Aniversário de 84 anos da vovó e os 5 filhos reunidos com suas famílias. |
Refeição Cultural
Osasco, 12 de janeiro de 2023. Quinta-feira, fim de noite.
No meu fone está tocando músicas antigas, "som sobre som", como chamávamos nos anos oitenta onde morávamos lá em Minas Gerais. A cada música que toca, um arrepio, uma lembrança. Uma vez ou outra o coração aperta, os olhos se enchem d'água e um turbilhão de imagens passa pelas minhas memórias.
Neste instante, estou aqui repassando a vida em momentos, épocas, lugares, contextos. Estou refletindo sobre a minha vida, a vida das pessoas de meu relacionamento, a vida do mundo todo talvez. Deve ser essa coisa de achar sentidos e significar o viver o que estou fazendo.
Minha mãe deve estar na cozinha de casa, ouvindo suas músicas e talvez fazendo sua lição de francês. Sim, minha mãezinha tem 76 anos e gosta de estudar francês. Ela nos diz que é o momento de respiro em sua vida, sua hora de estudo do francês. Ela anota tudo num caderno. As músicas que ouve enquanto trabalha em casa são seu oxigênio também.
As músicas som sobre som que estou ouvindo me trazem à memória, inevitavelmente, o tio Jorge, irmão de minha mãe. Acho que foi ele que nos fez gostar dessas músicas, eu e os primos àquela época. Conversar com o tio Jorge quando eu tinha uns 13 ou 14 anos era uma aula musical. Teve uma época na qual moramos no mesmo terreno, o da minha avó.
Neste momento, o tio Jorge e minha prima estão lá no Mato Grosso, visitando o irmão, nosso tio e família, que vivem na Barra do Garças. Nosso tio Léo está com problemas de saúde e sempre que possível alguém da família vai até lá visitar o tio e a tia. Tive a felicidade de poder levar meus pais na Barra em julho do ano passado. Foram 5 dias de matar saudades.
Minha mãezinha tem estado muito preocupada e apreensiva com os problemas de saúde de seus irmãos. Além do tio Léo, a irmã também está passando por um momento delicado, pois caiu algumas vezes nos últimos meses e está se recuperando de fraturas no fêmur. Meu primo que é como um irmão é quem está cuidando da tia. Estivemos juntos no Natal e foi muito bom matar saudades e ver a mesa com a família reunida. Esse é um dos sentidos do Natal para alguém como eu.
O tempo está passando, as vidas estão indo e vindo. Como os povos indígenas nos ensinam, somos parte da natureza, somos a natureza. Minha avó e a tia Alice faleceram, e meus tios perderam filhos em acidentes. Por parte de pai, também já perdemos a avó, tios e demais familiares queridos.
Enquanto envelhecemos, enquanto alguns de nós vai caminhando para a partida dessa vida, outras vidas estão chegando, como é o caso de nossa mascotinha, a filha de minha sobrinha, com poucos meses de vida e cheia de energia para aprender e absorver tudo ao redor a cada dia do viver. O tempo. A natureza. A vida. A morte.
Tenho refletido bastante sobre a vida, inclusive sobre a minha vida, esse fragmento da natureza.
Ao sair de uma rotina de absorção total de meu pensar em atividades dos papeis sociais que representei ao longo de décadas, me peguei de range rede, como diz o personagem Riobaldo Tatarana (G. Rosa), sem ocupação e desafios como aqueles nos quais encontrei o melhor de mim nos tempos de labuta.
Não é fácil significar a vida depois de viver a vida que eu vivi nestas mais de cinco décadas como um ser vivo da natureza. Ao olhar para trás e refletir sobre o que vivi, tenho algumas noções sobre o que foi a minha existência.
UM SER HUMANO ADAPTÁVEL AO VIVER
Avalio que fui uma pessoa que recebeu da natureza um cérebro bem funcional e adaptável. Só recentemente li um livro sobre o cérebro humano que me fez compreender muito do que buscava de explicações e respostas sobre a vida. O professor Nicolelis, neurocientista que passou quatro décadas estudando o cérebro humano, explicou aos seus leitores a funcionalidade incrível do cérebro do homo sapiens, e sua plasticidade.
Ao olhar para trás em minha vida, fica fácil compreender o que o professor Nicolelis explica sobre essa máquina humana, nosso cérebro e sua plasticidade.
Só de rever instantes do meu viver consigo perceber isso. Não é que eu tenha sido uma espécie de hippie ou bicho-grilo que viveu dizendo que deixaria a vida me levar. Talvez em alguns momentos da juventude pode ter sido assim, mas não a vida toda. Mas quando vejo tudo que já fiz em quatro décadas de adulto, fico impressionado ao ir de um extremo ao outro das atividades humanas.
Nasci canhoto e virei destro por causa das crendices populares dos anos 70. Fazia desenhos muito bons ainda criança, era muito bom pra copiar coisas só de ver. Fiz curso técnico de eletrônica e ia bem até mudar de ideia. Depois fiz faculdade de Ciências Contábeis e era muito bom em matemática. Fazia equações na lousa que enchiam aquela coisa de uma ponta à outra. Trabalhei criança em drogaria e aplicava injeções com 14 anos de idade.
Fiz faculdade de Educação Física por dois anos e era muito bom em áreas médicas, só tirava notas boas em anatomia etc. Trabalhei de quebrar concreto como ajudante de encanador. Fui chapa de descarregar caminhão. Fui bancário concursado de banco público. Depois fiz faculdade de Letras. E eu que cheguei a pensar em ser monge e me retirar da vida em sociedade, virei sindicalista e fui representante eleito em vários espaços políticos por 16 anos. Se tem algumas coisas que conheço bem são aquelas nas quais atuei. Sei de gestão de saúde e da nossa Cassi, sei da história da categoria bancária e sei um pouco de política.
E nas questões de nossas dimensões psicológicas e culturais, então? Fui aculturado como católico, fui muito religioso, estudei a religião, as religiões, porque o sincretismo brasileiro nos faz transitar pela umbanda, pelo espiritismo, tomar a benção e passes etc. Hoje compreendo demais os porquês das diversas religiões e deuses que preenchem a compreensão da vida para boa parte das pessoas no mundo. Já acreditei em disco voador e extraterrestres, já acreditei em viagens astrais e tudo quanto é coisa que as sociedades humanas já pensaram.
Mas o fato é que nunca consegui encaminhar e concluir e fazer as poucas coisas que pensei que queria fazer, que planejei ou me vi fazendo. Não fui professor e queria ter sido. Queria ter sido uma espécie de intelectual, sei lá o que isso queria dizer na minha cabeça de jovem, mas não fui. Nunca trabalhei naquilo que estudei. Não fui contador e não fui professor. Até hoje tenho dificuldade de preencher cadastros que perguntem minha profissão. Não tenho! Não sou profissional de nada. Tive ocupação a vida toda, não profissão... que foda, isso! Mas a vida foi assim.
Até por esse olhar ao meu viver, concluo que tive um cérebro muito plástico, muito funcional, como é um cérebro humano!
O fato é que milhões de pessoas como nós da classe trabalhadora, pobres e que não nasceram em berços de ouro e com um destino social traçado na família bem situada na vida, vamos nos posicionando na vida e na sociedade fazendo o que é possível para sobreviver e conquistar um lugar ao sol. Milhões de nós vivem assim há séculos neste país de passado e presente desgraçados para o povo fora da casa-grande.
Enfim, chega de lembranças e memórias e reflexões por hoje. Somos o que somos. Humanos, demasiadamente humanos.
William Mendes
Para a leitura do Capítulo 6 das Lembranças, clique aqui.
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