quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Romaria a Água Suja (2023)



Refeição Cultural 

Uberlândia, Minas Gerais, Brasil. 


"Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás,
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar.
" (Antonio Machado)


Quando peguei a estrada na sexta-feira 11, por volta de duas horas da tarde, imaginei que passaria horas pensando na vida e no mundo.

Quando digo que cada romaria é uma experiência única, não é apenas por dizer uma frase de efeito. Cada experiência é única mesmo. 

Achava que faria longas reflexões sobre a vida e o mundo no qual existimos como parte integrante da natureza porque nas caminhadas preparatórias que fiz foi assim que ocorreu: pensei muito sobre muita coisa.

Na estrada (BR 365), naquele momento do início da caminhada, com aquele calor de fim dos tempos (e de agosto), senti que minha concentração em mim mesmo teria que ser total. Dominar meu corpo era a única meta até o fim. As elucubrações sobre a vida ficariam para depois.


E assim ocorreu. Ao longo de 70 Km foquei em cada passo dado, cada mensagem interna de meu corpo, cada mudança de piso, relevo ou luminosidade do ambiente, e fui indo, indo, indo. Por um instante, vi o efeito da displicência, e ela quase me tirou do caminho... (metáforas da vida) 

Sendo conhecedor antigo do trajeto entre Uberlândia e Água Suja, e sabendo os pontos de referência para possíveis paradas para descanso, fiz cada trecho ser uma etapa vencida da caminhada. Novamente, podemos pensar numa metáfora da vida com isso, etapas a superar, isso é o viver.


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NINGUÉM ANDA O MESMO PERCURSO DUAS VEZES...

Ninguém entra duas vezes no mesmo rio (como nos ensinou Heráclito), ou ninguém anda o mesmo percurso duas vezes... O rio muda, a estrada muda e nós mudamos.

Já faço essa caminhada entre Uberlândia e Água Suja desde os anos oitenta, desde adolescente. Os motivos e as condições nas quais fiz a romaria já foram os mais diversos. Já fiz a romaria sendo muito religioso e a caminhada é um tipo de experiência.


Hoje faço a romaria com outros propósitos como, por exemplo, viver um momento de introspecção intensa. E a experiência também é algo para muito além da razão, pois não se anda 70 Km em um dia só de forma racional, não se anda. O componente emocional e psicológico é fundamental para uma pessoa andar dezenas de quilômetros.

O rio Araguari continua lindo, mas os relevos mudaram ao longo do caminho. Continua-se vendo grandes fazendas, mundo agro pop, muita terra de poucos donos (Brasil injusto e desigual). Quilômetros de desertos verdes, eucaliptais que não acabam nunca. Poucos bichos, pouca diversidade.

Só as sombras são parecidas...

Os caminhantes nunca são os mesmos. A caminhada nunca é igual, nem pra quem está acostumado. O rio e os caminhos nunca são os mesmos, os caminhantes também.

Este caminhante que reflete sobre a experiência é outro, tudo foi diferente das vezes anteriores. A começar que nunca tive tanto receio de não completar o percurso, receio de passar mal, medo de descobrir que não poderia mais fazer o que estava acostumado a fazer. A natureza está em mudança acelerada. Sou natureza.

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OS PREPARATIVOS PARA O CAMINHO

Cheguei a Uberlândia determinado a fazer a romaria até a cidade de Água Suja. Nas semanas anteriores, administrei meus receios e medos de não ter condições de percorrer todo o caminho. 

Na preparação física e psicológica, fiz umas caminhadas progressivas: andei 10 Km, depois andei 20 Km, depois 30 Km e, por fim, na semana anterior, andei 48 Km, o que seria equivalente a chegar até a Antena no caminho de Água Suja. Na última caminhada, decidi qual tênis seria usado.

Trabalhei mentalmente a hipótese de só conseguir chegar até a Antena e ter que voltar de lá. Uma de minhas preocupações era ter queda de pressão e algum apagão por desidratação ou cansaço extremo. Ou até o quadril com desgaste me impedir de seguir adiante.

Um homem na estrada...

Uma peregrinação como essa é uma boa metáfora da vida: é preciso inteligência para ler a realidade e lidar com ela. 

Antes de chegar a Uberlândia, havia planejado sair bem cedo, umas 9h30 da manhã, para andar o dia todo de sol escaldante estando descansado. Já que a caminhada leva cerca de 24 horas, no meu caso atual, achava melhor lidar com o calor intenso ainda descansado. É inevitável ter que andar um dia inteiro de sol e uma noite inteira.

No entanto, a realidade material e objetiva se impõe em nossas vidas. Treinei em SP andar sob um calor de 30º... só que bastou andar menos de 2 Km ao meio-dia de Uberlândia no dia anterior à romaria para perceber que seria loucura me expor ao sol ininterrupto do início da manhã ao fim do dia. O calor de 30º de lá é muito maior que o de onde moro. Imaginem na estrada... O corpo me avisou sobre isso.

Após definir o novo horário de saída - a vida é assim, traçamos objetivos, fazemos planejamentos, definimos estratégias e táticas - tinha outra questão a resolver: se iria sozinho ou se teria a assistência de alguém para me acompanhar de carro ao longo do trajeto e para voltar mais rápido quando chegasse a Água Suja.

Paisagens do caminho... ipês.

Até 2016, nunca tive assistência nas romarias. Saía sozinho e após percorrer o percurso e chegar à cidade, ainda tinha algumas horas pela frente para conseguir voltar a Uberlândia: esperar horas por um ônibus na rodoviária, achar uma van que estivesse oferecendo serviço etc. Numa romaria dessa a gente fica acordado 30 horas. Ir com alguém dando assistência na estrada é um privilégio, pois além de diminuir o peso da mochila, chega-se a cidade e volta para casa mais rápido.

Por saber das dificuldades pessoais de meu cunhado e irmã, que estão lidando com suas cronicidades, estava sem jeito para perguntar se meu cunhado poderia me dar uma assistência. Nas últimas romarias, ele nos fez essa gentileza, digo no plural porque ele já deu assistência até para meu filho e o amigo dele. Imagino que deva ser muito cansativo ficar num carro por 24 horas andando e parando, é cansaço pra todo mundo, pra quem anda, pra quem dá assistência. Mais uma vez, meu cunhado e minha irmã se colocaram à disposição e eu sou muito grato por isso. O receio de fazer o caminho diminuiu muito ao saber que seria acompanhado.

Agora era fazer o caminho e atingir meu objetivo. Na noite anterior à romaria, fiz um texto reflexivo sobre a experiência do caminho, anseios e expectativas (ler aqui).

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O CAMINHO

Neste ano, estava com um marcador de distâncias no pulso. Nunca tive muito entusiasmo por essas modas tecnológicas. Pra se ter uma ideia de como evito muitos aparatos tecnológicos, ainda levo nas romarias meu Aikman de 1987 e algumas fitas cassete. 

No entanto, ganhei da esposa um Huawei Band 8 e o trequinho é bem interessante. Na romaria deste ano, o aparelho contribuiu muito para minhas etapas a superar e no efeito psicológico. 

Nas etapas mais difíceis, cada vibração em meu pulso era um Km superado... gostei do aparelho.

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14,01 Km

Saí do Trevo para Araxá e andei até a ponte do Rio Araguari. Meus pais me levaram até o trevo. Que calor absurdo! A concentração na pisada foi total. Tinha que estabilizar meus pés dentro do tênis e evitar qualquer pisada forte com o pé cozido. Sabia que se não machucasse os pés nas primeiras horas, a tendência era ter pés sãos para a noite toda.



Na mochila levei muita água para não desidratar. Marquei de encontrar meu cunhado lá no Rio Araguari. Deu certo. Andei 3h15 e parei uns 30 minutos. Comi um pão com carne. Coloquei um esparadrapo no dedinho do pé, pois a costura da meia estava incomodando. Saí para a próxima etapa. Iria escurecer logo e queria andar bem na subida do rio.

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9,86 Km

Saindo do Rio Araguari, o romeiro enfrenta um longo percurso em subida na BR 365. Uns quilômetros adiante tem o Trevo de Miranda e 7,8 Km depois um antigo posto de gasolina desativado, que se chamava Posto Triângulo. Ali os romeiros param um pouco, encontram as assistências etc.


Fiz esse percurso em 2h36. O tempo que era marcado no relógio do pulso ao longo da caminhada acabou não sendo o tempo só andando porque com o cansaço a gente esquece de dar pausa quando para para urinar, para pegar uma sopa, um pão etc. Neste dia, tinha muita gente no acostamento dando água e outras coisas aos romeiros.

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8,81 Km

Saí do antigo Posto Triângulo por volta de 22h para andar até o Posto N. Sra. da Guia, este em funcionamento. Até lá eu já teria andado cerca de 36 Km pelas distâncias marcadas num antigo panfleto que carrego comigo.

Pelo relógio da Huawei, quase todas as distâncias tiveram alguma diferença em relação ao panfleto antigo. Andei por 2h10 até o ponto de referência que mentalizei. Meus quilômetros em pisada de romeiro foram entre 13' e 15' conforme o trecho.

A noite de 11 para 12 de agosto foi de breu total. A lua cheia havia sido na semana anterior. Sem um farol de carro indo ou vindo e sem uma luz de lanterna o peregrino não consegue visualizar onde pisa. É tenso! Imaginem só, basta somar o fator pisar no breu com o fator cansaço e talvez com o fator sono... resultado: risco.

DISPLICÊNCIA - O caminho da gente pode ser interrompido por um vacilo, um instante que defina uma vida. Na estrada quase não havia sinal da operadora do meu celular. Foi a 1ª vez que levei celular na romaria por causa dos receios que falei de minha condição atual. Então, andando naquele breu total, num trecho alto da estrada, o celular vibra várias vezes. Por impulso, tiro o celular do bolso e tento ver o que era. Fiz isso andando... em poucos passos, saí do acostamento e meu pé esquerdo caiu na valeta de uns 40 cm ou mais de profundidade... por pouco eu não me quebro todo! A caminhada poderia ter terminado ali. Sou um homem de sorte... I'm Lucky Man... valeu a lição!

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11,72 Km

Saí do Posto N. Sra. da Guia para andar até a barraca de ajuda aos romeiros na Antena pouco antes das duas horas da manhã. Não estava com sono. Fui tomando bastante café no caminho. Meus pés estavam bem. A noite estava incrivelmente quente.

Eu e o cunhado

Este foi o único trecho no qual o odômetro do Huawei marcou mais que a distância que estava registrada no panfleto. Quase um quilômetro a mais. No entanto, o fator psicológico de o relógio vibrar no pulso a cada 1 Km foi muito estimulante. Pensava ao andar: "daqui a pouco andei um terço", "daqui a pouco andei a metade", "faltam só x quilômetros". E o som rolando no meu toca-fita...

Andei 3 horas. Durante o percurso, entrei em algumas barracas de ajuda e comi alguma coisa, sentei uns minutos. 

Barraca da Antena.

Cheguei a Antena melhor do que imaginava. Que bom! Como havia muita gente e não tinha lugar nas mesas, tomei minha sopa em pé mesmo.

Para não acontecer de ficar mal durante o percurso seguinte, decidi ficar um tempo na Antena. Pensei em cochilar uma hora. Não deu certo, não cochilei mais que vinte minutos. Saí umas 7 horas da manhã sem tomar café direito porque o estômago estava embrulhando com qualquer coisa. Comi meio pão.

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A alvorada.

9,86 Km

O trecho até o Posto Santa Fé foi o mais surpreendente desta romaria. Saí 7 horas da manhã pensando em andar mais de 3 horas porque imaginava andar mais de 12 Km e, no entanto, tive a grata surpresa de numa das curvas da estrada ver o posto. Achei que era miragem (risos).

Deu menos de 10 Km pelo odômetro no pulso e eu estava relativamente inteiro. Andei por 2h23 e o calor estava ficando insuportável.

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8,77 Km

E quem disse que seria fácil?

Deste ponto em diante, após andar uns 55 Km, é que começa a etapa mais difícil da romaria entre Uberlândia e Água Suja, é aquele momento do sol escaldante, corpo extenuado, e cada quilômetro andado é mais difícil que vários andados anteriormente.

Antigamente, andávamos 6 Km até o Atalho no eucaliptal. Hoje ele não existe mais. O proprietário proibiu os romeiros de atravessarem por ali. Agora é pela estrada mesmo que se vai. Deu quase 9 Km. Gente, como foi difícil! Foi um esforço tremendo manter o foco para não ficar parando a cada Km.

Os peregrinos andam andam e andam e tudo o que veem é plantação de florestas de eucaliptos. Os pássaros que ouvi cantarem foram os pássaros-pretos. Pouca diversidade ali.

Grato pela galinhada, mas não
consegui comer... estômago ruim.

Cheguei na barraca de ajuda que fizeram para os romeiros na entrada da estrada de terra para a cidade. Estava bem cansado. Não consegui engolir a comida que peguei: uma tradicional galinhada mineira. Nossa, estava uma delícia, só experimentei! Tive que descansar uma meia hora e decidir sair sem comer. Apostei nas barras de cereais que tinha comigo pra não faltar carboidratos no fim.

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6,67 Km

O percurso final é sempre uma etapa à parte da romaria. É um misto de dor e alegria que se vive durante os quilômetros finais. O peregrino deve estar com o corpo repleto de hormônios por ter andado até ali e sua chegada à cidade e à igreja tem todo um componente psicológico.

O terrão vermelho do último trecho, misturado ao sol e ao suor, dão a imagem final ao romeiro ao chegar à cidade. 

Peregrinos chegam à Basílica de
N. Sra. da Abadia de Água Suja.

Depois daquela imensa descida e subida de terra e cascalho, não atravessamos mais o pasto que tinha antes da cidade. Os romeiros agora devem seguir pelas ruas de terra até entrar em Água Suja.

Mentalizei muito nesta etapa final. Administrei a energia vital já que não estava conseguindo comer. Fui bebendo líquidos e mastigando alguma coisinha.

Cheguei umas 15 horas. Completei o caminho. Pelo odômetro do Huawei, andei 70 Km. As maiores paradas foram de 1h30 na Antena e 1h no Santa Fé. Saí de Uberlândia, do trevo para Araxá às 14h20 e cheguei às 15h20. (o vídeo sobre o caminho pode ser visto aqui)

Incrível eu não ter tido nenhuma bolha nos pés. Pela primeira vez em décadas eu sequer fiz o preparo de meus pés com esparadrapos. Nenhuma bolha! Pisei por 70 Km como se fora uma pluma. Como se fora carregado por anjos ou por Deus. Nem vermelhos meus pés ficaram. 

Completei o Caminho.

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SE FAZ O CAMINHO AO ANDAR

A estrofe do poeta espanhol Antonio Machado que abre esta postagem é muito profunda para mim. É de uma simbologia incrível! Quase vejo a minha vida nela. 

Antes de iniciar o caminho, pensei comigo que iria refletir muito sobre a vida porque vinha fazendo isso antes de pegar a estrada para Água Suja. Escrevi que tinha umas coisas pra digerir e queimar dentro de mim.

Entretanto, a realidade do caminho se impôs e tudo o que fiz foi concentrar minha atenção em mim mesmo, dialogar com o meu corpo e fazer com que ele me levasse até o objetivo final. Consegui.

As coisas a digerir e queimar dentro de mim continuam aqui dentro do meu ser, do caminhante, do peregrino. Mas tudo bem. A vida é como uma romaria dessas que fiz. Vamos indo passo a passo até chegar no destino que mentalizamos.

E se não chegarmos, tudo bem. Tudo bem. Cada pessoa chega até onde dá. A vida também é assim.

Vou digerir as coisas que seguem entaladas no meu sistema digestório e que não me permitem sequer me alimentar direito certas horas. A comida não desce...

Aprendi muito nesta nova caminhada, aprendi sobre mim, sobre esse ser que sou neste momento. As coisas estão tão claras pra mim que até fico chocado.

Foi uma experiência muito importante para mim sair de Osasco, ter medo e receio de não conseguir fazer o que fazia antes, encarar meus medos, encarar minhas dores e dificuldades, e chegar!

É isso!

William


Post Scriptum: Ao analisar o aplicativo do aparelho Huawei Band 8, em relação às distâncias percorridas por mim na sexta 11 e no sábado 12, fiquei tentando entender por qual motivo o registro no aplicativo é de 34,73 Km + 44,58 Km, o que daria um percurso de 79,31 Km andados por mim. De fato, essa distância é mais condizente com a realidade do que os 70 Km computados por mim manualmente, pois posso ter deixado de registrar alguma distância percorrida por cansaço, por esquecimento etc. 

Quando eu começava uma etapa, eu clicava o início do "treino" de caminhada ao ar livre e o correto era sempre dar pausa quando parava. Acontece que com o tempo, o romeiro vai cansando, começa a parar e não dá pausa, ou o contrário, dá pausa e esquece de dar play novamente etc. Eu fiquei encafifado com o fato de dar mais de 2 Km de diferença entre a Antena e o Posto Santa Fé na distância que marquei no relógio. No antigo panfleto da Polícia Rodoviária Federal (PRF-MG) consta como 12,5 Km e no meu marcador manual deu menos de 10 Km. Cansado como estava, pode ser que tenha deixado de marcar algum momento do caminhar, em alguma parada que fiz.

Se as distâncias anotadas entre o Trevo para Araxá (saída de Uberlândia) e a igreja de N. Sra. da Abadia de Água Suja, pelo antigo Desvio ou Atalho, davam 73,5 Km e agora o romeiro tem que andar mais uns 3 Km até a nova entrada para a cidade e andar mais um tanto até onde se saía pelo Atalho e ainda seguir só pela estrada de terra até a cidade, o mais provável é que eu tenha andado uns 77 ou 78 Km mesmo e não "só" 70 Km como as marcações manuais que fiz.

É isso, o registro é mais para constar mesmo. Neste blog eu sempre trabalhei com as informações o mais fidedignas possíveis. Aliás, quando faço consulta no meu WIKIpedia do William, conto com a informação cuidadosa postada no blog.


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