quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Leitura: Marx até 1843



Refeição Cultural

"Hegel (2010, p. 264) escreve que 'o povo, tomado sem o seu monarca e sem a articulação do todo que se conecta [...], é a massa informe que não é mais nenhum Estado'. Marx exclama: 'Como se o povo não fosse o Estado real!' e argumenta: 'O Estado é um abstractum. Somente o povo é o concretum'. E prossegue: 'A democracia é conteúdo e forma. A monarquia deve ser apenas forma, mas ela falsifica o conteúdo. Na monarquia, o todo, o povo, é subsumido a um de seus modos de existência, a constituição política; na democracia, a constituição mesma aparece somente como uma determinação e, de fato, como autodeterminação do povo. Na monarquia, temos o povo da constituição; na democracia, a constituição do povo'. (NETTO, 2020, p. 544-5, nota 95)


Estou lendo sobre Karl Marx. Conhecendo um pouco a respeito dessa figura humana histórica. Escolhi a obra de José Paulo Netto - Karl Marx: uma biografia (2020) para saber quem foi esse homem marcante para a história recente da humanidade.

Terminei a leitura do 1º capítulo "ADEUS À MISÉRIA ALEMÃ (1818-1843)". Estou lendo seguindo as sugestões do autor, ou seja, lendo os textos dos capítulos e todas as notas ao final do livro. São 200 páginas de notas, acrescentadas às mais de 500 páginas de textos nos capítulos. Sem pressa, como nos alerta Netto, porque o livro não é para gente apressada.

"Bem sei que a leitura de muitas notas ao fim de um livro (no caso deste, em torno de um milhar) não é algo cômodo para o leitor apressado - mas já adverti que este não é um Marx para apressados (...) e lhes peço a pachorra de ler as centenas de notas apostas ao fim desta biografia. Boa parte delas tem um objetivo central: deixar bem claro que as ideias marxianas são objeto de problematização e polêmica, que o seu legado intelectual estimula debates calorosos e que a sua exploração diferenciada demonstra que Marx não foi, como o qualificou certo biógrafo acadêmico, uma 'vida do século XIX': antes, é um autor que atravessou todo o século XX e entra no século XXI mais vivo que nunca." (NETTO, 2020, p. 34)

Na primeira parte do livro, que abrange o período de vida de Marx entre seu nascimento em 1818 até 1843, quando o filósofo sai da Alemanha e vai para Paris, já tomei contato com algumas questões importantes em sua vida presente e futura.

Aos 25 anos de idade, Marx já estuda e comenta a obra de Hegel, de Feuerbach e Bauer, já está casado com Jenny, e produz textos complexos a respeito de tudo que estuda. 

É impressionante como o jovem alemão estuda dezenas de livros e obras para adquirir conteúdo sobre determinado tema que quer criticar ou comentar. É demais essa honestidade intelectual de não sair falando ou escrevendo qualquer coisa de sua cabeça sem ter conhecimento e referência a respeito. 

Pensa, leitor, nos dias de hoje como as coisas se dão... com a mania de todo mundo achar que pode falar e escrever sobre qualquer coisa com seu achismo... todo mundo tem liberdade de opinião, é verdade, mas uma coisa é ser livre pra opinar, outra é se colocar como um falante que sabe sobre o tema sem saber por conhecimento através de estudos.

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CRISTIANISMO, JUDAÍSMO, RELIGIÃO E ESTADO

Um tema que achei interessante nesta parte do livro foi a respeito de religião e Estado, religião e política, religião e direitos das pessoas.

Uma coisa que lembrei na hora foi de nossa lei maior, a Constituição Federal de 1988 e o seu preâmbulo que cita "Deus" no corpo do texto da lei... e depois a gente fica ouvindo de tudo quanto é gente e instituição que o Brasil é um país "laico". Como laico se a CF enfiou determinada visão de mundo, a de um determinado deus no corpo do texto!? Como assim, laico?

Assim como fiquei puto ao ler As aventuras de Robinson Crusoé, de Defoe, um livro de ficção inglesa do início do século XVIII só porque o personagem inglês ficava o tempo todo me lembrando das desgraceiras que os europeus fizeram com os povos do mundo por causa de suas religiões "melhores que a dos outros", sejam elas católicas, protestantes ou outra vertente qualquer, fico danado da vida ao ver a mistura de política e Estado com religiões e fé das pessoas - que devem ser respeitadas, mas em seus espaços pessoais e privados. 

Talvez nunca vamos deixar de queimar e matar em nome das abstrações religiosas criadas pelos homo sapiens.

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"Kreuznach: de maio a outubro-novembro de 1843"

Nessa parte do 1º capítulo, Netto nos põe em contato com algumas temáticas que já aparecem na vida do jovem Marx.

Vemos reflexões interessantes de Marx a respeito de monarquia, república, democracia, cristianismo e judaísmo, história, quem é sujeito e quem é produto/predicado em relação ao rei e ao povo. O que gera o que, as ideias geram as coisas ou as coisas geram as ideias? Marx reflete sobre isso. O Estado gera as famílias ou as famílias geram os estados? Estamos falando aqui de conceitos de materialismo histórico.

"[...] O fato é que o Estado se produz a partir da multidão, tal como ela existe na forma dos membros da família e dos membros da sociedade civil. A especulação [Hegel] enuncia esse fato como um ato da Ideia." (um trecho de citação de Netto sobre texto de Marx, na página 68)

A nota 95 deste capítulo vale a pena (reproduzida acima como epigrama). Ela é muito boa a respeito da diferença entre monarquia e democracia, quem é sujeito e o que é produto.

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JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

Marx se contrapõe a Bauer em relação ao tema religioso, ao abordar a questão da emancipação (extensão de direitos cívico-políticos) e a igualdade civil.

"Fiel à concepção hegeliana, Bauer considera o cristianismo uma religião de caráter universal, a que se contrapõe expressamente o caráter particular do judaísmo, colado à lei mosaica; o universalismo cristão seria potencialmente muito mais apto que o judaísmo para acessar a emancipação. Resumindo: em função do seu particularismo religioso, o judeu está menos habilitado à emancipação que o cristão" (NETTO, 2020, p. 71)

Dessas leituras e reflexões foi que lembrei p. da vida do preâmbulo de nossa CF 1988. Já falei aqui no blog sobre isso. Humanos tratarem o cristianismo como religião maior, melhor, universal etc em relação ao judaísmo, paganismo, ateísmo, islamismo etc tende a acabar mal para algum lado minoritário. Achar o cristianismo melhor ou achar uma religião melhor que outra nunca vai acabar bem! É de uma arrogância absurda isso!

Com todo o respeito à fé e à religião de cada brasileira e brasileiro, é um absurdo colocar na lei maior do país essa questão de "Deus" assim como seria colocar "Alá", "Maomé", "Ogum", ou qualquer outra divindade ou referência mística ou mitológica. A lei maior de um Estado laico não pode em hipótese alguma citar ou privilegiar algum tipo de religião e suas divindades!

Estou lendo um romance a respeito de personagens do Afeganistão - O caçador de pipas (2003), de Khaled Hosseini, e o que vemos naquele país é exatamente essa questão da mistura de religião e Estado. Isso nunca acaba bem!

Quando misturadas com política de Estado, as questões de diferenças religiosas entre cristianismo, judaísmo, islamismo e outras religiões diversas tendem a terminar da mesma forma: intolerância à alteridade e consequências drásticas para os segmentos que não compartilham do tipo de crença predominante nos grupos dominantes.

Enfim, sigamos lendo e estudando.

William


Bibliografia:

NETTO, José Paulo. Karl Marx: uma biografia. 1ª ed. - São Paulo: Boitempo, 2020.

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