, mais agrário'. (...) Por ter entrado no coração do subproletariado, o PT adquire a feição de 'partido dos pobres', lugar que estava vago na política brasileira desde pelo menos 1989, quando o PMDB foi fragorosamente derrotado pelo fracasso econômico do governo Sarney." (p. 117)

Na conclusão do capítulo, Singer diz que a síntese das duas almas do PT, ainda que uma síntese "provisória" à época, 2012, é que a esquerda passou a ser a minoria nos segmentos que apoiam o PT.

"(...) Isso significa que a base do PT, que era predominantemente de esquerda, passou a abrigar um contingente análogo de eleitores situados à direita, os quais, somados aos de centro, deixam a esquerda em minoria." (p. 118)

E olha que eu percebi isso dentro do movimento social ao longo de duas décadas...

O capítulo termina com Singer avaliando que enquanto durasse as melhorias para o povão, sem nenhuma mudança da ordem econômica e capitalista, o PT poderia ir longe. Só que vieram diversas mudanças internas e externas, crise capitalista, movimentações do imperialismo patrocinando novos golpes de Estado, junho de 2013, Lava Jato etc.

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COMENTÁRIO FINAL

É muito esclarecedor o livro de André Singer, mesmo lendo seus ensaios mais de uma década depois e após ver tudo o que aconteceu no Brasil entre 2013 e 2023.

A mim, que vive por dentro todo o período de ascensão e queda de Lula, do PT e do movimento sindical, fica muito claro entender por que no momento as coisas caminham como caminham, após a volta de nosso grande líder Lula à presidência do país num cenário completamente diferente dos cenários de governos anteriores.

Entendo por que na esquerda não há mais espaço algum para divergências de ideias e debates sobre estratégias e objetivos de futuro. Como diz Hobsbawm na "Era dos extremos", tudo compreender não é tudo perdoar. Uma coisa é entender como as coisas funcionam, outra é concordar com elas.

Chega, cansei de escrever nesta postagem longa.

William


P.S.: Para ler comentários sobre o capítulo anterior, é só clicar aqui.


Bibliografia:

SINGER, André. Os sentidos do lulismo - Reforma gradual e pacto conservador. 1ª ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2012.


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