INDIGESTÃO CULTURAL - A MORTE DE JOSÉ SARAMAGO e outras mortes...
"Cala-te, disse suavemente a mulher do médico, calemo-nos todos, há ocasiões em que as palavras não servem de nada, quem me dera a mim poder também chorar, dizer tudo com lágrimas, não ter de falar para ser entendida" (Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago)
Não sei por onde começar essa indigestão cultural: a morte de José Saramago.
Quando soube da morte de um de meus heróis, eu estava em Belém do Pará. Ele morreu pela manhã e eu só fui saber à noite.
Fiquei com um nó na garganta quando no hotel vi pela tv que havia morrido mais um de meus ícones velhinhos. Digo mais um porque admirava muito o outro josé morto recentemente, o José Mindlin, bibliófilo que dedicou sua vida aos livros.
Tem uma frase de um autor americano - não me lembro o nome, comentando a morte de um colega seu - J. D. Salinger-, que me marcou bastante. Ele dizia que percebemos que estamos ficando velhos quando começamos a enterrar nossos entes queridos.
Eu percebo que começo a ficar velho. Já ando enterrando meus entes queridos faz uns cinco anos.
Sem contar meus entes queridos com laços familiares, quedei pensando há bem pouco tempo que seria muito triste ver morrer alguns heróis e referências humanas. Eu os cito aqui: José Saramago, José Mindlin, Eric Hobsbawn, Maria da Conceição Tavares, Antonio Candido.
Cara, morreram os dois josés em um prazo muito pequeno.
Eu saí há pouco para caminhar, pois tive uma explosão de raiva em casa enquanto comia e passei dos limites comigo mesmo. Fiquei muito decepcionado e saí para andar um pouco e refletir.
"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara" ("Livro dos Conselhos" citado por José Saramago no Ensaio sobre a cegueira)
Ando cansado e também deprimido. O pior é que em termos de papel social as coisas andam muito bem - estou a todo vapor em minha função de formador sindical. O problema é o bicho humano por trás do papel social. Percebo que não mudei muita coisa. É a natureza, essa não muda. Não mudei minha natureza... Mas que ninguém ouse falar merda nenhuma, porque estou desempenhando meu papel social da melhor forma possível. Eu sei disso.
"A cegueira não se pega só por olhar um cego alguém que o não é, a cegueira é uma questão privada entre a pessoa e os olhos com que nasceu" (Ensaio sobre a cegueira, José Saramago)
Fiquei pensando em um monte de coisas enquanto caminhava. Me vinham à cabeça lances, imagens de mim mesmo de ontem e de hoje, fiquei pensando em minha existência, na casualidade de tudo na porra da minha existência. O acaso me ajudou bastante em sempre canalizar o meu ódio para fazer o bem e não o mal. Minha energia sempre foi a raiva, o ódio, a ira.
"(...) mas, nenhum de nós, candeias, cães ou humanos, sabe, ao princípio, tudo para que tinha vindo" (Ensaio sobre a cegueira, José Saramago)
Passei os últimos oito anos me esforçando muito para ser um bom militante de esquerda e bom representante da classe trabalhadora. Eu tenho a convicção que desde o dia em que fui eleito e liberado para um mandato sindical em 5.ago.02 venho fazendo um trabalho honesto e com foco na ética e na boa prática sindical.
"É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade" (Ensaio sobre a cegueira, José Saramago)
Aprendi bastante e mudei como pessoa. Fui educado politicamente. O movimento sindical cutista complementou a educação que meu pai e minha mãe me deram. E olha que meus pais conseguiram frear minha natureza intolerante e de explosões. Me tiraram do caminho errado socialmente.
"(...) lembrou-se daquela quadra popular que diz, O que está para além da morte, nunca ninguém viu nem verá, de tantos que para lá foram, nunca nenhum voltou cá" (Todos os nomes, de José Saramago)
Como esta indigestão cultural é sobre as mortes e sobre a natureza das coisas, estive pensando também que até hoje não me conformo com a morte de minha tia Alice. Ela foi a pessoa mais simples que conheci e convivi. A simplicidade dela me encantava e me dava ânimo de lutar para mudar o mundo para que a vida fosse melhor para pessoas simples como ela.
O mesmo se dá com a morte de meu tio Valdeci, outra pessoa que era a simplicidade em essência. Eu detesto gente entojada, metida a besta e arrogante. Tenho nojo de gente assim. Só sigo lutando por saber que tem muita gente simples no mundo.
Quando penso no que fazer depois que deixar minha missão no movimento sindical, ao término de meu mandato, fico dividido em fazer alguma outra coisa social para os outros ou buscar ganhar o suficiente para fazer algo social para os meus agregados, que deixei na mão por não ter ido atrás de boa condição financeira.
"Em rigor, não tomamos decisões, são as decisões que nos tomam a nós" (Todos os nomes, de José Saramago)
O problema é se eu perder meus entes queridos no meio do caminho do desafio de buscar um outro concurso público e um motivo para ganhar uma remuneração melhor. Não gosto e não ligo para dinheiro, mas sei que ferrei minha família pelas opções que fiz em não tê-lo.
Estou me sentindo um pouco como o cartunista argentino Quino, criador de Mafalda. Ele disse em entrevista recente que o mundo dos humanos continua sem muita novidade em relação à melhorias sociais e comportamentais. Fica difícil fazer tirinhas de denúncias políticas e sociais porque as coisas estão sempre na mesma, de modo que após décadas denunciando as mesmas coisas sem melhorarem fica sem sentido fazer seu trabalho.
"É como a vida, minha filha, começa não se sabe para quê e termina não se sabe porquê" (Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago)
Chega de escrever. Chega de lamentações. Amanhã acordarei como sempre e vou fazer o meu papel social de lutar por um mundo melhor, esteja eu feliz ou não. Farei até o último dia o que tenho que fazer.
“(...) dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos” (Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago)
William, fica muito clara tua indignação com certas perdas que teves que encarar; mas se não for isso, o que será o ciclo da vida?
ResponderExcluirTem razão Thaís, sou/estou meio amargo. Melhora ou piora conforme o dia, o momento. Quando recordo minhas perdas, fico... Valeu pelo comentário. Sigamos!
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