Refeição Cultural
Osasco, 16 de dezembro de 2023. Sábado de calorzão.
CONHECI DE PERTO O ÓDIO E A FÉ
"Mas, na ocasião, me lembrei dum conselho que Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é. Zé Bebelo falava sempre com a máquina de acerto - inteligência só. Entendi. Cumpri. Digo: reniti, fazendo finca-pé, em força para não esparramar raivas..." (Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa)
Amig@s leitores, sempre que tiverem oportunidade tratem com respeito e carinho os trabalhadores e trabalhadoras que prestam qualquer tipo de serviço a vocês, existem trabalhos duríssimos que alguém faz para nós. Por trás de um trabalho duro realizado para nós, existe um ser humano.
OS ÓDIOS DO MUNDO
Me lembro de pegar o balde, panos, sabão, e mais alguns itens de limpeza e sair a pé de manhã do bairro Marta Helena para atravessar a BR e ir para o bairro Umuarama, onde moravam os ricaços naquelas casas enormes com gramado na frente e carrões nas garagens.
Eu batia palmas ou apertava o botão da campainha e esperava para ver se alguém atendia.
Era o início dos anos oitenta, nós estávamos em Uberlândia havia pouco tempo, vindos de São Paulo.
Às vezes, dava sorte e a pessoa que atendia era educada e me respondia com respeito quando eu me oferecia para lavar o carro. Não era o jeito mais comum. Mas de vez em quando aparecia alguém e perguntava se eu dava conta de lavar e se lavava direito, e quanto eu cobrava para lavar o carro.
A parte que a gente guarda no fundo do coração ou da alma ou da memória são as agressões e humilhações gratuitas... essas são foda! Como esquecer aquilo? Alguns fdp humilhavam a gente só por tocar a campainha e perguntar se não gostariam que lavasse o carro.
Eu me virava para fazer um serviço bem feito. Eu mal alcançava o teto dos carros. Inventava jeitos de limpar em cima da funilaria.
Esse foi um dos primeiros trabalhos que me lembro de fazer na infância.
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Me lembro que eu rezava e pedia a Deus e ao filho de Deus e a toda a hierarquia dos céus da religião católica para que o telefone da drogaria não tocasse e, se tocasse, eu rezava para que a entrega não fosse longe ou em alguns lugares foda de entregar o remédio.
Trabalhar naquela drogaria da Rodoviária de Uberlândia foi uma experiência diferente de alguns serviços braçais que já havia feito e foi uma experiência dura também na minha infância. Ainda me lembro da sensação de cansaço e extenuação física após longas entregas.
Minha bicicleta era uma daquelas dos anos oitenta, pesada pra burro se compararmos com as bikes modernas de hoje.
De memória, me lembro dos nomes de bairros que disparavam as batidas do coração por saber que a entrega seria um sofrimento só: Luizote de Freitas, Custódio Pereira, Segismundo Pereira, Santa Luzia, Cruzeiro do Sul... longe e muita subida para ir até lá.
Confesso que chorava quando o trabalho que fazia era um martírio. Chorava mesmo! Me lembro que chorava de raiva. Era pequeno, mas tinha um sentimento de que aquilo não era justo. Aqueles anos foram me dando um ódio do mundo, de gente endinheirada, um ódio esquisito.
Se fuçar no fundo da memória, consigo me ver ou me imaginar chorando e pedalando aquela bicicleta na chuva indo fazer uma entrega do outro lado da cidade... cresci odiando o "trabalho".
Imaginem vocês como eram os anos oitenta. Os atendentes da drogaria me ensinaram a dar injeção. Eu tinha de quatorze para quinze anos. Aprendi a dar injeção no músculo, intramuscular, e nas veias, intravenosa.
A frase para ensinar a aplicar injeção na bunda era a seguinte: divide a banda da bunda em quatro partes e aplica no quadrante superior externo. Não tem erro... Puxa um pouquinho o êmbolo antes para ver se não pegou veia e pode aplicar o líquido.
Não era comum aplicar injeção muscular no braço, doía mais, diziam. Também, é só pensar que a gente aplicava aquelas injeções fortíssimas de penicilina e benzetacil. Numa ampola era o pó, na outra o líquido. A gente misturava e aplicava na vítima. Amig@s leitores, eu não era uma "criança" porque a gente tinha que ser adulto cedo...
Apliquei muita injeção depois de andar quilômetros de bicicleta pelas ruas de Uberlândia. O moleque chegava suado, bufando, lavava a mão na casa da vítima e aplicava o remédio em crianças, adultos, idosos, bunda ou braço. E eu era bom para achar veia quando a injeção era intravenosa.
Por ser bom no que fazia, os clientes da drogaria pediam para eu ir... e a raiva que me dava quando era longe pra caralho?
Esse foi um dos trabalhos que me fizeram dormir como uma pedra ao me deitar na cama.
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Me lembro que dos trabalhos pesados e imundos que fiz na minha vida, um dos que me mudaram para sempre foi o de ajudante de encanador. É difícil definir porque embruteci tanto com aquele trabalho. Já fiz um texto sobre a dureza que foi meu primeiro dia de trabalho como ajudante de encanador (ler aqui)
Dias atrás, conversando em casa, o que me veio à memória foi o ódio que senti de uma mulher entojada dona do imóvel onde eu estava trabalhando quando ela soube que algum peão havia usado um vaso sanitário já instalado - a casa ainda estava em obras - e aquela desgraçada mandou o seu Joaquim, meu chefe, retirar o vaso e trocar por outro só porque ele foi usado por um trabalhador da obra...
Me lembro que na confusão ela ainda decidiu mudar o vaso de lugar e eu tive que quebrar concreto para realocar a porra do vaso daquela sujeita. Na época, os instrumentos de trabalho eram ponteiro, talhadeira e marreta. Não tinha cortador de concreto como hoje.
Esse trabalho é inesquecível para mim, juro para vocês! E o seu Joaquim era um velhinho muito gente boa. Nunca tive problema com ele. Fico tentando me lembrar se o que me marcou foi o quanto era difícil quebrar concreto ou se era mexer em esgotos das casas das pessoas. Minha mão frágil se tornou uma mão incrivelmente grossa e forte.
Me lembro uma vez, décadas depois, de uma bancária da oposição sindical à minha corrente política me tirando (sacaneando) num bar ao dizer que minha mão parecia mão de moça... tive que lembrar a ela que eu era bancário, não era ajudante de encanador... as pessoas não sabem nada da vida dos outros!
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A última lembrança de um trabalho que me marcou e que me levou a ter um conceito muito ruim sobre o "trabalho" foi quando eu trabalhei numa empresa de alimentos, uma fábrica e distribuidora de palmitos, ainda nos anos oitenta, eu com uns 17 anos de idade, já vivendo em São Paulo.
Foi um período duro a começar pela dificuldade de chegar até o depósito onde trabalhava. Os ônibus em meu bairro só passavam lotados no ponto onde eu ficava e fui um dos milhares de passageiros que por muito tempo andou pendurado em portas de ônibus por não conseguir entrar no veículo por estar lotado. A eleição de Luiza Erundina (PT) a prefeita de São Paulo melhorou minha vida de passageiro. Nunca me esqueço disso!
A lembrança ruim não é o quanto é cansativo o trabalho pesado de descarregar caminhão com toneladas de caixas de palmito ou mesmo o trabalho de ficar o dia inteiro pela cidade, andando por corredores escorregadios e subterrâneos de restaurantes chiques entregando o produto. Essa parte é rotina de qualquer ajudante geral de qualquer coisa.
O que me marcou profundamente foram os dias nos quais me colocavam num canto isolado do depósito para abrir e esvaziar latas estufadas de palmito, palmito estragado, podre. A justificativa para aquele trabalho impossível e inacreditável era que a firma não poderia jogar as latas fora daquele jeito porque se alguém abrisse, consumisse aquilo e morresse, a empresa seria penalizada. Ou seja, eu poderia me expor ao botulismo e outras contaminações do tipo, outras pessoas não.
É provável que eu tenha um olfato ruim por causa dos trabalhos com esgoto e por esse de abrir lata de palmito podre. Como o ser humano tem um sistema nervoso altamente adaptável, provavelmente meu cérebro bloqueou parte do meu olfato para sobreviver àquelas condições insalubres nas quais trabalhei na adolescência.
Sentado no chão, eu tinha que fazer um furo na lata primeiro e aí saía um ar podre zunindo com um cheiro insuportável. Após essa etapa, eu abria a lata e jogava o conteúdo fora. Ao final do dia, dos dias de palmito podre, parecia que o cheiro nunca mais sairia de mim. Tomava banho e tinha a impressão que eu estava cheirando a palmito podre... que trampo foda foi aquele!
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A FÉ QUE EU TINHA FOI A LIGA PARA PERMANECER VIVO
Essas lembranças são sobre o ódio que senti por muito tempo em minha vida, um ódio geral, não era de uma pessoa ou algo específico, era uma raiva profunda por achar o mundo um lugar injusto, ruim.
A citação que abre esse texto, do personagem Riobaldo Tatarana, de Grande Sertão: Veredas, fala sobre o ódio que aprisiona a gente, que faz a gente virar escravo daquele(s) ao(s) qual(is) odiamos. É uma reflexão profunda do jagunço aposentado. Tenho claro que não devemos odiar ninguém, nem as piores pessoas do mundo, como vimos no poder no Brasil durante o último golpe de Estado. Odiar é ruim para quem odeia.
Mas essas lembranças também são sobre as diversas concepções de religião que experimentei até uns 30 anos de idade. Fui aculturado e feito gente no ambiente católico de minha família. Aliás, católica é a base religiosa da ampla maioria do povo brasileiro ao longo do tempo - colônia, império e repúblicas. Hoje, a igreja católica vem perdendo espaço no Brasil para as vertentes neopentecostais, muitas delas mais parecidas com empresas de manipulação da fé alheia que espaços de amor ao próximo e solidariedade.
Além da formação católica, também vivenciei as experiências religiosas dos espíritas e das religiões de matriz africana. É inegável que a religiosidade brasileira por muito tempo foi uma mescla de diversas crenças e misticismos. Costuma-se chamar essa mescla de espiritualidades de sincretismo religioso.
A gente cresce acreditando em Deus, é batizado, faz primeira comunhão (eu não concluí a minha), vai às missas e se casa na igreja e também vai ao centro espírita tomar um passe ou ao terreiro de umbanda ouvir conselhos dos guias espirituais e pedir favores. Ora acreditamos que vamos para o céu, ora acreditamos que temos diversas vidas e voltamos para cumprir missões na terra etc.
Eu fui muito religioso, intenso na fé como tudo que já fiz na vida. Me persignava o dia inteiro. Frequentava as missas, estudava os textos da bíblia e de outras matrizes religiosas. A religião teve um peso importante na formação do meu caráter e da minha ética.
EU SEI O QUE SENTE UMA PESSOA RELIGIOSA
Em minha busca atual por compreensão da vida, do mundo e do comportamento das pessoas, tento o tempo todo me colocar no lugar das outras pessoas para facilitar meu esforço na interação com os seres humanos, para insistir em ser um ser social ou sociável, de relações sociais com os outros, com a alteridade, com o diferente, dentro da compreensão de que não somos nada sozinhos, sem a relação com os outros.
E revendo minha vida nas primeiras décadas, tenho a consciência de que a concepção religiosa de mundo teve o seu papel no meu percurso pela existência. Teve sim. Para o bem e para o mal.
Quando eu não suportava mais a vida ruim, injusta, quando estava com raiva, com medo, a fé numa outra vida, já que a vida material era uma bosta, me dava uma base de apoio para o momento seguinte, para o sobreviver mais um dia. Acreditar que em outra vida as coisas poderiam ser melhores é a maior das criações e explicações de mundo que o animal homo sapiens desenvolveu ao longo de sua história na Terra. Não tenho dúvida sobre isso.
O que me lembro sobre ódio e religião no meu percurso de vida me faz refletir muito sobre as pessoas ao meu redor neste momento de minha vida e do mundo.
Aconteceu comigo o inverso do que aconteceu com Saulo de Tarso, o Paulo evangelizador do cristianismo. Ele passou de perseguidor dos cristãos a um dos maiores divulgadores da palavra de Cristo no mundo antigo. Li livros sobre Paulo.
Eu vivi um período insuportável de fúria com vinte e tantos anos e rompi com qualquer tipo de crença mística. Óbvio que à medida que vivia e que estudava, também questionava as contradições dos dogmas religiosos em geral. O fato é que perto dos trinta anos, minha leitura de mundo não comportava mais a crença religiosa como explicação da vida e do mundo.
Ficou o respeito ao momento de cada um e cada uma, à visão de mundo de cada pessoa. O que sei é que às vezes sou mais dogmático e seguidor dos princípios cristãos que muita gente que se diz religiosa e praticante. Os Mandamentos estão cristalizados no fundo do meu ser...
Compreender a visão de mundo das pessoas, visões diferentes da minha, é algo básico para uma pessoa como eu, que já mudou tanto, já experimentou tanto, e que ainda procura por pertencimentos, por motivações, que precisa encontrar causas a se engajar.
Cansei por hoje, essas memórias são importantes para o processo de busca de sentidos e compreensões, mas elas nos cansam também.
Abraços às leitoras e leitores.
William
Post Scriptum: a leitura do capítulo anterior desta série de textos de lembranças pode ser feita aqui.
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