Refeição Cultural
Osasco, 26 de janeiro de 2023. Quinta-feira. (atualizado às 21h55)
Li dias atrás o romance Torto arado (2018) de Itamar Vieira Junior para participar da aula do curso "13 livros para compreender o Brasil" do Instituto Conhecimento Liberta (ICL). Estava na Praia Grande (SP) e no dia da aula presencial acabei chegando tarde a São Paulo e não pude participar do encontro.
O romance de Itamar Vieira Junior é muito bem escrito, é surpreendente e sensível, é triste também, mas é um livro fundamental para todos nós que sonhamos com um novo Brasil, um país que coloque em prática algum dia uma reforma agrária justa e que assente milhões de pessoas com as condições necessárias para que elas possam viver plenamente através do fruto de seu trabalho com a terra.
Li Torto arado durante uma semana de estadia em um espaço da classe trabalhadora, uma colônia de férias de um sindicato de uma importante categoria profissional, os professores paulistanos. A Colônia do Sinpro SP é um lugar onde nos sentimos plenos, é um local acolhedor para as professoras e professores da ativa e aposentados descansarem alguns dias. Minha esposa é associada há décadas deste importante sindicato.
Itamar Vieira Junior é geógrafo e servidor público do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e conhece muito a respeito do tema que tratou no livro de ficção. Vi uma entrevista dele à TVT e fiquei encantado com a figura humana que ele é. Itamar nos conta que o que ele é é fruto muito mais da convivência com os trabalhadores rurais do que com a convivência nos ambientes de formação acadêmica. Nos 15 anos como servidor do Incra, o escritor soube de muitas mortes ocorridas por causa da luta pela terra.
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UM ROMANCE DO POVO BRASILEIRO
Durante a leitura de Torto arado revivi os anos setenta e oitenta de minha própria família, principalmente a família que vivia em Minas Gerais, onde vivi entre os 10 e os 17 anos. Durante essa vivência foram diversos trabalhos braçais, inclusive com enxada, enxadão e cavadeira de terra, e também trabalhos com marreta, talhadeira e ponteiro, foram casas humildes de todos nós da família. Tempos de marmitas, de corpos cansados da longa labuta.
A história de Bibiana e Belonísia, de seus pais, tios, primos e da comunidade de Água Negra - descendentes de escravizados que viviam ali há dezenas de anos - é um pouco da história de todos nós da classe trabalhadora e das massas exploradas que não compõem o pequeno grupo de privilegiados nascidos e criados nas casas-grandes da atualidade, a pequena parcela da elite rica e rentista que se esconde atrás da abstração "mercado", que inclui os famigerados canalhas do "agro pop".
Água Negra representa uma comunidade quilombola no sertão da Bahia. Mas poderia representar também as comunidades carentes e sem apoio algum do Estado nos centros urbanos, as favelas.
Lá em Uberlândia onde cresci tem dessa gente da elite de merda do "mercado" e do "agro pop", aquela gente que jogou merda por drone no comício do presidente Lula em 2022.
Lá em Uberlândia e nas mais de 5 mil cidades brasileiras tem uma multidão de gente como os trabalhadores de Água Negra, descendentes de escravizados e povos indígenas, pessoas negras, pardas, vermelhas, amarelas e brancas, povo brasileiro miscigenado por séculos de nascimentos através de mães negras, índias, cafuzas e mamelucas muitas vezes violentadas por brancos de origem estrangeira.
Me lembrei muito de minha vida em Uberlândia ao ler Torto arado...
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NARRADORES NOS SURPREENDEM
Uma coisa boa na leitura do romance de Itamar Vieira Junior é a sua excelente capacidade narrativa. O escritor nos surpreende ao variar as personagens que narram a história da família e da comunidade quilombola de Água Negra.
O romance é dividido em 3 partes - Fio de corte, Torto arado e Rio de sangue - e cada parte tem um narrador que se destaca. Essa variância na narrativa dá uma dinâmica fantástica ao romance, os leitores têm diversas nuanças e pontos de vista de personagens dentro da história daquela comunidade.
Na primeira parte, quem narra a história é Bibiana, a irmã mais velha. Na segunda parte é Belonísia, a irmã mais nova. Ambas têm as vidas interligadas por um acidente que aconteceu na infância delas, quando tinham 7 e 6 anos.
A terceira parte é narrada por uma "encantada", um espírito que se expressa a partir de um cavalo, uma pessoa que empresta seu corpo físico para que os espíritos se comuniquem conosco. É maravilhoso isso!
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"Meu cavalo morreu e não tenho mais montaria para caminhar como devo, da forma que um encantado deve se apresentar entre os homens, como deve aparecer por esse mundo. Desde então, passei a vagar sem rumo, arrodeando aqui, arrodeando acolá, procurando um corpo que pudesse me acolher. Meu cavalo era uma mulher chamada Miúda, mas quando me apossava de sua carne seu nome era Santa Rita Pescadeira. Foi nela que cavalguei por um tempo, não conto o tempo, mas montei o corpo de Miúda, solitária. Sou muito mais antiga que os cem anos de Miúda. Antes dela, me abriguei em muitos corpos, desde que a gente adentrou matas e rios, adentrou serras e lagoas, desde que a cobiça cavou buracos profundos e o povo se embrenhou no chão como tatus, buscando a pedra brilhante. O diamante se tornou um enorme feitiço, maldito, porque tudo que é bonito carrega em si a maldição..." (p. 203)
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Eu cresci frequentando ambientes diversos da religiosidade brasileira. O catolicismo no qual fomos aculturados no século XX era esse no qual os cristãos frequentavam as missas nas igrejas católicas e também frequentavam os terreiros de umbanda, onde tomavam a benção, e passes nos centros espíritas.
O pai das meninas e demais líderes espirituais da comunidade de Água Negra - Zeca Chapéu Grande, filho de Donana e companheiro de Salu -, que benzia e curava corpo e alma de sua gente é o equivalente de minha infância e adolescência à Dona Nenzinha, nos tempos de Uberlândia, e essa comunicação com os espíritos foi também a minha realidade ao receber as bençãos de Maria Baiana e Fabinho, que nos acolhiam e cuidavam de nós ao longo de anos já vivendo em São Paulo.
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Enfim, está feito meu registro sobre a leitura do belo romance de Itamar Vieira Junior, Torto arado. Vale a pena a leitura! Vale a pena!
Pensando um pouco a respeito do que discutimos nas leituras do curso no ICL, o romance de Itamar nos traz de forma muito aguda a questão das "permanências" entre o ontem e o hoje na história brasileira.
Até quando veremos a exploração do homem pelo homem (ser humano)? Essa é a questão! Quando iremos superar esse passado injusto, desumano e opressor em relação à maioria do povo brasileiro, povo descendente dos povos escravizados e originários, explorados até o limite do viver? Até quando?
William
Bibliografia:
VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado. São Paulo: Todavia, 1ª ed. 2019. 264 páginas.
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