sábado, 24 de agosto de 2024

Fahrenheit 451 - Ray Bradbury



Refeição Cultural 

"- É um trabalho ótimo. Segunda-feira, Millay; quarta-feira, Whitman; sexta-feira, Faulkner. Reduza os livros às cinzas e, depois, queime as cinzas. Este é o nosso slogan oficial."


Custei achar o livro em casa, quando acordei. Refleti que fazia tempo que não lia um romance. Só tenho lido política e outras coisas do tipo. Por que não ler Fahrenheit 451? Faz mais de uma década que o li.

Vi com entusiasmo a notícia que um dos maiores nomes das redes sociais, Felipe Neto, um "influenciador digital" sugeriu a leitura do livro de Ray Bradbury. O fato fez a venda do livro disparar. Interessante!

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A RELEITURA

Um mundo de gente fútil, vazia, uma mesmice só...

"- As pessoas não conversam sobre nada.

- Ah, elas devem falar de alguma coisa!

- Não, de nada. O que mais falam é de marcas de carros ou roupas ou piscinas e dizem: 'Que legal!'. Mas todos dizem a mesma coisa e ninguém diz nada diferente de ninguém..."

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Mundo abstrato

"(...) Você já foi alguma vez a um museu? Tudo abstrato. É só o que há agora. Meu tio diz que antigamente era diferente. Muito tempo atrás, os quadros às vezes diziam alguma coisa ou até mostravam pessoas."

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Economia da atenção 

É antiga a preocupação dos pensadores com essas máquinas que capturam as pessoas e suas consciências: Ray Bradbury já aponta nos anos 50 a geração "cara na tela" dos smartphones atuais.

"Não havia uma velha anedota sobre a esposa que falava tanto ao telefone que o marido, desesperado, correu até a loja mais próxima e telefonou para ela para perguntar o que havia para o jantar? Ora, então, por que ele não comprava uma estação transmissora para radioconchas, para conversar tarde da noite com sua mulher, murmurar, sussurrar, gritar, bradar, berrar? Mas o que ele sussurraria, o que gritaria? O que poderia dizer?" (p. 66/67)

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Pra que livros, estudos?

"- A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas, e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?" (p. 85)

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Igualdade através da ignorância total (sem os livros)

Frases:

- "Sempre se teme o que não é familiar"

- "Um livro é uma arma carregada na casa vizinha"

- "Quem sabe quem poderia ser alvo do homem lido?"

Excertos da página 89 de minha edição. 

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Os bombeiros de Fahrenheit 451

"Eles receberam uma nova missão, a guarda de nossa paz de espírito, a eliminação do nosso compreensível e legítimo sentimento de inferioridade: censores, juízes e carrascos oficiais. Eis o nosso papel, Montag, o seu e o meu." (p. 89)

Os bolsonaristas...

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Queimem os livros (cancelem tod@s aquel@s que incomodam, que fazem pensar...)

"- Os negros não gostam de Little Black Sambo. Queime-o. Os brancos não se sentem bem em relação à Cabana do pai Tomás. Queime-o. Alguém escreveu um livro sobre o fumo e o câncer de pulmão? As pessoas que fumam lamentam? Queimemos o livro. Serenidade, Montag. Paz, Montag. Leve sua briga lá para fora. Melhor ainda, para o incinerador..." (p. 90/91)

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Entupa as pessoas com dados, e evite a filosofia e a sociologia:

"(...) Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com 'fatos' que elas se sintam empanturradas, mas absolutamente 'brilhantes' quanto a informações. Assim, elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Aí reside a melancolia..." (p. 92/93)

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Quem quer perder tempo educando crianças?

Na segunda parte do romance, uma cena me chamou a atenção sobre o que aquela sociedade pensa sobre crianças. 

Em uma reunião de mulheres, uma delas fala horrorizada sobre a possibilidade de ter filhos e a outra ameniza o problema da atenção que se teria que dar aos filhos dizendo que é só colocar as crianças diante de aparelhos de televisão e imagens que os pirralhos não atrapalharão a vida dos adultos...

Vocês notaram alguma semelhança do contexto ficcional de 70 anos atrás com a realidade do mundo em 2024?

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Alguém tem que preservar a história e a cultura de novo

"Um deles tinha de parar de queimar. Por certo o Sol não pararia. Dessa forma, era como se tivesse que ser Montag e as pessoas com quem ele havia trabalhado até algumas horas antes. Em algum lugar, o ato de salvar e guardar teria de começar novamente e alguém tinha de se encarregar de salvar e guardar, de um modo ou de outro, nos livros, nos discos, na cabeça das pessoas, do jeito que fosse, desde que fosse seguro, livre de mariposas, traças, ferrugem e mofo, e de homens com fósforos. O mundo estava cheio de fogo de todos os tipos e tamanhos..." (p. 200)

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Sempre recomeçar, uma característica dos seres humanos 

"(...) E quando a guerra terminar, algum dia, algum ano, os livros poderão ser escritos novamente, as pessoas serão convocadas, uma a uma, para recitarem o que sabem, e os imprimiremos novamente até a próxima Idade das Trevas, quando poderemos ter de começar tudo de novo. Mas é isso o maravilhoso no homem; ele nunca fica desanimado ou desgostoso a ponto de desistir de fazer tudo novamente, porque ele sabe muito bem que isso é importante e vale a pena." (p. 216/217)

Literatura também é isso!

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O FIM (O COMEÇO)

"- Todos devem deixar algo para trás quando morrem, dizia meu avô. Um filho, um livro, um quadro, uma casa ou parede construída, um par de sapatos. Ou um jardim. Algo que sua mão tenha tocado de algum modo, para que sua alma tenha para onde ir quando você morrer. E quando as pessoas olharem para aquela árvore ou aquela flor que você plantou, você estará ali. Não importa o que você faça, dizia ele, desde que você transforme alguma coisa, do jeito que era antes de você tocá-la, em algo que é como você depois que suas mãos passaram por ela. A diferença entre o homem que apenas apara gramados e um verdadeiro jardineiro está no toque, dizia ele. O aparador de grama podia muito bem não ter estado ali; o jardineiro estará lá durante uma vida inteira." (p. 220/221)

Então...

Termino aqui o comentário sobre essa releitura de Fahrenheit 451.

Termino com uma indagação incômoda martelando dentro de mim...

Será que fui um jardineiro? Ou fui um aparador de gramas?

William Mendes 

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