quinta-feira, 29 de julho de 2021

Enfermaria nº 6 - Conto de Tchekhov



Refeição Cultural

"E, na ocorrência de uma relação formal, sem alma, para com a personalidade humana, um juiz, para destituir um homem inocente de todos os direitos civis e condená-lo aos trabalhos forçados, só precisa do seguinte: tempo. Apenas tempo para a execução de umas poucas formalidades, pelas quais um juiz recebe um ordenado, e a seguir tudo acaba. E vá alguém procurar depois justiça e uma defesa, nessa cidadezinha suja..." (p. 236)


A Enfermaria nº 6 é a equivalente russa da nossa Casa Verde, em Itaguaí, terra do Dr. Simão Bacamarte (O alienista, de Machado de Assis). Uma casa de loucos. 

Na epígrafe acima, estaria Tchekhov falando de um certo juiz e de um paisinho de merda (uma tal república de curitiba)? Certamente não, mas os grandes autores conseguem descrever situações universais, por isso são autores geniais.

O manicômio de Tchekhov tem 5 moradores (internados). Um deles "É o abobalhado judeu Moissieika", o Moisés. Outro cativo no local é Ivan Dmítritch Gromov - "homem de uns trinta e três anos, de condição nobre, ex-oficial de justiça e ex-amanuense provincial, sofre de mania de perseguição". (p. 232 e 233)

O 2º e 3º capítulos contam a história trágica da família Gromov. Depois de perdas irreparáveis dos familiares, Ivan desenvolve sua doença. Ele era uma pessoa estudiosa e de conhecimentos.

Um dos outros internados é uma pessoa do povo que sequer mereceu nome no conto: "era um mujique quase redondo, afundado em banhas, com um rosto embotado, completamente inexpressivo. Um animal imóvel, guloso e quase asseado, que já perdera, havia muito, a capacidade de pensar e de sentir" (p. 239). Ele é espancado frequentemente por um funcionário do manicômio, Nikita. 

Tchekhov sugere que os leitores imaginem a cena: "Uma vez em dois meses, aparece ali o barbeiro Siemión Láraritch. Não falaremos de como ele corta o cabelo dos dementes, de como Nikita o ajuda nessa operação, nem da perturbação que sempre causa aos doentes o aparecimento do barbeiro bêbado e sorridente." (p. 240)

O médico Dr. Andriéi Iefímitch Ráguin, responsável pela Enfermaria nº 6, queria ser pastor e acabou sendo médico. "De porte elevado e ombros largos, tem pés e mãos enormes; infunde a impressão de que, dando um soco, poria para fora os bofes da vítima." (p. 240)

ENFERMARIA Nº 6 - "(...) Havia queixas de que as baratas, percevejos e camundongos tornavam a vida insuportável. Na seção da cirurgia, não se dava cabo da erisipela (...) Na cidade, sabia-se muito bem dessas irregularidades, que eram até exageradas, mas os habitantes encaravam-nas com tranquilidade; uns justificavam-nas pelo fato de que no hospital eram internados apenas mujiques e pequeno-burgueses, que não podiam ficar descontentes, porque em casa viviam muito pior ainda: não se devia, naturalmente, alimentá-los com carne de perdiz!" (p. 241)

PUSILANIMIDADE PARA CONSERTAR AS COISAS E...

"Está absolutamente acima das suas forças dizer ao vigia que deixe de roubar, enxotá-lo ou suprimir de vez esse cargo inútil, parasitário." (p. 242)

O SOFRIMENTO É BOM PRA MANIPULAR OS MISERÁVEIS E IGNORANTES

"(...) para que aliviá-lo? Em primeiro lugar, dizem que os sofrimentos conduzem o homem à perfeição e, em segundo, se a humanidade aprender realmente a aliviar seus sofrimentos por meio de gotas e pílulas, há de abandonar completamente a religião e a filosofia, nas quais até agora encontrou não só uma defesa contra todas as desgraças, mas até felicidade." (p. 243)

A INVENÇÃO DE DEUS OU DA IMORTALIDADE

"- E a imortalidade?

- Ora, mudemos de assunto!

- O senhor não acredita, bem, mas eu acredito. Numa obra de Dostoiévski ou de Voltare alguém diz que, se Deus não existisse, seria inventado pelos homens. E eu creio profundamente que, se a imortalidade não existe, será inventada cedo ou tarde por uma grande inteligência humana." (p. 253)

SOLIDÃO

"Como é agradável ficar imóvel no divã e ter consciência de estar sozinho no quarto! A verdadeira felicidade é impossível sem a solidão. O anjo caído traiu a Deus provavelmente por ter desejado a solidão, que os anjos desconhecem." (p. 266)

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O médico Dr. Andriéi Iefímitch passa a puxar conversa com o interno Ivan Dmítritch, que no início rejeita qualquer papo, mas acabam debatendo temas filosóficos como, por exemplo, o estoicismo (p. 257 e 258), a imortalidade etc.

A admiração do médico pelo paciente começou a causar problemas para o doutor, pois as pessoas acharam estranho o médico considerar o doente mental uma pessoa muito inteligente.

O enredo passa por algumas reviravoltas. O Dr. Andriéi é forçado a se aposentar, depois viaja com um amigo, e o final da narrativa é surpreendente. De novo, poderia dizer que tem alguma semelhança com o desfecho do conto machadiano O Alienista. O clássico de Machado de Assis é de 1882 e este conto de Tchekhov é de 1892.

COMENTÁRIO FINAL

A leitura desse conto, dessa novela, foi uma leitura difícil. Diferente das outras do livro, nessa gastei quatro dias, simplesmente porque em determinados momentos, eu travava e tinha que parar. Pode ser que eu estivesse travado e não que a leitura fosse difícil.

A leitura de Tchekhov neste momento não foi necessariamente uma escolha das prioridades. Tenho outros cinco ou seis romances na frente pra ler. Mas como tive contato com o autor russo na última matéria que fiz na Letras da FFLCH, acabei decidindo ler o livro todo. Terminei as narrativas denominadas "contos" e agora vou ler de novo o drama As três irmãs, com uma centena de páginas, pois já faz 15 anos que o li.

A fase que vivemos na sociedade humana é uma fase mórbida. Tá certo que a vida é um instante, se morre de qualquer coisa a qualquer momento. Mas com essa pandemia de coronavírus, tá foda. Pode ser a nossa vez de morrer em poucos dias, assim do nada. A gente alterna nosso estado psicológico o tempo todo, ora estamos depressivos, ora com muita raiva e ódio, com sede de justiça e vingança em relação aos desgraçados que estão fodendo o mundo e as formas de vida.

Estive estranho nos últimos dias, muita fraqueza, moleza e dores nas pernas, um pouco de dor de cabeça, e muito sono. Talvez por isso a leitura da narrativa de Tchekhov tenha sido tão truncada. Cheguei a olhar para a estante e pensar que se fosse pra morrer por esses dias, que eu estivesse terminando outros livros que gostaria de ler antes de morrer. Que merda, isso! Nunca fui apegado à minha vida. Nunca! Mais velho e mais experiente hoje, e menos egoísta talvez, temos que lembrar que outras vidas dependem da nossa e, com isso, querer viver.

O texto "Enfermaria nº 6" tem um enredo que nos põe a pensar. Quem é demente e quem é normal? Quem deve ser internado e quem deve ficar solto? Alguém deve ser internado pelas suas ideias? Deve ficar livre alguém que estimula crimes? Se é normal falar e agir como o monstro que colocaram no poder no Brasil, se é normal existir o 1/3 dos animais humanos que apoiam e pensam como o genocida odioso no poder, então está tudo errado e não vejo mais sentido em lutar pela humanidade. Se uma parte da sociedade humana é como Hitler e Bolsonaro, preferiria que os humanos fossem extintos e o mundo seguisse habitado pelas outras espécies.

William


Post Scriptum: só mais uma questão: a solidão. Eu entendo o personagem Dr. Andriéi Iefímitch desejar tanto a solidão no contexto em que ele vive na narrativa. Por muitos anos em minha vida, eu tive que viver com outras pessoas, em barracos, em casas apertadas, num quarto com mais pessoas. Para conseguir paz e silêncio, eu ia para as praças de alimentação nos shoppings para ler. O burburinho da multidão era o meu silêncio. Por outro lado, a solidão é algo muito ruim quando não se quer estar só e não se tem alternativa. A experiência do jovem Chris McCandless no Alasca no início dos anos noventa é um exemplo a se observar. Ele descobriu que "Happiness only real when shared". Quando tive contato com o filme e o livro Na natureza selvagem (2007) fiquei olhando minha vida e na época senti que a mensagem pegou na veia. Acho que os momentos mais felizes de minha vida tinham sido ao lado das pessoas e não sozinho. É isso. 



Bibliografia:

TCHEKHOV, Anton. As três irmãs e contos. Coleção Imortais da Literatura Universal. Nova Cultural, 1995.


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