Refeição Cultural
Osasco, 12 de fevereiro de 2024. Segunda-feira de Carnaval.
CAMINHOS, MUDANÇAS, NOVAS VEREDAS
Nas últimas semanas, estive mergulhado em afazeres domésticos postergados por anos. Penso que devo ter algum tipo de trauma em relação a mudanças, mudanças de moradias quero dizer.
Tempos atrás, ao refletir sobre a questão do cansaço que uma mudança de local de residência pode trazer para a pessoa que passa por isso, fiz uma conta rápida da quantidade de vezes que precisei mudar em minha vida de adulto jovem. Foram muitas mudanças: morei em onze locais num período de doze anos, entre 1987 e 1999. Morei com os pais, com avó e primos, com estranhos, sozinho em locais horríveis, depois melhores, morei de favores na casa dos outros etc.
Sem contar a mudança traumática que avalio ter sido a que vivenciei aos dez anos de idade, no início de 1980, quando saí de meu mundo no Rio Pequeno, na Zona Oeste de São Paulo, para Uberlândia, no Marta Helena, em Minas Gerais. E lá, moramos em três locais num prazo curto de uns quatro ou cinco anos. Era quase como se fora um retirante, se não da seca, dos valores dos aluguéis. É da fase mineira que me lembro de ver o ladrão de meu tênis azul com ele nos pés sem eu poder fazer nada, ou das baratas que apareceram na minha vida...
As amigas e amigos leitores que não conhecem ou não se lembram dos transtornos de uma mudança, tentem imaginar o processo: a movimentação dos poucos ou muitos móveis que vocês tenham: geladeira, fogão, sofá, cama e guarda-roupa... caixas e sacolas com seus pertences, que vão ficar tudo misturado e você nunca mais vai achar a coisa que procurar... Uma vez, quando só tinha geladeira e fogão, deixamos cair a geladeira na escadinha do terreno e ela estragou toda... até hoje me lembro. Amig@s, detesto mudança! Que merda precisar mudar!
Quando eu peguei a chave do apartamento de cooperativa habitacional em Osasco, em julho de 1999, senti o que toda gente de minha classe social sentiria ao realizar o sonho da casa própria, o desejo de ter o cantinho para se viver a vida como deveria ser para todas as pessoas do mundo. Me lembro que as chaves do apartamento foram entregues aos proprietários num sábado e na segunda-feira eu e meu pai já estávamos colocando um piso no imóvel, nós mesmos, e eu me mudei na mesma semana. Só então, parei de mudar todo ano pra lá e pra cá. Foi uma etapa vencida na vida.
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AS VEREDAS, OS CAMINHOS, NOVAS MUDANÇAS
Durante um tempo do viver, passei a ser alguém com o endereço fixo, o de residência. A vida seguiu mudando, já que a única certeza é a mudança, já que somos natureza.
Nem só de mudanças de endereços foi o percurso de minha vida. As mudanças de caminho, as veredas que foram surgindo na caminhada, seguiram dando o tom para a minha existência.
Quando fixei endereço em Osasco, na residência recém adquirida, tratei de pedir para as chefias no banco me liberarem para trabalhar numa agência próxima de casa (trabalhava na Lapa e depois fui para a Barra Funda): o sonho de muita gente, ir à pé de casa para o trabalho. Consegui isso. Durou pouco essa moleza na minha vida.
A vida tratou de abrir veredas novas, e trilhei caminhos diversos.
Da frustração de precisar deixar a faculdade de Educação Física em Mogi das Cruzes por falta de dinheiro para a mensalidade em 1998, veio o sonho de ser aprovado na Fuvest em 2000 e iniciar o curso de Letras na USP em 2001. O sonho de consumo: morar perto do trabalho e ir para a universidade na mesma região.
Mais mudanças vieram. O convite para ser dirigente do Sindicato e passar a representar os colegas de trabalho me parecia um dever irrecusável. A decisão foi essa. Fim da curta "moleza" de morar, trabalhar e estudar na mesma região. Os deveres políticos passariam a ser a prioridade absoluta em minha vida por quase duas décadas.
Esses caminhos iriam me levar à Capital do país, Brasília, em 2014. Por lá fiquei quatro anos.
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MUDANÇAS MEIO QUE FORÇADAS TÊM SUAS CONSEQUÊNCIAS
Foi de forma inesperada que meu grupo político me solicitou autorização para apresentar meu nome para liderar uma chapa em eleição nacional em nossa Caixa de Assistência à saúde, autogestão dos trabalhadores do Banco do Brasil.
Para ser sincero, confesso que ao longo da vida de representação sindical, sempre tive a ética política de respeitar as decisões coletivas e não rejeitar as tarefas que me eram solicitadas. Era sabido que o que mais gostava de fazer era organização de base, função essencial e na base da hierarquia sindical.
Eram em conversas consensuais com duas ou três pessoas em algum café ou almoço que me perguntavam se eu aceitaria nova função a desempenhar no movimento porque o grupo achava que meu nome seria importante. Fui aceitando, sempre (foi assim de 1999 a 2018). Nunca pleiteei cargo algum, não era o meu perfil fazer isso. Nunca me convidei a nada. Sempre fui convidado.
Assim fui rodando em diversas bases regionais do Sindicato, depois para a Executiva, depois para a Comissão de Empresa, depois para as secretarias de imprensa e formação da Confederação e acabei sendo eleito diretor de saúde e precisei me mudar para Brasília.
Como não somos sozinhos no mundo, as minhas mudanças em função da militância política equivaleram a mudanças na vida da família. Pelas minhas veredas foram entrando esposa e filho, mesmo sem eles desejarem aqueles caminhos.
A professora acabou saindo um pouco antes da escola onde lecionava há décadas. O filho saiu de seu mundo num momento que talvez ele preferisse ficar lá. De novo, as mudanças necessárias impactavam a vida da gente.
Meu compromisso com os trabalhadores e entidades sindicais foi cumprido com toda a capacidade que tinha, isso eu posso garantir com a honestidade que aprendi na vida. A família me deu um suporte incrível, às custas da própria vontade, algo nobre e que me faz ser grato até o fim de meus dias.
Voltamos de Brasília em 2018.
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CAMINHOS, MUDANÇAS, NOVAS VEREDAS
Como disse na abertura dessas reflexões, passamos semanas mergulhados em afazeres postergados por anos. Muito provavelmente porque coisas ligadas a mudanças devem ter seus componentes de traumas vividos para cada um de nós em casa.
A professora porque saiu repentinamente de seu mundo, antes do previsto, saiu juntando produções e memórias de uma vida, encaixotando a história sem o tempo adequado para lidar com a ruptura e a partida.
A mãe porque durante as mudanças de trabalho e residência, precisou encaixotar pertences de nossa história sem a tranquilidade de separar lembranças da infância do seu bem mais precioso: o filho querido.
O filho porque mudou quando menos queria e depois mudou de novo, e de novo, e as boas lembranças da infância e da recente adolescência foram encaixotadas atabalhoadamente, e foram ficando aqui, ali e acolá.
O sindicalista estudante porque repentinamente precisou mudar deixando suas preciosidades na forma de papéis papéis papéis, apostilas, cadernos, revistas, livros e mídias, porque o danado tinha sonho de estudar e rever aquilo, sacos e caixas de hipotéticos saberes pra lá e pra cá.
Mudanças intensas, não programadas, não idealizadas. A saída de Osasco. A saída da Capital. A saída da empresa para a qual dedicou a vida. A saída do movimento de forma não ideal. A saída da professora mãe e do filho estudante de seus mundos. Mudanças, caminhos trilhados em veredas abertas pela vida.
Nesta semana cumprimos uma etapa de desfazimento de coisas postergadas por anos. Não acabamos ainda. Demos um passo. Agora é recuperar o cansaço e seguir a vida.
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NOVAS VEREDAS DEVEM SURGIR, A VIDA É ASSIM
Ao caminhar nesta manhã, me sentar no banco da praça onde gosto de ficar perto de casa, fiquei refletindo sobre a vida, os caminhos, as mudanças, as veredas abertas e as possíveis veredas a escolher ainda (elas sempre se abriram antes que eu as escolhesse), e percebi que não há escolhas fáceis, evidente, pois a vida é complexa.
A cada dia, a cada reflexão, após cada leitura, mais me parece que compreendo como as coisas funcionam. E nem por isso estou livre de cometer os mesmos erros ou erros novos. Somos humanos, somos natureza, somos falíveis.
Paulo Freire diz na Pedagogia da autonomia que somos seres incompletos, por isso temos que estudar sempre e buscar novos conhecimentos, devemos seguir aguçando nossa leitura de mundo, e nunca devemos ter postura determinista, acreditar nas ideologias que falam em futuros determinados. Eu posso mudar a realidade. Nós podemos.
Vou refletir muito sobre algumas coisas nos próximos tempos. Sobre a vaidade, e o sofrimento que esse sentimento nos traz, e sobre o amor-próprio também. Se estou percebendo que querem apagar o passado, e avalio que de fato o passado não é de meu domínio, por que sofrer com isso? O mundo humano está assim.
Deveria conseguir viver o presente de forma mais leve, porque o tempo restante está a cada instante mais breve. Difícil conseguir isso. Mas refletir a respeito é importante.
Sigamos a vida, já que a vida é uma oportunidade a cada manhã que acordamos.
William
Post Scriptum: o capítulo anterior desta série de textos pode ser lido aqui.
Se o amigo me permite, já chamar de amigo, leio tudo que escreve, tudo muito denso e tudo me faz pensar. Quero tomar por empréstimo o paradoxo vaidade/amor-próprio e escrever sobre isto quando conseguir.
ResponderExcluirAbraços nos seus Ione e Mário.
Viva Cuba!
Olá, querida amiga Marili! Eu é que me sinto honrado com sua amizade! Que legal você escrever sobre isso! Cheguei hoje a Cuba. Esse mundo diferente do padrão global capitalista me põe a pensar a cada segundo, a cada cena na rua, a cada diálogo aqui... e é um mundo em desfazimento... fico triste, mas quem sabe o imponderável permita não acabar aqui o sonho de uma sociedade alternativa à capitalista. Abraços! (os acessos a internet nesta quinzena serão escassos, mas quando der, acesso o mundo rsrs capitalista)
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