domingo, 26 de maio de 2024

1 de 100 dias



1. A mão estava formigando. Já não bastam as dores no quadril? Já não basta a falta de bunda pra ler e escrever por algumas horas ao dia?

Como sou um dos privilegiados no país que tem um plano de saúde, comecei a fazer uns exames. Vou fazer a minha parte já que ainda tenho pessoas que dependem de mim.

Fui num capitalista dermatologista para ver se algumas suspeitas minhas de manchas na pele não eram nada sério. Não eram. Uma pomadinha numa delas e tudo bem. No fim de 2021 me tiraram um carcinoma basocelular do topo da cabeça. Sou um cara de sorte. A coisa ruim foi descoberta por acaso.

Fui fazer uma consulta com um capitalista especialista em quadril. Faz mais de cinco anos que descobri desgastes na estrutura do quadril. Foi uma descoberta muito triste. Uma merda. O médico que fui agora me explicou alguma coisa sobre uma possível cirurgia, quando e se necessário. Vou fazer uns exames de imagem para ver o estrago atual. É recomendado fazer musculação na região. Eu sei disso desde criancinha... mas não faço o que deveria.

Tive uma sarcopenia acentuada nos últimos anos. Quando crianças somos parecidos nas etapas do desenvolvimento e crescimento, em condições normais, claro. No envelhecimento, somos únicos, cada um traz uma genética, uma vida percorrida, uma condição do viver registrada no corpo. Apesar de ter praticado algum tipo de esporte a vida inteira, eu resumiria o percurso do uso do meu corpo como algo absurdamente extravagante. Meu corpo sofreu violências e excessos muito acima da média da minha espécie. Agora é hora de colher os efeitos do abuso.

Não tenho mais objetivos semelhantes aos que tinha quando estava nas outras etapas da existência, pessoais ou coletivos, não desempenho mais os papéis sociais que desempenhei - fui um cara de sorte e tive a oportunidade da formação política durante minha vida laboral -, não sonho mais um monte de futilidades que sonhava quando era pouco politizado. Eu poderia ter um papel um pouco mais produtivo coletivamente, mas não tenho. Cansei de me sentir disponível para contribuir num mundo onde cagam para uma hipotética contribuição minha. Já me senti muito mal por isso. Foda-se.

Quando desci para a academia do condomínio para fazer uns exercícios para fortalecer meu quadril, o aparelho principal estava desmontado, em manutenção. Acabei saindo para correr no parque e fiz uma atividade forte para minha condição atual, diminuí dois minutos o tempo que faço naquela distância que corri (5,6K). Minha frequência cardíaca foi a 203 no auge. Um pouquinho a mais que o teto quando corro. Enquanto corria, pensei de novo em como mudar alguma coisa em meu cotidiano insatisfatório, ruim, que me coloca abaixo do chão. Vou experimentar alguma coisa diferente. Tenho que viver o dia como se fosse o último, até porque pode ser mesmo o último, meu e de todo mundo.

O que poderia fazer nos próximos 100 dias? Como poderia ajudar algumas pessoas que ainda fazem parte de minha relação do viver? Não se pode ajudar quem não queira ajuda. Como poderia ajudar a coletividade? Como superar o mal-estar que sinto em relação à política em meu mundo? "Meu mundo" seria algo como o movimento sindical e político ao qual não faço mais parte, algo como o próprio país onde nasci e vivo, e para o qual militei por mais de duas décadas como um político com mandato de representação. Estou tão fora de tudo e tão sem pertencimento a algo, que sequer posso votar no Daniel Kenzo num eventual PED do PT Butantã e na Luna Zarattini para um mandato de vereança em São Paulo. Sou de Osasco e eles da capital paulista.

Talvez deva diminuir meu contato virtual e presencial com esse mundo político ao qual não faço mais parte. De alguma forma, isso me lembra o tempo todo que não faço mais parte daquilo. Eu não esqueci o que sei, mas isso não faz diferença alguma. Preciso fazer algo por mim para seguir procurando algo de útil onde me encaixe

Minha cabeça política atual fica martelando revoluções que não vou fazer, com um corpo definhando fico cobrando uma revolução pau a pau com os inimigos armados e não é coerente de minha parte essa atitude. Se acho que o meio político de onde vim é cuzão, eu sou um cuzão. Óbvio isso! Minha formação política é toda a partir da conciliação de classes. Se tenho a leitura política que acabou o tempo de conciliação, não é coerente cobrar que o grupo que nunca foi revolucionário passe a ser de uma hora para outra. Estamos danados... de onde vim não vai sair enfrentamento algum à extrema-direita da forma como minha mente fica arrotando hoje. Não vai.

Enfim, tenho que procurar meu caminho. Tenho que fazer a minha parte e adiar o fim do meu mundo único, meu corpo, para estar disponível para algumas pessoas de minha relação. 

Bem provável que vá diminuir minha pouca presença nos espaços políticos aonde ia. Sei que é importante ser mais um até para fazer volume na parca luta da esquerda. Tenho toda a admiração do mundo pela militância que faz mais que os comuns. Mas estou me sentindo mal faz muito tempo com a situação na qual me peguei nos últimos anos. O esforço de escrever o que sei, estudo e penso até tem me mantido. Sem essa atividade, talvez já tivesse virado pó e micróbios.

Vou viver de 100 em 100 dias. Hoje saí e corri para sobreviver. O que será que consigo fazer no campo pessoal em 100 dias? Não sei. Minha vida foi tão diferente do que imaginei um dia, que não sei nem por onde começar. E sou um cara de sorte, como sou!

Vou pensar em algo para perseguir por 100 dias a partir de hoje.

Nunca fui "acabativo" na vida. Sempre fui "iniciativo". Comecei milhares de coisas, terminei poucas delas. Deveria ser mais acabativo. Não sei nada do amanhã, que dirá dos próximos 100 dias.

William


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