Este blog é para reflexões literárias, filosóficas e do mundo do saber. É também para postar minhas aulas da USP. Quero partilhar tudo que aprendi com os mestres de meu curso de letras.
domingo, 27 de abril de 2008
Ainda o "Instinto de nacionalidade" - Machado de Assis
Aula do prof. Hansen em 20.9.07 (USP)
Esse texto machadiano é escrito em 1873.
Machado escreve para os estrangeiros (norte-americanos) e para falar de literatura contemporânea (1836-1873).
Ele nunca escreve de forma vulgar. Ele alude, sugere, mas nunca escreve vulgaridades. (ele até parodia o naturalismo; ele critica muito a vulgaridade de Eça de Queiroz e outros)
Analisemos os termos:
"instinto": termo tirado da biologia. É um termo técnico. A natureza fornece aos animais - no sentido de uma força irracional, incontrolável e natural.
"nacionalidade": não é natural. É política. Os homens estão programados para se agregarem enquanto nação?
De onde viria essa ideia de que uma nação tem um "Ethos", um caráter?
É histórico, muito em voga nos séculos XVIII-XIX, principalmente com os primeiros românticos alemães: o professor citou Friedrich Schlegel "Athenaum". (Explanação da ideia de nacionalidade a seguir):
Poesia: universal progressivo - teoria que ela é progresso. A poesia não admitiria cânone, pois teria que sempre inventar o novo.
Schlegel em 1812-1814 cria uma disciplina chamada "História das literaturas".
Homero - gregos (Ilíada/Odisseia) mitos e regras sociais
Virgílio - romanos - criação de Roma
Dante - língua italiana
Camões - Europa cristã
Descobre os poemas medievais. Descobre a ideia da germanidade - "tradição guerreira do povo alemão". Vai buscar manifestações do Ethos alemão nos momentos em que obras significativas mostraram esse espírito nacional alemão. Esse seria o papel da história da literatura para pregar a ideia do caráter do Estado Nacional.
A literatura alemã seria o item de coesão do povo na guerra, nos costumes, na cultura etc. A literatura é civilização pela própria sistematização da cultura, da língua e da nacionalidade.
(Hansen diz que vários filósofos associam o nazismo, o antissemitismo e seus ideais aos princípios românticos)
É um projeto autoritário. A literatura será um cimento ideológico obrigatório para adultos e crianças. (cita Mme de Staël "De l'Alemagne"). Ela foi lida no Brasil.
Em Paris, "Nicteroy" é publicado em 1836. Magalhães escreve nessa revista: "Discurso sobre a literatura brasileira" - fala em um organismo que tem um Ethos e que está em evolução contínua.
Alegoria de uma montanha: os autores contemporâneos a ele têm uma "missão" e têm que apresentar ao povo a natureza de seu país. A literatura "educa", tem papel de formação. No começo, seria importante a cor local. Representação "Indígena Civilizado".
Quem vai realizar esse projeto é José de Alencar com o idealismo romântico alemão. Fará através da literatura toda uma construção social com o objetivo de formar nossas elites, na nossa cultura local, associada aos ritos da Corte:
XV - Ubirajara, duas tribos...; XVI - Iracema, índio + branco...; XVII - O Guarani, a formação do brasileiro... etc.
Machado diz que esse "Instinto" é que todos querem falar da nação, do Brasil que se constituía.
(O professor diz que ser ingênuo hoje (2007) é ser "cínico". Diz que não dá pra ser romântico idealizador depois de Auschwitz)
No texto de Machado, professor diz que há uma organicidade na nossa literatura. Ideia de progressão evolutiva autêntica brasileira.
"Telos": racionalidade no fim. Após 1822, voltamos ao XVI e professor defende que já éramos brasileiros.
A literatura = projeto canônico. Destaca onde, nos 4 séculos, apareceu o nosso Ethos.
Anchieta/Nobrega > Gregório > Durão > Alencar > Machado > M. Andrade > A. Candido... = A Literatura Brasileira > documentar a realidade brasileira
Antonio Candido segue linha de Mário de Andrade, diz o prof. Hansen, quando fez Formação da Literatura Brasileira.
Atualmente, a globalização acaba com a ideia de nação. Hoje, seria difícil pensar esse projeto romântico de construção nacionalista.
Uma possível conclusão:
LITERATURA = IDEOLOGIA DE CLASSE (sempre foi usada assim).
Só lendo Machado de Assis...
Quando leio os bons jornalistas de nosso país como Renato Rovai, Paulo Henrique Amorim, Mino Carta e mais alguns, fico ao mesmo tempo informado de fato e... como diria... abestalhado e perplexo pela compreensão do lugar em que vivo.
É tanta podridão e nojo por trás do verniz e capa grã-fina das coisas que nos cercam, e para piorar, é tanta subserviência até daqueles que esperávamos mais "culhão" para fazerem o enfrentamento com o status quo, que só lendo nosso mestre maior Machado de Assis para suportar o modo como a nossa sociedade está organizada.
A diferença entre o mestre da literatura e grandes jornalistas está na linguagem literária do Mestre do Cosme Velho e na metalinguagem dos nossos bons jornalistas progressistas. Ambos têm a capacidade de descrever, narrar, criticar ou abrir feridas, mas Machado traz uma sutileza ímpar nas ironias rabugentas. Frases curtas e certeiras. Agudas. Inteligentes.
Bom, sigo em meu objetivo de ler, reler e conhecer toda a obra machadiana. Já li quase todos os seus romances - os da chamada primeira fase, até 1880, e agora estou lendo Esaú e Jacó, o penúltimo antes de Memorial de Aires.
Confesso que quanto mais descubro alguma coisa a respeito da forma de fazer-literário do mestre Machado, mais quero reler o que já conheço para captar tudo o que perdi antes. É, no mínimo, instigante.
SUTILEZAS MACHADIANAS:
"... Eis aí vinha a realidade do sonho de dez anos (Natividade estava grávida dos gêmeos), uma criatura tirada da coxa de Abraão, como diziam aqueles bons judeus, que a gente queimou mais tarde, e agora empresta generosamente o seu dinheiro às companhias e às nações. Levam juro por ele; mas os hebraísmos são dados de graça..."
In: Esaú e Jacó, capítulo VI, Maternidade
"... Santos falava em fazer um deles (filhos) banqueiro, ou ambos. Assim passavam as horas vadias."
In: Esaú e Jacó, capítulo VIII, Nem casal, nem general
Post Scriptum (5/08/15):
A última citação, sobre os banqueiros, tem sentido dúbio, para quem não conhece o contexto. Tanto pode parecer que o sentido semântico é que o personagem Santos quer que os filhos sejam banqueiros para terem suas horas vadias, quanto que o casal, em sua morada, em horas vadias, pensava o futuro profissional dos filhos que viriam adiante.
sexta-feira, 25 de abril de 2008
Instinto de nacionalidade - Machado de Assis
Leitura de textos
Machado avalia de forma positiva o esforço feito pelos autores nacionais para dar um colorido próprio à literatura nacional.
Elogia precursores como Basílio da Gama e Santa Rita Durão e critica Gonzaga que não soube desligar-se das faixas da arcádia nem dos preceitos do tempo.
Acha injusto, todavia, criticar os poetas coloniais, pois crê não ter sido possível para eles lutarem por independência literária se nem a política tínhamos.
Quando elogia Basílio da Gama e Durão, é por darem uma cor local às obras e não independência.
Assim como pensa que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indígena e que nem dele recebeu influxo algum, também não acha correto excluí-los da poesia contemporânea (da época) como pensava Varnhagen.
Era 1873, e Machado afirma ainda não existir Literatura Brasileira.
Achava um exagero buscar os títulos da nossa personalidade literária entre as tribos vencidas. Ex: “Timbiras”, “Juca-Pirama” e “Tabira” (Gonçalves Dias).
Uma opinião importante de Machado e que marcaria toda a sua obra é de que a literatura para ser nacional não tem, necessariamente, que falar de assunto local, pois isso limita a literatura:
“... não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam”.
O autor comenta com pesar que sente muito não ter bons críticos no país.
Romance
O romance e a poesia lírica são as formas mais encontradas, cultivadas e vendidas no Brasil. Diz não termos aqui livros de filosofia, linguística (isso em 1873), de crítica histórica, de alta política etc.
Os costumes do interior são o que melhor dão o colorido da nação. (na capital do país havia grande influência europeia)
O espetáculo da natureza dá páginas animadas e pitorescas, mas pensa que os escritores exageram na descrição e pecam em outras qualidades essenciais.
Também pensa faltar ainda competência aos escritores para tratar de análise de paixões e caracteres.
Com relação às tendências morais do romance brasileiro, acha que são boas. (critica a escola francesa)
Com respeito às tendências políticas e sociais, os escritores brasileiros passam longe do ideal: “... seus principais elementos são, como disse, a pintura dos costumes, luta das paixões, os quadros da natureza, alguma vez o estudo dos sentimentos e dos caracteres; com esses elementos, que são fecundíssimos, possuímos já uma galeria numerosa e a muitos respeitos notável.”.
Nos contos, elogia o Sr. Luís Guimarães Junior – folhetinista elegante e jovial.
A poesia
Elogia Castro Alves, considerando-o eterno e um incentivo às vocações nascentes.
À poesia já não faltavam fogo nem estro. Também não faltava sentimento de harmonia exterior.
Mas pecava na correção e no gosto. Faltava ser intrépida na expressão, pecava pela impropriedade das imagens, na obscuridade do pensamento.
Para construir painéis de cenas majestosas da natureza americana, há de serem expressos com simplicidade.
Cita Bernardo Guimarães, Varela e Álvares de Azevedo:
“Um poeta não é nacional só porque insere nos seus versos muitos nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de vocabulário e nada mais”. É preciso toques naturais.
O teatro
Não há!
A língua
Machado não gosta do uso dos solecismos da língua comum, mas acha pior a “exageração de princípio” no uso da influência da língua francesa.
Aceita mudanças no tempo a que a língua está sujeita mas acha que “a influência popular tem um limite”.
“Cada tempo tem o seu estilo”.
“Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum”.
Veja AQUI a sequência do texto na postagem: Ainda o instinto de nacionalidade.
sexta-feira, 18 de abril de 2008
Crônica - Primeiro dia como ajudante de encanador
Introdução
Lendo “Angústia” de Graciliano Ramos (1936)...
Estou no capítulo 33 (ou fragmento, pois a numeração é minha). O personagem, Luís da Silva, está em transe refletindo sobre o passado. De suas reflexões, tiro algumas frases acerca de Julião Tavares -personagem safado que lhe tira a noiva, a vida etc.
“...costume que os cangaceiros têm de marcar os inimigos com ferro quente”.
Pensando em matar Julião: “que é que me podia acontecer? Ir para a cadeia, ser processado e condenado, perder o emprego, cumprir sentença. A vida na prisão não seria pior que a que eu tinha”.
Mais à frente: “lavo as mãos uma infinidade de vezes por dia... preciso muita água e muito sabão. Viver por detrás daquelas grades, pisar no chão úmido, coberto de escarros, sangue, pus e lama, é terrível. Mas a vida que levo talvez seja pior”.
“um crime, uma ação boa, dá tudo no mesmo. Afinal já nem sabemos o que é bom e o que é ruim, tão embotados vivemos”.
TÃO EMBOTADOS VIVEMOS
“Tão embotados vivemos” é uma boa frase. Foi escrita por Graciliano Ramos há quase setenta anos. E acho que já vivíamos embotados há muito tempo. Pegávamos homens negros quinhentos anos atrás e tínhamos a eles como animais, macacos. Mas... lendo livros duros, secos, como esses de Graciliano, pego-me lembrando instantes, tempos remotos de minha vida.
Primeiro dia como ajudante de encanador
Naquele dia em que estava quebrando aquele esgoto, com ponteiro, talhadeira e marreta, sentia um milhão de sentimentos. Sentimentos duros, secos. Um dos mais fáceis de definir era o de ódio, raiva. Raiva de tudo, da vida. Era ajudante do seu Joaquim, encanador. Ele até que era um velho simpático, teve paciência comigo. Aquele moleque de uns quinze anos, de mãozinha fina, não tinha cara de quem aguentava cortar concreto. Me lembro do primeiro dia...
Levantei-me cedo, peguei a bicicleta e fui para o trabalho. Era uma casa em construção. Era muito grande. Chegando lá, fiz de conta que era durão. Seu Joaquim me deu as ferramentas e entramos na obra. A peãozada me olhava com olhos que me intimidavam. Acho que viam e achavam que eu não tinha jeito pra aquilo. Seu Joaquim me mostrou o banheiro e me disse que deveria quebrar ali do canto, onde ficaria o vaso, até o outro lado. Dava mais ou menos um metro e meio de corte no concreto. Me olhou meio duvidoso e disse que precisava sair para ir em outra obra. Lá estava eu, só, naquele banheiro em construção, com talhadeira, ponteiro e marreta para trabalhar. Nunca pensei (pensaria) que quebrar concreto fosse tão difícil. O concreto era muito forte, pois era o segundo piso e este tinha que ser reforçado.
Nas primeiras marretadas que dei, tudo que saía do chão era faísca. Após alguns minutos, comecei a sentir um calor percorrer meu corpo. Era o calor da vergonha, da humilhação. Se alguém entrasse e visse aquele chão intacto e aquele pivete suando, eu não teria onde enfiar a cabeça. Comecei a bater com força, com sede de orgulho. Não queria e não podia desistir. Comecei a errar o ponteiro e a marretar minha mão, meus dedos. Aquilo doía pra burro. Comecei a tirar algumas lascas do chão. Até me animei. -Ah! Mas esse nosso corpo adaptado à vida cotidiana! Essas mãos de pele fina que não conhecem o peso de movimento repetitivo! Estavam já a bulir comigo.
Uma hora depois, já havia conseguido fazer um pequeno buraco no concreto. Faltava agora só alargá-lo (para caber um cano de esgoto) e levá-lo um metro e meio adiante. Minha mão esquerda estava muito doída, pois já havia levado muita porrada. Mas a direita... a direita é que era o problema. Eu tinha bolhas grandes. Grandes e cheias de líquido. Era uma na parte interna do dedão; duas no indicador – uma em cada dobra; duas na palma da mão – no início do indicador e do maior de todos. Estava doendo muito pra segurar a marreta. Juro que não me lembro se chorei ali. Até porque algum peão-de-obra poderia me ver ou o velho poderia retornar. Chorar não dava. Só por dentro. Já vinha sendo assim desde que cheguei em Minas Gerais – menino branquelo, raquítico e que era mal-acostumado a só brincar e ir para a escola.
Nós mudamos nossa vida e nos mudamos ao toque daquilo que temos que enfrentar. Nunca deixei de ser aquele garoto, aquele adolescente que viveu momentos de ânsia de força para não dar o braço a torcer. E que cada vez que superava a dor e o choro, voltava diferente para casa, para o mundo, para a vida.
Aquela manhã de meu primeiro dia de ajudante de encanador me ajudou a ser o que sou. É assim nas passagens da vida de todos. Depois daquela experiência, tive tantas outras...
A superação da dor, me parece que ocorre por dois motivos: por amor ou por ódio. Quanto mais doía, mais fui pegando a marreta e mais fui endurecendo. Força e dor. Vergonha e dor. Quase gritava. Consegui bater com muita força e comecei a furar, vencer aquele concreto. Não deixei de acertar a mão esquerda de quando em quando. É que, às vezes, vacilava. Voltava a ser aquele que entrou às oito da manhã para trabalhar.
Hora do almoço. Hora do rango, do bagerê.
Quando cheguei a minha casa, minha mãe (mãe é mãe) começou a chorar. Desabei – chorei também. Acho que doía olhar para minhas mãos. E pareciam enormes. Estavam inchadas. Choramos. Dores. Dor de mãe. Dor de filho... Meu pai chorou. Se sentiu um fracassado. Não era isso que ele queria dar aos filhos. Dores...
Almoçamos.
Minha mãe pediu para que eu não voltasse. Choramos.
Eu tinha uma decisão a tomar. Orgulho. Dor. Precisão. O cara que saiu não era o cara que voltou. Para que teria valido tudo o que já tinha feito se não voltasse? (ora, trabalhei meio período!). Nossa situação estava feia. Precisávamos de dinheiro. Adolescente não consegue emprego fácil. Interior... pior.
Choramos.
Voltei do almoço.
Foi um dos dias mais... doloridos de minha vida.
Voltei no dia seguinte.
Trabalhei a semana toda. Recebi um vale.
Trabalhei muitos meses com seu Joaquim. Às vezes, tinha moleza. Era o dia em que ele me pedia para lavar o seu carro, um corcel.
O esgoto que comecei quebrando neste texto, não foi o da construção. Foi um esgoto com muitos anos de uso. Foram meses de trabalho duro. Muito fedor. Muito. Não posso dizer que estive na merda. Eu mexia, às vezes, com ela. Mas era o meu trabalho.
Trabalhei.
Endureci.
Interessante que hoje, tantos trabalhos desse depois, parece que estou amolecendo. Deve ser a experiência do tempo. É uma sensação tão estranha! Mas a maneira como vejo a vida, a morte, a miséria, é muito particular.
Houve tempos em que me perguntava, assim como Luís da Silva, “que é que me podia acontecer?”
Maneiras de viver.
Maneiras de ver o mundo.
Modos de crescer, de sobreviver.
É isso.
Wmofox, 20.11.2002
Post Scriptum:
Interessante o que diz o crítico espanhol José Bergamin em sua teoria do romance: “o leitor perde-se no romance para esquecer o seu mundo, mas reencontra-se lá, reconhecendo que o seu próprio mundo está chamado a desaparecer: perder-se para encontrar-se, para perder-se”.
domingo, 13 de abril de 2008
Santiago de Compostela
Sem uma concha indicando o caminho, mas os caminhos têm sua dose de natureza. |
Pois é, desde que iniciei meu longo caminho até Santiago de Compostela, já tenho refletido e refletido sobre essa minha existência torta e cheia de encruzilhadas.
Pra começar, dias atrás, tomei consciência que não serei professor de português quando terminar - se terminar - minha faculdade de Letras: é evidente que não levo jeito para a Gramática.
Andei pensando que devo aceitar minha natureza e alguns de meus limites. Não gosto e não tenho interesse em informática - odeio computador e coisas eletrônicas. Assim como sei que Gramática não é minha praia. Fazer o quê? A vida segue.
Resumindo:
- Nem "gramatiquez", nem "informatiquez" comigo, falou?
POR OUTRO LADO, este negócio de saber e aceitar os limites é relativo: a questão dos limites individuais é uma questão de momento. Um limite é um limite até você estabelecer um novo limite. Certo? (esta ideia é importante para que não se fique sentado no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar... como já dizia Rauzito)
Então, ontem fui a uma palestra sobre o Caminho de Santiago. Recebi muitas informações interessantes e instigantes. Porém, confesso que ainda não sei ao menos se irei em 2008 ou 2009; se irei em agosto ou em abril; se se se...
É mole? É o Caminho e suas bifurcações sem o símbolo da concha para direcionar este caminhante...
William
Post Scriptum (19/4/19):
Interessante a releitura deste registro momentâneo de minha vida onze anos depois.
Não fiz o Caminho de Santiago. Fiz na USP em 2010 as últimas matérias que completariam minha grade de matérias das graduações em Português-Espanhol. Quando fui pedir colação de grau em 2014, descobri que faltou uma matéria (2 créditos) e não poderia colar grau em Português, só em Espanhol. Não aceitei.
Agora em 2019, após anos morando fora de São Paulo a trabalho (em Brasília DF), voltei para a FFLCH para completar a grade atual de créditos nas duas línguas. Virei estudante de novo aos 50 anos. E os 2 créditos se transformaram em mais de 30 para colar grau nas duas graduações. Tenho dois anos de prazo para cumprir essa nova meta estudantil (prazo definido pela Comissão de Graduação que me aceitou de volta).
Aliás, é tão estranha essa vida, que agora que saí do Banco do Brasil, não posso tirar passagens e ir para o Caminho de Santiago de Compostela porque estou matriculado na USP com nova chance de completar a graduação, e não posso faltar... engraçado, né? Se quiser fazer esta caminhada, provavelmente só daqui a dois anos ou em algum mês de julho, período que é extremamente cheio de gente no caminho.
O caminho para fazer o Caminho tem sido longo para mim, bem longo.
sábado, 12 de abril de 2008
Meu caminho iniciado e sem definição de datas
Luar num certo dia em Osasco. |
Neste sábado, vou à palestra mensal sobre o Caminho de Santiago, lá na Associação.
Depois de algumas definições, e indefinições também, sei que não tenho uma data definida para viajar.
Aliás, depois de umas definições profissionais, não sei se irei para a Espanha em agosto, ou se irei em abril ou maio de 2009.
- No lo sé! La verdad es que no lo sé. ¿Cuándo me voy a viajar?
sexta-feira, 11 de abril de 2008
La Invención del Quijote - Francisco Ayala
Dom Quixote e Sancho Pança, ilustração de Gustave Doré. |
O texto nos fala um pouco sobre utilizar mitos em produções literárias como, por exemplo, o mito de Dom Juan, Fausto, os heróis de Homero etc e, neste caso de Cervantes, na criação do próprio mito.
Uma das reflexões que mais gostei é sobre a recepção da obra por parte do público em relação ao próprio contexto histórico. Ler Dom Quixote de La Mancha atualmente não é o mesmo que lê-lo quatro séculos atrás. Aliás, é sobre isso que nos alerta Ayala: ocorre na leitura atual o inverso do que ocorria naquela época.
Em 1605, os nossos protagonistas eram o que havia de novo e estranho para os leitores, enquanto os personagens secundários e o pano de fundo eram o cotidiano normal. Hoje, a história apresenta os protagonistas como seres conhecidos e ao menos já identificados, justamente os estranhos personagens Dom Quixote e Sancho Pança. Ao passo que todo o pano de fundo da história nos é totalmente estranho e, muitas vezes, inimaginável.
"Con esto llegó a invertirse la perspectiva del lector: aquello que para el de 1605 era extraño y estrambótico -a saber, don Quijote mismo, con su complemento, Sancho-, le resulta familiar al de hoy; lo que para éste es ya ajeno -el mundo cervantesco-, era para aquél inmediato y cotidiano."
Outra discussão muito interessante é sobre a história de que Cervantes seria um "gênio leigo", alguém que não tivesse consciência da obra que estava fazendo (um dos importantes críticos literários dessa tese é Miguel de Unamuno). Ayala nos diz que isso é outra teoria que não se sustenta.
"...pero es indudable que él tenía plena consciencia del sentido de su obra; consciencia profunda y entrañada, ya que ese sentido, siendo el de la situación cultural de conjunto, el de la conexión histórica, era también el de su propia vida individual."
Finalizando, há uma separação bem clara em relação a receptividade do primeiro volume em 1605 e o segundo em 1615. Aquele traz o espanto e a inovação e cria um mito, já este circula em meio a um público que conhece os personagens e está familiarizado com eles.
Dom Quixote é uma das obras mais conhecidas no mundo e uma das menos lidas. Isso é um pecado.
- Leiam a obra ao invés de ficarem somente ouvindo falar sobre ela.
Fonte bibliográfica do texto de Ayala:
CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de La Mancha. Edición del IV Centenario, Editora Alfaguara, 2004.
quinta-feira, 10 de abril de 2008
La Isla - Ricardo Piglia (leituras, reflexões)
(os sublinhados e as observações no texto são do blog)
1
Añoramos* un lenguaje más primitivo que el nuestro. Los antepasados hablan de una época donde las palabras se extendían con la serenidad de la llanura. Era posible seguir el rumbo y vagar durante horas sin perder el sentido porque el lenguaje no se bifurcaba y se expandía y se ramificaba hasta convertirse en este río donde están todos los cauces y donde nadie puede vivir porque nadie tiene patria. El insomnio es la gran enfermedad de la nación. El rumor de las voces es continuo y sus cambios suenan noche y día. Parece una turbina que marcha con el alma de los muertos dice el viejo Berenson. No hay lamentos, sólo mutaciones interminables y significaciones perdidas. Virajes microscópicos en el corazón de las palabras. La memoria está vacía porque uno olvida siempre la lengua en la que ha fijado los recuerdos.
(*Añorar: ter/sentir saudades, sentir falta)
2
Cuando decimos que el lenguaje es inestable no estamos hablando de una conciencia de esa modificación. Es necesario salir de allá para percibir el cambio. Si uno está adentro cree que el lenguaje es siempre el mismo, una especie de organismo vivo que sufre metamorfosis periódicas. La imagen más divulgada es la de un pájaro blanco que en el vuelo va cambiando de color. El aletear profundo del pájaro en la transparencia del aire da una falsa ilusión de unidad en el pasaje de los tonos. El dicho dice que el pájaro vuela interminablemente y en círculos porque le han vaciado el ojo izquierdo y busca ver la otra mitad del mundo. Por eso nunca va a poder aterrizar, dice el viejo Berenson y se ríe con la jarra de cerveza otra vez contra los bigotes, porque no encuentra un pedazo de tierra donde apoyar la pata derecha. Tuerto habría de ser el tero dijo después, para perderse en el aire y venir a parar a esta isla de mierda. No empieces, Shem, le dice Teynneson tratando de hacerse oír en el barullo del bar, entre los acordes del piano y las voces de los que cantan Three quarks for Muster Mark!, todavía tenemos que ir al entierro de Pat Duncan y no quiero tener que llevarte en carretilla. Ese es el sentido del diálogo, que se repite como un chiste privado cada vez que están por irse, pero no siempre usan el mismo lenguaje. Se sostienen del brazo y cruzan muy erguidos el salón para salir. La escena se repite, pero sin saberlo hablan del pájaro tuerto y del entierro de Pat a veces en ruso, a veces en un francés del siglo XVIII. Dicen lo que quieren y lo vuelven a decir pero ni sueñan que a lo largo de los años han usado cerca de siete lenguas para reírse del mismo chiste. Así son las cosas en la isla.3
“El lenguaje se transforma según ciclos discontinuos que reproducen la mayoría de los idiomas conocidos (registra Turnbull). Los habitantes hablan y comprenden instantáneamente la nueva lengua pero olvidan la anterior. Los idiomas que se han podido identificar son el inglés, el alemán, el danés, el español, el noruego, el italiano, el francés, el griego, el sánscrito, el gaélico, el latín, el sajón, el ruso, el flamenco, el polaco, el esloveno, el húngaro. Dos de las lenguas usadas son desconocidas. Pasan de una a otra pero no las pueden concebir como idiomas distintos sino como etapas sucesivas de una lengua única.” Los ritmos son variables, a veces un idioma permanece semanas, a veces un día. Se recuerda el caso de una lengua que se mantuvo quieta durante dos años. Después se sucedieron quince modificaciones en doce días. Habíamos olvidado las letras de todas las canciones, dijo Berenson, pero no la melodía y no hubo modo de cantar una canción. Se veía a la gente en los pubs silbando a coro como guardias escoceses, todos borrachos y alegres, marcando el ritmo con las jarras de cerveza mientras buscaban en la memoria alguna letra que coincidiera con la música. La melodía persiste y es un aire que cruza la isla desde el principio de los tiempos pero de qué nos sirve la música si no podemos cantar, un sábado a la noche, en el bar de Humphery Chimden Earwicker cuando todos estamos borrachos y ya nos olvidamos de que el lunes hay que volver al trabajo.
4
En la isla se cree que los ancianos se encarnan al morir en los nietos, razón por la que no pueden encontrarse los dos vivos al mismo tiempo. Como ocurre a pesar de todo algunas veces, cuando un anciano se encuentra con su nieto, antes de poder hablar con él, debe darle una moneda. En esa teoría de las reencarnaciones se ha fundado la lingüística histórica. La lengua es como es porque acumula los residuos del pasado en cada generación y renueva el recuerdo de todas las lenguas muertas y de todas las lenguas perdidas y el que recibe esa herencia ya no puede olvidar el sentido que esas palabras tuvieron en los días de los antepasados. La explicación es simple pero no resuelve los problemas que plantea la realidad.
5
El carácter inestable del lenguaje define la vida en la isla. Nunca se sabe con qué palabras serán nombrados en el futuro los estados presentes. A veces llegan cartas escritas con signos que ya no se comprenden. A veces un hombre y una mujer son amantes apasionados en una lengua y en otra son hostiles y casi desconocidos. Grandes poetas dejan de serlo y se convierten en nada y en vida ven surgir otros clásicos (que también son olvidados). Todas las obras maestras duran lo que dura la lengua en la que fueron escritas. Sólo el silencio persiste, claro como el agua, siempre igual a sí mismo.
6
La vida del día empieza al amanecer y si ha habido luna hasta el alba los gritos de los jóvenes en la ladera pueden oírse ya antes de la aurora. Inquietos en la noche poblada de espíritus, se gritan unos a otros tratando de adivinar qué sucederá con el sol alto. La tradición dice que el lenguaje se modifica en las noches de luna llena pero ésa es una creencia desmentida por los hechos. La lingüística científica no acepta ninguna relación entre los fenómenos naturales como las mareas o los vientos y las mutaciones del lenguaje. Los hombres del pueblo siguen sin embargo acatando los viejos rituales y cada noche de luna esperan que llegue por fin la lengua de su madre.
7
En la isla no conocen la imagen de lo que está afuera y la categoría de extranjero no es estable. Piensan a la patria según la lengua. (“La nación es un concepto lingüístico.”) Los individuos pertenecen a la lengua que todos hablaban en el momento de nacer, pero ninguno sabe cuándo volverá a estar ahí. “Así surge en el mundo (le han dicho a Boas) algo que a todos se nos aparece en la infancia y donde todavía no ha estado nadie: la patria.” Definen el espacio en relación con el río Liffey que atraviesa la isla de norte a sur. Pero Liffey es también el nombre que designa al lenguaje y en el río Liffey están todos los ríos del mundo. El concepto de frontera es temporal y sus límites se conjugan como los tiempos de un verbo.
8
Nos encontramos en Edemberry Dubblenn DC, dijo el guía, la capital que combina tres ciudades. En el presente la ciudad cruza de Este a Oeste siguiendo la margen izquierda del Liffey por los barrios y los ghettos japoneses y antillanos, desde el nacimiento del río en Wiclow hasta Island Bridge, un poco más abajo de Chapelizod, donde sigue su curso. La ciudad próxima se va abriendo, como si estuviera construida en potencial, siempre futura, con calles de fierro y lámparas de luz solar y androides desactivados en los galpones de la Scotland Yard. Los edificios surgen de la niebla, sin forma fija, nítidos, cambiantes, casi exclusivamente poblados por mujeres y mutantes.
Del otro lado, hacia el Oeste, subiendo por la zona del puerto, está la ciudad vieja. Al mirar el mapa hay que tener en cuenta que la escala está construida a la velocidad media de un kilómetro y medio por hora de marcha. Un hombre sale de 7 Eccles Street a las ocho de la mañana y sube por Westland Row y a cada lado del empedrado están las acequias que llegan hasta la orilla del río por donde sube el canto de las lavanderas. El que avanza por la calle empinada hacia la taberna de Baerney Kiernam trata de no oír el canto y golpea con el bastón el enrejado de los sótanos. Cada vez que entra en una calle nueva las voces envejecen, las palabras antiguas están como grabadas en las paredes de los edificios en ruinas. La mutación ha ganado las formas exteriores de la realidad. “Lo que todavía no es define la arquitectura del mundo”, piensa el hombre y desciende a la playa que rodea la bahía. “Está ahí, en el borde del lenguaje, como la casa de la infancia en la memoria.”
9
La lingüística es la ciencia más desarrollada en la isla. Durante generaciones los investigadores han trabajado en el proyecto de fijar un diccionario que incorpore las variantes futuras de las palabras conocidas. Necesitan fijar un léxico bilingüe que permita comparar una lengua con otra. Imagínense (dice el informe de Boas) a un viajero inglés que llega a un país extranjero y en el hall de la estación de ferrocarril, perdido en medio de una multitud desconocida, se detiene a revisar un pequeño diccionario de bolsillo buscando una expresión correcta. Pero la traducción es imposible porque sólo el uso define el sentido y en la isla conocen siempre una lengua por vez. Los que persisten en la elaboración del diccionario lo consideran ya un manual de adivinación. Un nuevo Libro de las Mutaciones concebido, explicó Boas, como un diccionario etimológico que hace la historia del porvenir del lenguaje.
Hubo un solo caso en la historia de la isla de un hombre que conoció dos idiomas al mismo tiempo. Se llamaba Bob Mulligan y decía que soñaba con palabras incomprensibles que tenían para él un sentido transparente. Hablaba como un místico y escribía frases desconocidas y decía que ésas eran las palabras del porvenir. En los Archivos de la Academia han quedado algunos fragmentos de los textos que escribió e incluso se puede oír la grabación de la voz aguda y lunática de Mulligan que cuenta un relato que empieza así: “Oh New York city, sí, sí, la ciudad de Nueva York, la familia entera se fue para allá. El barco se había llenado de piojos y hubo que quemar las sábanas y bañar a los chicos con agua mezclada con acaroína. Cada bebé tenía que estar separado de los otros porque el olor los hacía llorar si estaban cerca. Las mujeres usaban un pañuelo de seda en la cara igual que damas beduinas, aunque todas tenían el pelo colorado. El abuelo del abuelo fue police-man en Brooklyn y una vez mató de un tiro a un rengo que estaba por degollar a la cajera de un supermarket.” Nadie sabía lo que estaba diciendo y Mulligan escribió ese relato y otros relatos en esa lengua nueva y después un día dijo que la había dejado de oír. Venía al bar y se sentaba en esa punta del mostrador a tomar cerveza, sordo como una tapia, y se emborrachaba despacio, con la cara avergonzada de un hombre arrepentido de haberse hecho notar. Nunca más quiso hablar de lo que había dicho y vivió siempre un poco apartado hasta que murió de cáncer a los cincuenta años. Pobre Bob Mulligan, dijo Berenson, de joven era un tipo expansivo y muy popular y se casó con la Belle Blue Boylan y al año la mujer se murió ahogada en el río y su cuerpo desnudo apareció en la ribera del este del Liffey, en la otra orilla. Mulligan nunca se repuso, ni volvió a casarse y vivió solo toda la vida. Trabajaba de linotipista en la imprenta del Congreso y venía con nosotros al bar y le gustaba apostar a los caballos hasta que una tarde empezó a contar esas historias que nadie entendía. Yo creo, dijo el viejo Berenson, que la Belle Blue Boylan fue la mujer más hermosa de Dublin.
Todos los intentos de construir una lengua artificial se han visto perturbados por una experiencia temporal de la estructura. No han podido construir un lenguaje exterior al lenguaje de la isla porque no pueden imaginar un sistema de signos que persista sin mutaciones. Si a + b es igual a c, esa certidumbre sólo sirve un tiempo porque en un espacio irregular de dos segundos ya a es -a y la ecuación es otra. La evidencia vale lo que tarda una proposición en ser formulada. En la isla ser rápido es una categoría de la verdad. En esas condiciones los lingüistas del Area-Beta del Trinity College alcanzaron lo que parece imposible: casi fijan en un paradigma lógico la forma incierta de la realidad. Definieron un sistema de signos cuya notación se transforma con el tiempo. Hemos logrado establecer un campo unificado, le han dicho a Boas, ahora sólo nos falta que la realidad incorpore al lenguaje alguna de nuestras hipótesis. Hasta el momento saben que han transcurrido diez y siete ciclos, pero suponen que existe una potencialidad casi infinita, calculada en ochocientos tres (porque ochocientas tres son las lenguas conocidas en el mundo). Si en casi cien años, desde que en 1939 empezó el registro de los cambios, se han detectado diez y siete formas distintas, los más optimistas imaginan que el círculo puede completarse en otros cien años. Ningún cálculo es seguro, porque la duración irregular de los ciclos forma parte de la estructura de la lengua. Existen tiempos lentos y tiempos rápidos, como el cauce* del Liffey. Los más afortunados, dice el proverbio, navegan en aguas tranquilas, los mejores viven en tiempos veloces, donde el sentido dura lo que dura la cólera de un gallo. Los jóvenes más radicalizados del grupo Trickster del Area-Beta del Trinity College se ríen de esos proverbios idiotas. Piensan que, mientras el lenguaje no encuentre su borde final, el mundo será sólo un conjunto de ruinas y que la verdad es como los peces que boquean en el barro hasta morir cuando el caudal del Liffey baja con la sequía del verano, hasta transformarse en un riacho de aguas oscuras.
(*el cauce: o leito)
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He dicho que la tradición dice que los antepasados hablan de un tiempo en el que la lengua era un llano por el que se podía andar sin sorpresa. Las generaciones, afirman los antiguos, heredaban los mismos nombres para las mismas cosas y podían legarse documentos escritos con la certeza de que todo lo que escribían sería legible en los tiempos futuros. Algunos repiten (sin comprenderlo) un fragmento de aquella lengua original que ha sobrevivido a lo largo de los años. Boas dice que los escuchó recitar ese texto como si fuera un chiste de borrachos, de modo que la vocalización era pastosa y las palabras estaban cortadas por risas y expresiones que nadie sabía ya si formaban o no parte del antiguo sentido. El fragmento llamado Sobre la serpiente, dice Boas que era así: “Empezó la época de los grandes vientos. Ella siente que le arrancan el cerebro y dice que su cuerpo está hecho de tubos y conexiones eléctricas. Habla sin parar y a veces canta y dice que me lee el pensamiento y sólo pide que yo esté cerca y que no la abandone en la arena. Dice que es Eva y que la serpiente es Eva y que nadie en los siglos de los siglos se ha atrevido a decir esa verdad tan pura y que sólo María Magdalena se lo dijo al Cristo antes de lavarle los pies. Eva es la serpiente, la mutación interminable, y Adán está solo, siempre ha estado solo. Dice que Dios es la mujer y que Eva es la serpiente. Que el árbol del bien y del mal es el árbol del lenguaje. Recién cuando se comen la manzana empiezan a hablar. Eso dice ella cuando no canta”. Para muchos es un texto religioso, un fragmento del génesis. Para otros se trata sencillamente de un rezo que persistió en la memoria a la permutación de las lenguas y que fue recordado como un juego adivinatorio. (Los historiadores afirman que se trata de un párrafo de la carta que Nolan dejó antes de matarse.)
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Algunas sectas genealógicas aseguran que los primeros habitantes de la isla son desterrados, que fueron enviados hacia aquí remontando el río. La tradición habla de doscientas familias confinadas en un campo multirracial en los arrabales de Dalkey, al Norte de Dublin, detenidos en una redada en los barrios y los suburbios anarquistas de Trieste, Tokyo, México DF y Petrogrado.
Embarcados en el Rosevean, un tres palos, con hélice Pohl-A, en la bahía del norte, fueron enviados por el río hacia atrás en el tiempo, según Teynneson, bajo las ráfagas heladas del viento de enero.
El experimento de confinar exiliados en la isla ya había sido utilizado otras veces para enfrentar rebeliones políticas, pero siempre se usó con individuos aislados, en especial para reprimir a los líderes. El caso más recordado fue el de Nolan, un militante del grupo de resistencia gaélico-celta que se infiltró en el gabinete de la reina y llegó a ser el hombre de confianza de Möller en el comando de planificación propagandística. Lo descubrieron porque usaba los informes meteorológicos para cifrar mensajes destinados a los pobladores de los ghettos irlandeses de Oslo y de Copenhague. La historia cuenta que Nolan fue descubierto por azar, cuando un investigador del MIT de Boston procesó en una computadora los mensajes emitidos durante un año por la oficina meteorológica, con la intención de estudiar las modificaciones infinitesimales del clima en el Este de Europa. Nolan fue desterrado y llegó a la isla después de navegar cerca de seis días a la deriva y vivió absolutamente solo casi cinco años, hasta que se suicidó. Su odisea es una de las grandes leyendas en la historia de la isla. Sólo un hijo de puta empecinado irlandés pudo sobrevivir todo ese tiempo aislado como una rata en esta inmensidad y cantando contra las olas, Three quarks for Muster mark, a los gritos, en la playa, buscando siempre la huella de una pata humana en la arena, dijo el viejo Berenson. Sólo alguien como Jim pudo fabricarse una mujer con la que hablar en esos años interminables de soledad.
El mito dice que con los restos del naufragio construyó un grabador de doble entrada, con el que era posible improvisar conversaciones usando el sistema de los juegos lingüisticos de Wittgenstein. Sus propias palabras eran almacenadas por las cintas y reelaboradas como respuestas a preguntas puntuales. Lo programó para hablar con una mujer y le habló en todas las lenguas que sabía y al final era posible pensar que la mujer había llegado a amar a Nolan. (Por su parte él la quiso desde el primer día porque pensaba que ella era la mujer de su amigo Italo Svevo, Livia Anna, la más bella de las madonas de Trieste, con ese hermosísimo pelo colorado que hacía pensar en todos los ríos del mundo.)
A los tres años de estar solo en la isla, las conversaciones se repetían cíclicamente y Nolan se aburría y la grabadora empezó a mezclar las palabras (“Heremon, nolens, nolens, brood our pensies, brume in brume”, le decía por ejemplo) y Nolan le preguntaba “¿Cómo?” “¿Qué?” y en esa época empezó a llamarla Anna Livia Plurabelle. Al final del sexto año de exilio, Nolan perdió las esperanzas de ser rescatado y empezó a no dormir y a tener alucinaciones y a soñar que se pasaba la noche en vela escuchando el susurro inalámbrico y la dulce voz de Anna Livia.
Tenía un gato y cuando el gato se metió una tarde en el monte y no volvió más, Nolan escribió una carta de despedida, apoyó el codo derecho en la mesa para que no le temblara el pulso, y se pegó un tiro en la cabeza. Los primeros que desembarcaron del Rosevean se encontraron con la voz de la mujer que seguía hablando en el grabador bifocal. Apenas si mezclaba las lenguas, según Boas, y era posible comprender perfectamente la desesperación que le había producido el suicidio de Nolan. Estaba sobre una piedra, frente a la bahía, hecha de alambres y de cintas rojas y se lamentaba con un suave murmullo metálico.
He tejido y destejido la trama del tiempo, decía, pero él se ha ido y ya no va a volver. Un cuerpo es un cuerpo, sólo las voces sirven para amar. Desde hace años estoy sola aquí, en la ribera de todos los ríos y espero que llegue la noche. Siempre es de día, en esta latitud todo es tan lento, nunca llega la noche, siempre es de día, el atardecer tarda tanto, estoy ciega, al sol, quiero arrancar “la venda de hierro” que me ciñe la frente, quiero traer aquí “la oscuridad concentrada del África”. La vida está siempre amenazada por los cazadores (ha dicho Nolan), instintivamente hay que fabricar, como las abejas sus alvéolos, un sentido. Incapaz de considerar mi propio enigma, digo: no es su propio yo el que cuenta, sino su Musa, su canto universal.
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Si la leyenda es cierta la isla ha sido un gran asentamiento de exiliados en la época de la represión política que siguió a la contraofensiva del IRA y a la caída del Pulp-KO. Pero ninguno de los historiadores tiene el menor vestigio de ese pasado o del tiempo en que Anna Livia estuvo sola en la ribera o de la época en que llegaron las doscientas familias y no se encuentra ningún rastro que atestigüe los hechos. La única fuente escrita en la isla es el Finnegans Wake al que todos consideran un libro sagrado porque siempre pueden leerlo sea cual sea el estado de la lengua en que se encuentren.
En realidad el único libro que dura en esta lengua es el Finnegans, dijo Boas, porque está escrito en todos los idiomas. Reproduce las permutaciones del lenguaje en escala microscópica. Parece un modelo en miniatura del mundo. A lo largo del tiempo lo han leído como un texto mágico que encierra las claves del universo y también como una historia del origen y la evolución de la vida en la isla.
Nadie sabe quién lo escribió, ni cómo llegó hasta aquí. Nadie recuerda si fue escrito en la isla o si estaba en el equipaje de los primeros exiliados. Boas vio el ejemplar que se conserva en el Museo, encerrado en una caja de vidrio y como suspendido en una luz nuclear. Es una viejísima edición numerada de Faber and Faber, que tiene más de cien años y en la que hay notas manuscritas y un calendario con la lista de los muertos de una familia irlandesa del siglo XX. Ese ejemplar sirvió para hacer todas las copias que circulan en la isla.
Muchos creen que el Finnegans es un libro de ceremonias fúnebres y lo estudian como el texto que funda la religión en la isla. El Finnegans es leído en las iglesias como una Biblia y es usado para predicar en todas las lenguas por los pastores presbiterianos y por los sacerdotes católicos. En el Génesis se habla de una maldición de Dios que provocó la Caída y transformó el lenguaje en el paisaje abrupto que es hoy. Borracho, Tim Finnegan se cayó al sótano por una escalera, que inmediatamente pasó de ladder a latter y de latter salió litter y del desorden la letter, el mensaje divino. La carta es encontrada en un vaciadero de basura por una gallina que picotea. Está firmada con una mancha de té y la prolongada permanencia en el basurero ha dañado el texto. Tiene agujeros y borrones y es tan difícil de interpretar, que los eruditos y los sacerdotes conjeturan en vano sobre el sentido verdadero de la Palabra de Dios. La carta parece escrita en todas las lenguas y cambia continuamente bajo los ojos de los hombres. Ese es el Evangelio y el basurero de donde viene el mundo.
Los comentarios del Finnegans definen la tradición ideológica de la isla. El libro es un mapa y la historia se transforma según el recorrido que se elija. Las interpretaciones se multiplican y el Finnegans cambia como cambia el mundo y nadie imagina que la vida del libro se pueda detener. Sin embargo en el fluir del Liffey hay una recurrencia hacia Jim Nolan y Anna Livia, solos en la isla, antes de la carta final. Ese es el primer núcleo, el mito de origen tal cual lo transmiten los informantes (según Boas).
En otras versiones el libro es la transcripción del mensaje de Anna Livia Plurabelle, que lee los pensamientos de su marido (Nolan) y le habla después que él está muerto (o dormido), única en la isla durante años, abandonada en una piedra, con las cintas rojas y los cables y el armazón metálico al sol, murmurando en la playa vacía hasta que llegan las doscientas familias.
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Todos los mitos terminan ahí y también este informe. Hace dos meses que salí de la isla, dijo Boas, y todavía resuena en mí la música de esa lengua que es como un río. El que oiga el canto de las lavanderas en las orillas del Liffey no se podrá ir, dicen allá, y yo no he podido resistir la dulzura de la voz de Anna Livia. Por eso he de volver a la ciudad de los tres tiempos y a la bahía donde reposa la mujer de Bob Mulligan y al Museo de la Novela donde está el Finnegans, solo en la sala, en una caja negra de cristal. También yo voy a cantar en la taberna de Humphery Earwicker, golpeando el puño contra la madera de la mesa y tomando cerveza, una canción que habla del pájaro tuerto que vuela sin parar sobre la isla.
In: Cuentos Morales - Antología (1961-1990)
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Extractos del muy interesante cuento de Piglia:
1. Añoramos un lenguaje más primitivo que el nuestro... El insomnio es la gran enfermedad de la nación. El rumor de las voces es continuo y sus cambios suenan noche y día... La memoria está vacía, porque uno olvida siempre la lengua en la que ha fijado los recuerdos...
2. Cuando decimos que el lenguaje es inestable, no estamos hablando de una conciencia de esa modificación. Es necesario salir de allá para percibir el cambio. Si uno está adentro, cree que el lenguaje es siempre el mismo...
3. "El lenguaje se transforma según ciclos discontinuos que reproducen la mayoría de los idiomas conocidos (registra Turnbull)...
4. En la isla se cree que los ancianos se encarnan, al morir, en los nietos... en esa teoría de las reencarnaciones se ha fundado la lingüística histórica. La lengua es como es, porque acumula los residuos del pasado en cada generación y renueva el recuerdo de todas las lenguas muertas y de todas las lenguas perdidas...
5. El carácter inestable del lenguaje define la vida en la isla. Nunca se sabe con qué palabras serán nombrados en el futuro los estados presentes... Todas las obras maestras duran lo que dura la lengua en la que fueron escritas. Sólo el silencio persiste, claro como el agua, siempre igual a sí mismo.
6. ... La tradición dice que el lenguaje se modifica en las noches de luna llena, pero ésa es una creencia desmentida por los hechos. La lingüística científica no acepta ninguna relación entre los fenómenos... Los hombres del pueblo siguen sin embargo acatando los viejos rituales...
7. ... Piensan a la patria según la lengua. ("La nación es un concepto lingüístico.")... El concepto de frontera es temporal y sus límites se conjugan como los tiempos de un verbo.
8. ... Cada vez que entra en una calle nueva, las voces envejecen, las palabras antiguas están como grabadas en las paredes de los edificios en ruinas... "Se ve ahí, en el borde del lenguaje, como la casa de la infancia en la memoria."
9. La lingüística es la ciencia más desarrollada en la isla. Durante generaciones los investigadores han trabajado en el proyecto de fijar un diccionario que incorpore las variantes futuras de las palabras conocidas... Pero la traducción es imposible (de un viajero con un diccionario de bolsillo), porque sólo el uso define el sentido y en la isla conocen siempre una lengua por vez...
Todos los intentos de construir una lengua artificial se han visto perturbados por una experiencia temporal de la escritura... La evidencia vale lo que tarda una proposición en ser formulada... inventaron un lenguaje que muestra cómo es el mundo, pero que no permite nombrarlo...
10. He dicho que la tradición dice que los antepasados hablan de un tiempo en el que la lengua era un llano por el que se podía andar sin sorpresa... Algunos repiten (sin comprenderlo) un fragmento de aquella lengua original que ha sobrevivido a lo largo de los años... "(...) Dice que Dios es la mujer y que Eva es la serpiente. Que el árbol del bien y del mal es el árbol del lenguaje..."
11. Algunas sectas genealógicas aseguran que los primeros habitantes de la isla son desterrados, que fueron enviados hacia aquí remontando el río. La tradición habla de doscientas familias confinadas en un campo multirracial en los arrabales de Dalkey, al Norte de Dublín...
12. Si la leyenda es cierta, la isla ha sido un gran asentamiento de exiliados, en la época de la represión política que siguió a la contraofensiva del IRA y a la caída del Pulp-KO... La única fuente escrita en la isla es el FINNEGANS WAKE, al que todos consideran un libro sagrado, porque siempre pueden leerlo, sea cual fuere el estado de la lengua en que se encuentren... porque está escrito en todos los idiomas...
Nadie sabe quién escribió, ni cómo llegó hasta aquí...
En el Génesis se habla de una maldición de Dios que provocó la Caída y transformó el lenguaje en el paisaje abrupto que es hoy. Borracho, Tim Finnegan se cayó al sótano por una escalera, que inmediatamente pasó de ladder a latter y de latter salió litter y del desorden la letter, el mensaje divino... Tiene agujeros y borrones (la carta) y es tan difícil de interpretar, que los eruditos y los sacerdotes conjeturan en vano sobre el sentido verdadero de la Palabra de Dios...
13. Todos los mitos terminan ahí y también este informe...
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Post Scriptum (25/01/19):
O escritor argentino Ricardo Piglia faleceu em 6 de janeiro de 2017, aos 75 anos de idade. Quando fiz esta postagem em abril de 2008, era estudante de Letras na Universidade de São Paulo.
Ao revisitar a postagem mais de uma década depois, vejo que pouco assimilei de conhecimento a respeito de Piglia. Isso aconteceu de certa forma em relação a parte das literaturas novas apresentadas a mim durante o curso porque ao longo de quase uma década de frequência à USP fui também dirigente sindical dos bancários e na divisão das tarefas e obrigações a prioridade foi a luta sindical, relegando a segundo plano os estudos e objetivos pessoais.
Na mesma época desta postagem, abril de 2008, terminei a leitura do livro "O último leitor", de Piglia, publicado em 2005. É um livro que gostaria de reler, pois o tema é dos mais atrativos para mim: ensaios e reflexões sobre o ato de ler e sobre leitores e leituras. Quem sabe releia ao revisitar esta postagem agora em 2019.
Por fim, tenho também de Piglia um filme lançado em 2000, baseado em seu romance de 1997, "Plata quemada". Vou revê-lo.
Em relação à postagem em si - "La isla" -, não basta somente ler novamente, porque o texto é complexo. É necessário reler, estudar, interpretar, refletir. Exigir de meu cérebro a compreensão do texto. Vou fazer isso.
Afinal de contas, sou um dos últimos leitores ou não?
William
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Post Scriptum (27/01/19):
Nos últimos dois dias busquei ler e ver materiais relativos a Piglia.
Como disse acima, assisti ao filme "Plata quemada", história baseada em fatos reais ocorridos na Argentina e no Uruguai em 1965. Piglia buscou informações adicionais sobre os fatos e narrou a história em romance publicado em 1997. O filme foi lançado em 2000 e é muito ousado para a época, na minha opinião. Se trata de um assalto praticado por um grupo de bandidos, dentre eles os chamados "irmãos gêmeos", jovens apaixonados e violentos. O filme tem muita violência, sangue, cenas de sexo e tensão do início ao fim.
Busquei na estante o livro "O último leitor" (2005) e comecei a lê-lo. Li o prólogo e o primeiro capítulo: "O que é um leitor?". Piglia nos põe a pensar. Lembrei-me do também argentino Alberto Manguel, nos contando "Uma história da leitura" (1996).
Por fim, reli o texto da postagem - "La isla" -, contido no livro de Piglia "Cuentos Morales" (1995). A releitura por duas vezes, uma delas em voz alta para treinar meu castelhano, foi com atenção e com pesquisa. O texto é hermético, na minha opinião. Faz referência à Irlanda, James Joyce e sua obra mais enigmática "Finnegans wake" (1939). Após a primeira releitura do texto, fui buscar informações na rede mundial e assisti a uma entrevista no programa Literatura Fundamental (Univesp/TV Cultura) que me esclareceu bastante coisa. Na segunda releitura de La isla foi mais fácil identificar nomes e referências à obra de Joyce.
Vale citar aqui que tenho o privilégio de ter lido "Dublinenses" (1914) e "Ulisses" (1922) de James Joyce, na tradução de Antônio Houaiss. Foi uma experiência única. Tenho também "Retrato do artista quando jovem" (1916), mas não li ainda.
A revisita à postagem valeu a pena, fiquei mais informado a respeito de Piglia, a respeito do próprio texto e das referências contidas na obra. Acredito que voltarei a esta postagem no blog.
William
domingo, 6 de abril de 2008
Kolstomer (História de um cavalo) - León Tolstói
Comentário do blog: a reprodução deste conto de Tolstói tem objetivos apenas didáticos, porque fez parte do conteúdo de uma matéria que estudamos na Faculdade de Letras da USP.
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Breve comentário
O que faz uma obra literária perdurar ao longo do tempo como algo que mereça ser lido nos tempos futuros?
Algumas possibilidades: suas qualidades técnicas em termos de composição; sua importância para o momento histórico vivido; uma quantidade grande de sorte ou acasos para que não se perca em guerras, expurgos, cataclismos etc.
Algumas obras literárias são pequenas preciosidades. Jóias raras.
Cito como exemplo, o conto Kolstomer, de Tolstói. Com alguns excertos é possível apreciar a grandeza da técnica, do tema, e do momento histórico (século XIX).
Grandes obras são atemporais. Imagino o mesmo personagem hoje – século XXI – com as mesmas reflexões.
Alguns trechos do capítulo seis falam por si sós da grandeza do conto.
“Já antes eu tivera certa tendência para a seriedade e a meditação, mas então sofri uma transformação definitiva. Meu pelo, que despertara desprezo tão estranho entre as pessoas, minha desgraça inesperada e, além disso, minha situação especial na cavalhada, que pressentia, mas que não conseguia explicar a mim mesmo, obrigaram-me a concentrar-me ainda mais dentro de meu íntimo. Refleti sobre a injustiça dos homens, que me censuravam por causa da cor da pele; sobre a inconstância do amor materno e, em geral, do amor feminino, que dependia de certas circunstâncias físicas. Principalmente, meditei sobre as particularidades daquele estranho animal a que chamam gênero humano e a que estamos tão estreitamente ligados...”
Vejam, estamos lendo as percepções de um cavalo a respeito de sua vida, a respeito do ser com quem interage – estranho animal humano – e, sobretudo, lendo sobre o teor dos problemas enfrentados por ele de preconceito por sua cor de pele e de outras condições sociais, que ele comenta também ao longo do conto, como origem e jeito de ser.
O melhor das reflexões do cavalo vem quando ele começa a descrever sobre a peculiaridade humana da “propriedade”, de nominar as coisas como posses: seu, meu, sua e minha... É FANTÁSTICO!
“Compreendi muito bem o que dizia a respeito dos açoites e do cristianismo. Mas ficou completamente obscura para mim a palavra SEU, pela qual pude deduzir que estabeleciam um vínculo a ligar-me ao chefe das cavalariças. Então, não pude compreender de modo algum em que consistiria tal vínculo. Só muito depois, quando me separaram dos demais cavalos, é que expliquei a mim mesmo o que aquilo representava. Naquela época, eu não era capaz de entender a significação do fato de ser EU propriedade de um homem. As palavras MEU CAVALO, referindo-se a mim, a um cavalo vivo, pareciam-me tão estranhas como as palavras MINHA TERRA, MEU AR, MINHA ÁGUA.”
Depois de um tempo, o cavalo entende e explica a si mesmo o que significavam aqueles conceitos:
“Querem dizer o seguinte: os homens não dirigem a vida com fatos, mas com palavras. Não os preocupa tanto a possibilidade de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, como a de falar de objetos diferentes mediante palavras convencionadas. Essas palavras, que consideram muito importantes, são, sobretudo, MEU ou MINHA, TEU ou TUA. Aplicam-nas a todas as espécies de coisas e de seres, inclusive à terra, aos seus semelhantes e aos cavalos.”
Agora vêm as conclusões hilárias sobre o quão ridículos somos sobre esses tais direitos de posse e propriedade que arrotamos em relação às pessoas e coisas.
“... convenci-me de que o conceito de MEU – e não só com relação a nós, cavalos – não tem qualquer outro fundamento além de um baixo instinto animal, que os homens chamam sentimento ou direito de propriedade. O homem diz MINHA CASA, mas nunca vive nela; preocupa-se só em construí-la e mantê-la (...) Há pessoas que chamam SUA uma extensão de terra e nunca a viram nem passaram por ela (...) Há homens que chamam de suas certas mulheres, e estas convivem com outros homens. As pessoas não procuram, em sua vida, fazer o que consideram o bem, e sim a maneira de poder dizer do maior número possível de coisas: É MEU...”
Depois de observações tão sábias por parte de nosso personagem cavalo, a conclusão a que ele chega sobre nós, humanos, e eles, cavalos, é LÓGICA, e diria até RACIONAL:
“...só por este fato podemos dizer, com segurança, que, entre os seres vivos, nos encontramos em nível mais alto que o dos homens. A atividade dos homens, pelo menos a dos homens com quem tenho tratado, se traduz em palavras, ao passo que a nossa se manifesta em fatos.”
Nossa! Lembrei-me daquele refrão "Cazuziano" que tanto gosto de usar “suas ideias não correspondem aos fatos”.
MAS, como queremos ser otimistas, vamos dizer que não podemos generalizar toda a raça animal humana, pois como o próprio cavalo referiu suas conclusões aos homens com quem tem tratado, acreditamos que existem SIM seres humanos que buscam MAIS FATOS QUE SIMPLES PALAVRAS.
William
Bibliografia:
TOLSTOI, Leão. Obra Completa, Volume III. Nova Aguilar, 2004.
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(o texto abaixo está incompleto, ele vai até o capítulo VIII, quarta-noite. Não consegui terminar a digitação. Pela edição que tenho do texto, faltaram dez páginas, um terço do conto)
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(Dedicado à memória de M. A. Stakovitch)
CAPÍTULO PRIMEIRO
A abóbada celeste se alteava, a aurora se estendia, o orvalho de um prateado fosco se tornava mais branco, a lua minguante ia perdendo vida e o bosque adquiria sonoridades. A gente já se levantava e, no estábulo da casa senhorial, começavam a ouvir-se, cada vez mais frequentes, os bufidos, os rumores de palha remexida e até mesmo os relinchos, irritados e friorentos, dos cavalos que, reunidos, pareciam brigar por causa de alguma coisa.
- Olá! Está quase na hora! Estão com fome? - exclamou o velho cavalariço, abrindo as portas rangentes do estábulo. - Aonde vais? - gritou, ameaçando uma égua que se havia adiantado.
O cavalariço Nester, com um casaco apertado por uma correia, levava o chicote ao ombro e o pão, enrolado numa toalha, enfiado na cintura. Nas mãos tinha uma sela e um freio.
Os cavalos não se assustaram em absoluto nem os ofendeu o tom zombeteiro. Mostraram-se indiferentes e afastaram-se da porta sem pressa. Só uma velha égua baia, obscura e de grandes crinas, baixou as orelhas e virou-se de costas, rapidamente. Então, uma potranca, que estava mais distante e nada tinha a ver com o assunto, relinchou e empurrou sua vizinha.
- Eh! - tornou a gritar o cavalariço em tom mais alto e mais ameaçador do que antes, dirigindo-se ao fundo do estábulo.
De todos os cavalos que ali se encontravam (havia cerca de uma centena), o que mostrava menos impaciência era um cavalo mosqueado, que permanecia solitário a um canto, com os olhos caídos, lambendo um tronco de carvalho. Não se sabe que gosto achava nele, mas, enquanto o fazia, sua expressão era séria e pensativa.
- Basta de mimos! - exclamou o cavalariço, no mesmo tom de antes, e aproximou-se dele, deixando sobre um monte de esterco a sela e uma manta suja.
O cavalo mosqueado deixou de lamber o tronco e, ficando imóvel, fitou Nester por longo tempo. Não se riu, nem se aborreceu, nem sequer franziu a testa; limitou-se a suspirar profundamente e a virar a cabeça. O cavalariço rodeou-lhe o pescoço com os braços e pôs-lhe o freio.
- Por que suspirar? - perguntou.
O cavalo agitou a cauda, como se dissesse: "Não é por coisa alguma, Nester". O cavalariço cobriu-lhe o lombo com a manta e colocou a sela. O cavalo baixou as orelhas, expressando, ao que parece, seu descontentamento, e por isso Nester chamou-o de inútil e apertou-lhe a cilha. Então, o cavalo se inflou, mas o cavalariço enfiou-lhe um dedo na boca e bateu-lhe com o joelho no ventre, de modo que o animal se viu obrigado a expirar o ar. Apesar disso, baixou as orelhas e até virou a cabeça enquanto o homem lhe colocava a rédea. Bem sabia que isso não lhe serviria de nada, mas achava necessário manifestar que aquilo lhe era desagradável e que sempre o demonstraria. Quando ficou selado, adiantou a pata esquerda e começou a mascar o freio, não se sabe por que motivo, pois já era tempo de que soubesse que um freio não pode ter sabor algum.
Nester montou, com ajuda do estribo curto, desenrolou o chicote, libertou as abas do casaco, sentou-se na sela com esse estilo próprio dos cocheiros, caçadores e cavalariços e sacudiu as rédeas. O cavalo ergueu a cabeça, demostrando que estava disposto a ir onde lhe ordenassem, mas não se moveu do lugar. Sabia que Nester, antes de sair montado nele, teria de dizer muitas coisas, aos gritos, como, por exemplo, dar ordens a outro cavalariço, Vaska, e aos cavalos. De fato, Nester começou a gritar:
- Vaska, Vaska! Soltaste os cavalos? Que fazes, estúpido? Eh! Estás dormindo? Abre, para que as éguas saiam primeiro.
Rangeram as portas e Vaska, semi-adormecido, mal-humorado e segurando um cavalo pelas rédeas, afastou-se para um lado a fim de deixar os animais passarem. Começaram a desfilar, pisando a palha com cuidado e cheirando-a, éguas jovens, potros de crinas cortadas, potrinhos de mama e éguas grávidas, que atravessavam as portas passando as barrigas com precaução. As potras se juntavam de duas em duas e até de três em três, pondo a cabeça sobre o lombo das companheiras e apressando-se em sair, com o que de cada vez recebiam invectivas dos cavalariços. Os de mama às vezes se enfiavam entre as patas das mães de outros e relinchavam sonoramente respondendo à chamada das suas.
Uma potra muito travessa, mal se viu fora, virou a cabeça e pôs-se a dar coices e a relinchar; no entanto, não se atreveu a passar à frente da velha égua cinzenta Kuldiba, que, como sempre, ia à frente da eguada com expressão grave, andar pesado e balançando a barriga. Em poucos minutos, o estábulo, tão animado até pouco antes, ficou triste e vazio; erguiam-se melancólicos os postes do telheiro e só se via a palha pisoteada e revolvida de esterco. Por muito acostumado que estivesse a esse espetáculo, o cavalo mosqueado sentiu uma impressão penosa. Como se fizesse uma saudação, inclinou e levantou de leve a cabeça, suspirou até onde o permitia a cilha que lhe cingia o ventre e, movendo as patas intumescidas, seguiu atrás da égua, levando ao lombo ossudo o velho Nester.
"Sei que, quando sairmos pelo caminho, ele fará fogo e acenderá seu cachimbo de pau com enfeites de cobre, que traz preso a uma corrente" - pensou o cavalo. - "Isto me alegra, porque, de manhã cedo, quando ainda há orvalho, esse cheiro me agrada e me recorda muitas coisas gratas; só o que me incomoda é que o velho, quando está de cachimbo entre os dentes, fica fanfarrão, imagina que é personagem importante e sempre se senta de lado, machucando-me. Mas, tanto faz! Não é novidade, para mim, sofrer a fim de satisfazer o prazer dos outros. Que o pobre faça castelos! Só os pode fazer quando está sozinho, quando ninguém o vê. Assim, que monte de lado!", continuou a refletir o cavalo, enquanto avançava pelo meio do caminho, pisando cautelosamente com as patas curvadas.
CAPÍTULO II
Tendo levado a eguada para junto do rio, onde devia pastar, Nester apeou-se e tirou os arreios do cavalo. Os animais foram-se dispersando lentamente, pelo prado não pisado, coberto de orvalho e de um bafo que subia tanto da terra como do rio, o qual ali fazia uma volta.
Depois de tirar as rédeas do cavalo mosqueado, Nester coçou-lhe o pescoço e ele fechou os olhos, em sinal de agradecimento e de prazer.
- O velho gosta disso - murmurou Nester.
- Na verdade, o cavalo não gostava daquilo; fingia, por delicadeza. Por isso movera a cabeça, em sinal de aprovação. Logo, de modo completamente inesperado e sem motivo algum, Nester, supondo provavelmente que uma familiaridade excessiva poderia dar ideia equívoca a respeito de sua importância, empurrou a cabeça do cavalo e, brandindo a rédea, golpeou-lhe as pernas delgadas; e, sem dizer nada, foi sentar-se num tronco, no alto da colina, onde em geral costumava instalar-se.
Esse procedimento entristeceu o cavalo mosqueado, mas aparentou indiferença e, movendo a cauda rala e farejando algo, dirigiu-se para o rio, arrancando de passagem algumas ervas, só para distrair-se. Sem prestar atenção ao que faziam a seu redor as éguas jovens, os potros e potrinhos, que se alegravam com a manhã, e sabendo que o mais conveniente à sua saúde e sobretudo a seus anos era beber em jejum e comer depois, escolheu um lugar onde a margem era mais plana, fincou os cascos e esporões na água, enfiou nela o focinho e começou a beber aos sorvos, através dos lábios fendidos, movendo as ancas e agitando com prazer a cauda, de tronco ralo.
Uma égua baia, que sempre enraivecia o velho e lhe causava toda espécie de desgostos, aproximou-se dele andando pelo rio, como se por necessidade, mas realmente com o propósito de turvar-lhe a água diante do focinho. Mas o cavalo mosqueado já havia bebido bastante e, como se não notasse a intenção da égua, tirou tranquilamente, uma após a outra, as patas afundadas no lodo, sacudiu a cabeça e, afastando-se dos jovens, foi pastar. Esteve comendo durante três horas seguidas, quase sem parar em absoluto, mudando somente a posição das patas e tratando de não pisar a relva inutilmente. Depois de ter-se saciado a ponto de se lhe prender o ventre, como um saco, às costelas magras, deitou-se sobre as patas doloridas, buscando o modo por que menos lhe doessem, sobretudo a da direita, que era a mais fraca, e dormiu.
Existe a velhice majestosa, a repulsiva, assim como a velhice lamentável. Também há a majestosa e a repulsiva unidas. A do velho cavalo mosqueado era precisamente deste último gênero.
Era alto; media pelo menos dois archines e três verchki. Seu pelo era mosqueado de preto; ou antes, fora assim, pois na atualidade as manchas negras se haviam tornado de cor castanha suja. Sua pele consistia de três manchas: uma, na cabeça, estendendo-se até metade do pescoço e com uma calva irregular junto do nariz; as grandes crinas eram em parte brancas e em parte castanhas. A segunda cobria-lhe o flanco direito até a metade do ventre; a terceira, à garupa, abarcava a parte superior da cauda, descendo até metade das ancas. O resto da cauda era branco e matizado. A grande cabeça ossuda, com profundas cavidades sobre os olhos e com o lábio inferior, outrora preto, caído e fendido, pendia pesadamente do pescoço curvo e magro, que parecia de pau. O beiço caído deixava ver a língua pretuça, mordida de um lado, e os restos de uns dentes amarelentos e cariados. As orelhas, uma das quais estava torta, pendiam de ambos os lados da cabeça, e só de vez em quando se levantavam com indolência, para afugentar as pesadas moscas. Uma grande mecha do topete caía-lhe por trás de uma orelha; a testa nua estava afundada e rugosa e a pele tombava, formando bolsas. No pescoço e na cabeça, as veias se entrelaçavam, fazendo nós que se contraíam ao menor contacto com as moscas. Sua expressão era severa, concentrada e cheia de paciência e sofrimento. Suas patas dianteiras arqueavam-se nos joelhos; e numa delas, em que a mancha escura chegava até a metade da perna, havia um inchaço do tamanho de um punho fechado. As patas traseiras eram mais fortes, mas estavam muito roçadas nas ancas, onde por certo não tornaria o pelo a crescer. As quatro patas pareciam desmesuradamente largas em relação à delgadez do corpo. As costelas, embora fortes, estavam tão abertas e tensas, que a pele parecia estar pregada nos espaços intercostais. O peito e o lombo apresentavam sinais de antigos golpes e, na garupa, via-se uma ferida infectada; o tronco da cauda estava pelado e assinalavam-se as vértebras. Também na garupa, de cor castanha e perto da cauda, havia outra ferida, coberta de pelos brancos, do tamanho de uma palma de mão, que parecia produzida por mordedura, e uma cicatriz em forma de espátula. As patas de trás e a cauda estavam sempre sujas, por causa de seus constantes desarranjos intestinais. O pelo de todo o corpo embora curto, mantinha-se liso. No entanto, e a apesar da velhice repulsiva desse cavalo, um conhecedor afirmaria logo que, em outros tempos, fora um animal magnífico.
Um conhecedor diria, ainda, que só há na Rússia uma raça capaz de produzir ossatura tão ampla, tais cascos, pernas tão delgadas, pescoço tão bem colocado e, sobretudo, crânio tão perfeito, olhos tão grandes, negros e diáfanos, tais nós de veias no pescoço, junto à cabeça e uma pele e pelo tão finos. De fato, havia algo de majestoso na figura daquele cavalo, na terrível mescla de sinais repelentes da decrepitude com a expressão de aprumo e a serena consciência de sua beleza e de sua força.
Como ruína viva, permanecia de pé, em meio do prado coberto de orvalho, enquanto, a seu redor, se ouviam bufar, dar patadas e relinchar os potros novos da cavalhada dispersa.
CAPÍTULO III
Erguera-se o sol por cima do bosque e brilhava radioso, banhando de luz a relva e as sinuosidades do rio. O orvalho secava-se, formando grossas gotas. Aqui e ali, perto de um pequeno pântano e sobre o bosque, esfumavam-se os vapores matinais como tênue nuvenzita. Encrespavam-se as nuvens, mas ainda não se levantara o vento. Do outro lado do rio crescia centeio, verde ainda, e havia cheiro de vegetação fresca e de flores. Com voz rouca, um cuco cantava no bosque, e Nester, deitado de costas, contava quantos anos ainda lhe restariam de vida. Umas calhandras revoluteavam sobre o campo de centeio e o prado. Uma lebre tardia, surpreendida pela cavalhada, saltou para um lugar descoberto e refugiou-se ao pé de um arbusto, prestando atenção aos ruídos. Vaska ficara a dormir com a cabeça na relva e as éguas passaram diante dele, indo mais longe que antes. As velhas bufavam enquanto iam abrindo um sulco na relva e todas escolhiam lugares onde ninguém as pudesse incomodar. Mas já não comiam, apenas se deleitavam em mordiscar as ervas mais gostosas. Imperceptivelmente, toda a manada avançava na mesma direção. E, como sempre, a velha Kuldiba, gravemente à frente dos demais, indicava a possibilidade de ir mais adiante. A jovem Muchka, uma égua negra que tivera pela primeira vez um potrinho, relinchava sem parar e, com a cauda ao vento, chamava o filhote, que folgava a seu lado, de joelhos trêmulos. Uma égua jovem, chamada Lastochka, de cor baia escura e pelo liso e reluzente como se fosse de cetim, baixava a cabeça de modo tal que o negro topete sedoso lhe cobria a testa e os olhos, e brincava com a relva, arrancando-a jogando-a ao chão e pisoteando-a com os cascos úmidos de orvalho. Um dos filhotes maiores, inventor de um brinquedo, já elevara vinte e seis vezes a cauda curta, encrespada em trompa, caracoleando em volta da mãe, que pastava tranquilamente, pois já se acostumara com o caráter do filho, e só de vez em quando o fitava de soslaio, com grande olho negro. Um dos potrinhos menores, preto e cabeçudo, de topete encrespado entre as orelhas, e pequena cauda ainda meio de lado, tal como a tivera nas entranhas maternas, de orelhas tesas e vista fixa, imóvel, olhava o potro folgazão, talvez invejando-o ou talvez a perguntar para que fazia ele aquilo. Uns mamavam, empurrando com o focinho o ventre das mães; outros, sem saber por que, apesar de que as mães os chamassem, corriam desajeitadamente a trote em direção contrária, como se buscassem algo, e logo, sem razão aparente, detinham-se e prorrompiam em relinchos penetrantes e desesperados. Alguns estavam deitados, outros aprendiam a pastar ou se entretinham em coçar-se atrás da orelha com a pata traseira. Duas éguas prenhas estavam separadas do grupo, movendo lentamente as pernas, andando sem deixar de pastar. Via-se que todos respeitavam seu estado e que nenhum potro novo se atrevia a molestá-las. Se alguma potra travessa se atrevia a aproximar-se demasiado, um só movimento de orelhas ou de cauda era suficiente para fazer com que visse a impropriedade de sua conduta.
As potras de um ano de idade, que tinham as crinas cortadas, fingiam ser adultas e sérias; muito raramente saltavam ou se reuniam aos grupos alegres. Comiam a relva com atitude digna, arqueando os pescoços de cisne e meneando as caudas aparadas. Da mesma forma que as grandes, algumas se deitavam, se espojavam ou se coçavam mutuamente. O grupo mais alegre era formado pelos potros de dois e três anos e pelas éguas estéreis, que quase sempre andavam juntas. Entre elas se ouviam bufos, relinchos, saltos e grunhidos. Aproximavam-se umas das outras, colocavam a cabeça sobre as costas da companheira, farejavam-se, brincavam e, por vezes, sacudindo a cauda e levantando-a, corriam a trote ou a galope, com jeito altivo e presumindo diante das companheiras. A mais bonita e empreendedora desse grupo de potras era a travessa potranca baia. As demais a imitavam em qualquer coisa que fizesse e toda a manada a seguia a todos os lugares. Naquela manhã, sentia-se especialmente brincalhona. Inspirara-se-lhe a veia da alegria, como acontece com as pessoas. Depois de haver escarnecido do velho cavalo mosqueado, saíra trotando ao longo da água; em seguida, fingiu que se assustava; relinchou e correu, a toda velocidade, pelo prado, obrigando Vaska a correr atrás dela e das companheiras que a seguiam. Depois, entreteve-se comendo um pouco e espojando-se. Zombou das velhas, cortando-lhes o caminho; separou um potrinho da mãe e perseguiu-o, como se quisesse mordê-lo. A mãe, assutada, deixou de comer, e o potrinho gemia com voz penosa, mas a potranca nem sequer o tocou, limitando-se a fazer-lhe medo e dando com isso um espetáculo que suas companheiras contemplaram com prazer. Depois, ocorreu-lhe apaixonar um cavalinho que puxava um arado, do outro lado do rio, manejado por um camponês. A potra se deteve, levantou a cabeça com ar altivo, virando-a docemente de lado, sacudiu-se e relinchou com voz doce e delicada. Naquele relincho soava a zombaria, mas também havia sentimento e certa tristeza. Expressava desejo, aspiração e promessa de amor.
Ali a codorniz, correndo de um lado para outro, entre os juncais espessos, chama apaixonadamente seu amigo; ali o cuco e a calhandra cantam seu amor e as flores transmitem umas às outras, por meio do vento, o pólen aromático.
"Também sou moça, formosa e forte - dizia a potra em seu relincho - Mas ainda não me foi outorgado provar a doçura deste sentimento, nem sequer ainda me viu um só amante".
E esse relinchar, tão significativo, ressoou pelo prado e chegou até ao cavalinho, que ergueu as orelhas e se deteve. O mujique o fustigou, mas o cavalinho estava enfeitiçado por aquela voz distante e relinchou também. Irritou-se o camponês, puxou as rédeas e deu-lhe uma pancada tão forte na barriga que o animal continuou seu caminho sem ter podido terminar o relincho. Sentiu-se invadido pela doçura e pela tristeza enquanto chegavam à cavalhada, do distante campo de centeio, os sons de seu relincho apaixonado e da voz iracunda do mujique.
Se bastara o som daquela voz para impressionar o cavalinho a ponto de fazê-lo esquecer seu dever, que não teria acontecido se houvesse visto a bela e travessa potra que o chamara, com as ventas dilatadas, aspirando o ar como se algo a atraísse, vibrando em todo o corpo jovem e formoso?
Mas a égua moça não se deteve por muito tempo a pensar em suas impressões. Quando se extinguiu a voz do cavalinho, relinchou zombeteiramente e, baixando a cabeça, começou a escavar a terra com uma das patas, e a seguir foi despertar e encolerizar o cavalo mosqueado. Este era sempre a vítima e o bufão daquela juventude feliz. Faziam-no padecer mais do que as pessoas. Não fizera mal a uns nem a outros. As pessoas precisavam dele, pelo menos; por que, porém, o mortificavam aquelas éguas novas?
CAPÍTULO IV
Ele era velho e elas, novas. Ele era fraco e elas, bem nutridas. Ele estava sempre triste e elas, sempre alegres. Portanto, era ele um ser alheio, completamente diferente e não havia razão para terem pena dele. Os cavalos só costumam ter pena de si mesmos e, de vez em quando, só sentem piedade daqueles em cuja pele podem imaginar a si próprios; mas que culpa teria o cavalo mosqueado de ser velho, magro e feio? Parece que nenhuma. Contudo, segundo os cavalos, era culpado de tudo isso; segundo eles, só têm razão os que são fortes, jovens e felizes, os que têm tudo à sua frente, aqueles cujos músculos estremecem por causa de uma tensão inútil e cuja cauda se levanta em trompa. Talvez o cavalo mosqueado compreendesse isso e, nos momentos tranquilos, reconhecesse que a culpa era sua, que já havia vivido sua vida e que chegara a hora de pagar seu tributo. Mas, no fundo, era um cavalo e, com frequência, incapaz de reprimir sentimentos como o desgosto, a tristeza e a indignação ao contemplar esses jovens que o sentenciavam por uma coisa que também eles teriam de sofrer no fim da vida. Um sentimento aristocrático era também a causa daquele procedimento desapiedado. Cada uma daquelas potras descendia, por parte de pai ou de mãe, do célebre Smetanka; e o cavalo mosqueado era de procedência desconhecida. Era um cavalo adventício; haviam-no comprado, três anos antes, numa feira, por oitenta rublos em notas de banco.
A potra baia, como se estivesse dando um passeio, aproximou-se das próprias narinas do cavalo mosqueado e empurrou-o. Este já sabia do que se tratava; sem abrir os olhos, baixou as orelhas e mostrou os dentes. A potra virou as costas e fez como se lhe quisesse dar um coice. O cavalo mosqueado abriu os olhos e afastou-se. Já não tinha sono e começou a comer. A potra travessa aproximou-se de novo dele, seguida por suas companheiras. Uma destas, de dois anos de idade e muito estúpida, que sempre imitava a baia em tudo, ia também fazê-lo desta vez e, como ocorre em tais casos, passou do limite. Em geral, a égua baia aproximava-se do cavalo mosqueado, como se fosse fazer alguma coisa, e passava diante mesmo de seu focinho, sem dirigir-lhe a vista, de modo que ele não sabia se deveria irritar-se ou não; e aquilo era realmente divertido. Desta vez fez o mesmo, mas a que a seguia e que estava especialmente alegre empurrou o mosqueado com toda a desenvoltura. Este tornou a mostrar os dentes, relinchou e, com agilidade inesperada nele, lançou-se atrás dela e mordeu-lhe a anca. A égua respondeu dando forte coice nas fracas costelas do velho, que até emitiu um gemido surdo. Quis correr a persegui-la, mas logo mudou de parecer e se afastou, com suspiro profundo. Provavelmente, toda a juventude da cavalhada considerou como ofensa pessoal a insolência que o velho cavalo se permitira com relação à potra nova; durante o resto daquele dia não o deixaram pastar nem lhe deram um momento de descanso, de modo que até o cavalariço teve de intervir várias vezes para separá-los, sem poder compreender o que havia sucedido. O cavalo mosqueado estava tão ofendido que ele próprio se aproximou de Nester quando o velho se dispôs a recolher a manada e se sentiu mais feliz e tranquilo quando selado e montado.
Deus sabe o que pensaria ao levar às costas o velho Nester. Talvez pensasse, com amargura, na impertinente e cruel juventude, ou, com aquela altivez desdenhosa e silenciosa própria dos velhos, perdoasse seus ofensores; mas o caso é que não deixou suas reflexões transparecerem, até que regressaram à casa.
Naquela noite, chegaram uns parentes de Nester. Ao conduzir a cavalhada diante das isbás dos servos, notou um carro com um cavalo amarrado à frente da escadinha de sua casa. Apressou-se tanto em recolher a cavalhada que, sem desencilhar o cavalo mosqueado, deixou-o no pátio e, ordenando a Vaska que ele o fizesse, fechou a porta e foi ver seus parentes. Talvez por causa da ofensa feita à potra nova, bisneta de Smetanka, pelo "tinhoso inútil", de pais desconhecidos, comprado numa feira, que havia molestado o sentimento aristocrático de toda a cavalhada, ou talvez porque o cavalo mosqueado, tendo ao lombo a sela alta sem cavaleiro, oferecesse um aspecto estranho e fantástico para as éguas, o fato é que naquela noite sucedeu algo insólito na cavalariça. Todas as éguas, tanto as jovens como as mais velhas, perseguiram o cavalo mosqueado, mostrando os dentes e obrigando-o a correr de um lado para outro; e ouviram-se os coices que lhe davam nos flancos delgados, assim como sua pesada respiração. O cavalo já não podia suportar mais aqueles golpes, nem era capaz de evitá-los. Deteve-se em meio do pátio e sua cara expressou primeiro uma débil raiva senil e impotente e, depois, o desespero. Baixou as orelhas. E, subitamente, aconteceu algo que obrigou todos a ficarem quietos. Viazopurika, a mais velha das éguas, aproximou-se dele, cheirou-o e suspirou. O cavalo mosqueado suspirou também.
CAPÍTULO V
No centro do pátio, iluminado pela lua, via-se a figura alta do cavalo mosqueado e o arção saliente. Os cavalos, imóveis, permaneciam em seu redor, observando profundo silêncio, como se tivessem acabado de inteirar-se de algo extraordinário. E assim era, com efeito.
Eis aqui o que o cavalo lhes contou:
PRIMEIRA NOITE
"Sim, sou filho de Liubesni I e de Baba. Meu nome de linhagem é Mujique I. Sou Mujique I e, para os da rua, Kolstomer, assim apelidado pelo vulgo em razão de minha marcha ampla, que nunca teve igual em toda a Rússia. Não há no mundo um cavalo de sangue mais nobre que o meu. Eu nunca vos teria dito isso. Para quê? Nunca me teríeis reconhecido. Como até há pouco não me havia reconhecido Viazopurika, que esteve comigo em Krenovo. Sem o testemunho dela, não me acreditaríeis. Eu nunca vos teria dito isso. Não necessito da compaixão cavalar. Mas quisestes que eu o dissesse. Pois bem: sou aquele Kolstomer que os caçadores procuram em vão, o Kolstomer que conheceu pessoalmente o conde e que foi vendido por haver vencido o favorito dele, Liebed.
Quando nasci, não sabia o que significava a palavra mosqueado. Acreditava que era um cavalo comum. Recordo que a primeira observação que fizeram sobre minha pele nos surpreendeu profundamente, a mim e a minha mãe. Devo ter nascido de noite; já para a madrugada, bem lambido por minha mãe, estava de pé. Lembro que incessantemente desejava algo e que tudo me parecia muito estranho e simples ao mesmo tempo. Os estábulos ficavam num corredor largo e tépido, com portas de grades, que deixavam ver o exterior. Minha mãe me ofereceu as tetas, mas eu era tão ingênuo que tanto a empurrava com o focinho entre as patas dianteiras como no ventre. De repente, minha mãe se virou para a porta e, passando por cima de mim, afastou-se para um lado. O palafreneiro que tratava de nós contemplava-nos através das grades.
- A Baba pariu! - exclamou, abrindo o ferrolho; e, andando pela palha fresca, abraçou-me com as duas mãos. - Olha, Taras, é um potro mosqueado. Parece uma pega.
Soltei-me de seus braços, e caí de joelhos.
- Que diabrete! - disse o cavalariço.
Minha mãe ficou inquieta, mas não fez nada para defender-me. Limitou-se a suspirar profundamente e afastou-se um pouco. Chegaram outros cavalariços e puseram-se a examinar-me. Um deles correu a avisar o chefe do estábulo. Todos se riam de minhas manchas e me davam nomes estranhos. Nem mesmo minha mãe entendia o significado dessas palavras. Até então, não houvera em nossa linhagem um só cavalo de pele mosqueada. Não pensávamos que isso pudesse ser mau de qualquer forma. E já então todos louvavam minha constituição e minha força.
- Como é esperto! Não se pode segurá-lo! - disse o palafreneiro.
Pouco depois chegou o chefe das cavalariças e estranhou minha cor; pareceu até ficar desgostoso.
- A quem puxou esse monstro? O general não quererá deixá-lo nas cavalariças - disse ele. - Ah, Baba, boa coisa nos fizeste! - acrescentou, dirigindo-se a minha mãe. - Teria sido melhor que fosse calvo; mas mosqueado...
Minha mãe nada respondeu e, como sempre em tais casos, suspirou.
- A quem terá saído? Parece um mujique. Não podemos deixá-lo na cavalhada, seria uma vergonha. No entanto, é um bom cavalo - dizia o chefe, assim como todos os demais, enquanto me contemplavam.
Poucos dias depois, o general em pessoa veio ver-me. De novo, não sei por que, todos se horrorizaram e invectivaram minha mãe pela cor de minha pele.
- No entanto, é um bom cavalo, um cavalo muito bom - diziam todos os que me viam.
Até a primavera, ficamos separados, cada qual com sua mãe; e só algumas vezes, quando o sol derretia a neve do telhado dos estábulos, nos levavam ao grande pátio coberto de palha fresca. Ali conheci todos os meus parentes, tanto os próximos como os afastados. Ali vi como, por portas diferentes, saíam as éguas mais famosas daquele tempo, com seus rebentos. Entre elas se encontravam a velha Golanka, Muchka, a filha de Smetanka, Krasnuka e a hacaneia de sela Dobrokotika. Todas as celebridades daquela época se reuniam ali com seus filhos, passeavam ao sol, espojavam-se na palha fresca e cheiravam-se mutualmente, da mesma forma que os cavalos de hoje. Não esqueço até agora o aspecto que apresentava aquela eguada, cheia de potras formosas. Estranha-vos pensar que, em meu tempo, fui jovem e esperto, mas foi assim. Ali se encontrava também esta mesma Viazopurika, que então era uma potranca de um ano, simpática, alegre e cheia de vivacidade; mas direi, sem querer ofendê-la, que, embora aqui a considerem uma raridade de seu sangue, naquele estábulo era um dos piores exemplares. Ela mesma o confirmará.
Minha pele mosqueada, que tanto desagradava aos homens, era, em compensação, apreciada pelos cavalos. Todos me rodeavam e, admirados, brincavam comigo. Comecei a esquecer as palavras das pessoas a respeito de minha pele e sentia-me feliz. Mas não tardei a conhecer a primeira dor de minha vida, causada por minha própria mãe. Quando a neve começou a derreter-se, as codornizes piavam sob os beirais dos telhados e a primavera começou a sentir-se com mais força no ar; minha mãe transformou-se com relação a mim. Seu caráter mudou por completo. Ora, sem causa aparente, começava a brincar, correndo pelo pátio, coisa que não convinha em absoluto à sua idade; ora permanecia pensativa e relinchava; ora mordia e trocava coices com as companheiras. Às vezes, cheirava-me e fungava, com desgosto. Ou então, saia a tomar sol e apoiava a cabeça no pescoço de sua prima Kupchika, ficando a coçar-lhe o lombo por muito tempo, em atitude pensativa, sem deixar que me aproximasse de suas tetas. Um dia, o chefe das cavalariças ordenou que pusessem freio em minha mãe e levaram-na do estábulo. Minha mãe relinchou; respondi e quis acompanhá-la, mas nem sequer ela me fitou. Taras, o criado, agarrou-me no momento em que fechavam a porta atrás de minha mãe. Precipitei-me, derrubando-o sobre a palha, mas a porta estava fechada e só pude ouvir os relinchos de minha mãe, que se afastava. Já não me chamava e em sua voz se distinguia uma expressão completamente diferente. A seus relinchos responderam outros muito possantes; segundo soube depois, eram os de Dobri I, que, conduzido por dois cavalariços, ia ao seu encontro. Não me lembro como Taras saiu do estábulo; sentia-me demasiado triste. Pressentia que acabara de perder para sempre o amor de minha mãe. "E tudo isso, só por ser um cavalo mosqueado", pensava, recordando as palavras dos homens a respeito de minha pele. Foi tal a raiva que me invadiu que comecei a dar pancadas com a cabeça na parede do estábulo, até cair exausto e coberto de suor.
Ao fim de algum tempo, minha mãe voltou. Ouvia-a chegar a trote e aproximar-se do estábulo com passos diferentes. Abriram-lhe a porta; mal a reconheci, tanto se havia rejuvenescido e embelezado. farejou-me, fungou e começou a relinchar. Por sua expressão, notei que já não me queria. Falou-me de como Dobri era formoso e de quanto o amava. Aqueles encontros se repetiram e cada vez mais esfriavam minhas relações com a minha mãe.
Em breve nos deixaram sair ao prado. Então, conheci novas alegrias, que substituíram a perda do amor materno. Tinha amigas e companheiros; aprendemos juntos a comer a relva, a relinchar como os mais velhos e a galopar em volta de nossas mães, com a cauda erguida. Foi um período feliz. Tudo me era perdoado; todos me estimavam, me admiravam e eram condescendentes, fizesse eu o que fizesse; mas isso durou pouco. Não tardou a acontecer-me uma coisa terrível".
O cavalo mosqueado suspirou profundamente e afastou-se do grupo.
Amanhecera já desde algum tempo. As portas rangeram e entrou Nester. Os cavalos se separaram. O cavaleiro arranjou a sela do velho mosqueado e levou a cavalhada para fora.
CAPÍTULO VI
SEGUNDA NOITE
Depois de novamente recolhidos os cavalos, voltaram eles a reunir-se em redor do velho mosqueado.
"No mês de agosto, separaram-nos de nossas mães - disse o cavalo, continuando sua narrativa. - Senti pesar intenso. Via que minha mãe levava em suas entranhas meu irmão mais novo, o célebre Usane, e que eu já não era para ela o mesmo de antes. Não sentia ciúmes, mas tornava-me cada vez mais frio em relação a ela. Além disso, sabia que, ao separar-me de minha mãe, levar-me-iam ao departamento dos potros, onde estes eram encerrados em grupos de dois ou três e de onde saía para o ar livre, todos os dias, uma manada de potros novos. Fiquei com o potro Mili; era um cavalo de sela e mais tarde foi montado pelo imperador, sendo reproduzido em selos, gravuras e estátuas. Então, não passava de um filhote de pelo delicado e reluzente, pescoço de cisne e patas delgadas e retas. Sempre estava alegre e mostrava-se afetuoso e amável; sempre estava disposto a brincar, a lamber-se e a fazer pilhérias tanto com os cavalos como com as pessoas. Sem querer, tornamo-nos amigos, porque vivíamos juntos; e essa amizade se manteve durante toda a nossa adolescência. Era alegre e despreocupado; já naquela época começava a interessar-se pelo amor, brincava com as éguas jovens e zombava de minha inocência. Para grande infelicidade minha, quis imitá-lo, por amor-próprio; e muito depressa deixei que o amor me arrastasse. Esta inclinação precoce foi a causa de uma mudança importantíssima em meu destino. Acontece que me enamorei.
Viazopurika tinha um ano mais do que eu e éramos muito bons amigos; mas, para os fins de outono, observei que começava a evitar-me... Não contarei a triste história de meu primeiro amor; a própria Viazopurika deve lembrar-se de minha louca paixão, que terminou com uma mudança importantíssima em minha vida. Os cavalariços expulsaram Viazopurika e me deram uma sova. Conduziram-me a um estábulo especial, onde passei a noite inteira relinchando, como se pressentisse o acontecimento que iria ocorrer no dia seguinte.
De manhã, chegaram ao pátio do estábulo o general, o chefe das cavalariças, o palafreneiro e os ajudantes; e armou-se grande gritaria. O general ralhava com o chefe, que se desculpava, dizendo que ele não havia mandado que me soltassem e que os ajudantes o haviam feito por sua conta. O general ameaçou mandar açoitar a todos eles e disse que não poderiam ser conservados todos os potros. O chefe prometeu cumprir suas ordens. Depois, calaram-se e saíram dali. Não compreendi nada; mas notei que algo se tramava contra mim.
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No dia seguinte, deixei de relinchar para sempre e tornei-me o que sou agora. O mundo mudou completamente ante meus olhos. Nada me era agradável; fechei-me em mim mesmo e comecei a refletir. A princípio, tudo me pareceu odioso. Até deixei de comer, de beber e de andar. Nem sequer pensava em brincar. Às vezes, vinham-me desejos de caracolear, de galopar ou de relinchar; mas imediatamente se apresentava a terrível pergunta: "Para quê? Com que fim?" E minhas últimas forças me abandonavam.
Certa vez me tiraram à noite, quando a cavalhada regressava do prado. De longe avistei uma nuvem de poeira e os contornos confusos de nossas mães. Ouvi os relinchos alegres e o ruído dos cascos. Detive-me, embora o freio, puxado pelo criado que me levava, me ferisse a nuca; e fitei a cavalhada que se aproximava da mesma forma por que se fita a felicidade que se perdeu para sempre. As éguas aproximavam-se e pude distinguir, uma por uma, as silhuetas belas, majestosas, sãs e bem nutridas que eu conhecia. Algumas delas também me olharam. Já não sentia a dor que me produzia o freio que o criado puxava. Esqueci-me de minha condição e, sem querer, relinchei e corri a trote; mas meu relincho soou triste, lamentável e ridículo. As éguas não se riram de mim, mas notei que muitas desviavam a vista, por decoro. Ao que parece, eu lhes inspirava repulsa, dó, desgosto e, sobretudo, riso. Fazia-as rir o meu pescoço esquálido e inexpressivo, a minha cabeça enorme (durante aquele tempo eu havia emagrecido), minhas amplas patas sem garbo e meu porte estúpido ao empreender um leve trote em volta do criado, por hábito antigo. Ninguém respondeu a meu relincho e todos me viraram as costas. Logo compreendi tudo: compreendi até que ponto me tornara estranho para todos eles, e nem lembro sequer como voltei.
Já antes eu tivera certa tendência para a seriedade e a meditação, mas então sofri uma transformação definitiva. Meu pelo, que despertava desprezo tão estranho entre as pessoas, minha desgraça inesperada e, além disso, minha situação especial na cavalhada, que pressentia, mas que não conseguia explicar a mim mesmo, obrigaram-me a concentrar-me ainda mais dentro de meu íntimo. Refleti sobre a injustiça dos homens, que me censuravam por causa da cor da pele; sobre a inconstância do amor materno e, em geral, do amor feminino, que dependia de certas circunstâncias físicas. Principalmente, meditei sobre as particularidades daquele estranho animal a que chamam gênero humano e a que estamos tão estreitamente ligados, e sobre as particularidades a que se devia minha condição, que pressentia mas não chegava a entender. A importância dessa particularidade e das propriedades humanas sobre as quais ela se baseava foi-me revelada pelo acontecimento seguinte.
Foi no inverno, na época das festas. Durante todo o dia haviam-me deixado sem comer e sem beber. Posteriormente, inteirei-me de que isso acontecera porque o palafreneiro se embriagara. O chefe dos estábulos veio ver-me e, ao verificar que eu não tinha ração, começou a invectivar o criado (que não se encontrava ali) com palavras grosseiras; depois, saiu. No dia seguinte, o palafreneiro, acompanhado de outro criado, entrou no estábulo para dar-me a ração. Notei que estava especialmente pálido e triste. Sobretudo, em suas largas costas notava-se algo de significativo, que despertava compaixão. Atirou o feno por cima da grade, com gesto de aborrecimento e, quando me aproximei, com a intenção de por a cabeça em seu ombro, assestou-me um murro tão forte, em pleno focinho, que retrocedi. Depois, deu-me um pontapé na barriga.
- Se não fosse por causa desse tinhoso não teria acontecido nada! - exclamou.
- Por que dizes isso? - perguntou o outro criado.
- Falta de cuidado: o chefe não inspeciona os cavalos do conde. Mas o seu potro, vem visitá-lo duas vezes por dia.
- Deram-lhe esse mosqueado de presente?
- O diabo sabe se o deram ou se o venderam. O fato é que podemos matar de fome os cavalos do conde; ele não se preocupa com isso, em absoluto. Atreva-se alguém, no entanto, a deixar sem ração o seu potro. "Deita-te", disse-me ele. E começaram a acoitar-me. Não parece cristão. Tem mais pena dos animais que das pessoas. Deve ser herege. O bárbaro contou pessoalmente os açoites que me davam. Nem mesmo o general manda açoitar assim. Fiquei com as costas todas lanhadas.
Compreendi muito bem o que dizia a respeito dos açoites e do cristianismo. Mas ficou completamente obscura para mim a palavra seu, pela qual pude deduzir que estabeleciam um vínculo a ligar-me ao chefe das cavalariças. Então, não pude compreender de modo algum em que consistiria tal vínculo. Só muito depois, quando me separaram dos demais cavalos, é que expliquei a mim mesmo o que aquilo representava. Naquela época, eu não era capaz de entender a significação do fato de ser eu propriedade de um homem. As palavras "meu cavalo", referindo-se a mim, a um cavalo vivo, pareciam-me tão estranhas como as palavras "minha terra", "meu ar", "minha água".
No entanto, elas exerceram sobre mim enorme influência. Sem cessar pensava nelas e só depois de longo contato com os seres humanos pude explicar-me a significação que, afinal, lhes é atribuída. Querem dizer o seguinte: os homens não dirigem a vida com fatos, mas com palavras. Não os preocupa tanto a possibilidade de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, como a de falar de objetos diferentes mediante palavras convencionais. Essas palavras, que consideram muito importantes, são, sobretudo, meu ou minha, teu ou tua. Aplicam-nas a todas as espécies de coisas e de seres, inclusive à terra, ao seus semelhantes e aos cavalos.
Além disso, convencionaram que uma pessoa só pode dizer meu a respeito de uma coisa determinada. E aquele que puder aplicar a palavra "meu" a um número maior de coisas, segundo a convenção feita, considera-se a pessoa mais feliz. Não sei por que as coisas são desse modo; mas sei que são assim. Durante muito tempo procurei compreender isso, supondo que daí viria algum proveito direto; mas verifiquei que isso não era exato.
Muitas pessoas das que me chamavam seu cavalo nem mesmo me montavam; mas outras o faziam. Não eram elas as que me davam de comer, mas outros estranhos. Também não eram as pessoas que me faziam bem, mas os cocheiros, os veterinários e, em geral, pessoas desconhecidas. Posteriormente, quando ampliei o círculo de minhas observações, convenci-me de que o conceito de meu - e não só com relação a nós, cavalos - não tem qualquer outro fundamento além de um baixo instinto animal, que os homens chamam sentimento ou direito de propriedade. O homem diz "minha casa", mas nunca vive nela; preocupa-se só em construí-la e mantê-la. O comerciante diz "minha loja", ou "meus tecidos", por exemplo, mas não faz suas roupas com os melhores tecidos que vende na loja. Há pessoas que chamam sua uma extensão de terra e nunca a viram nem passaram por ela. Há outras que dizem serem suas certas pessoas que nunca viram nesta vida e a única relação que têm com elas consiste em causar-lhes dano. Há homens que chamam de suas certas mulheres, e estas convivem com outros homens. As pessoas não procuram, em sua vida, fazer o que consideram o bem, e sim a maneira de poder dizer do maior número possível de coisas: é meu. Agora estou persuadido de que nisso reside a diferença essencial entre nós e os homens. Portanto, sem falar de outras prerrogativas nossas, só por este fato podemos dizer, com segurança, que, entre os seres vivos, nos encontramos em nível mais alto que o dos homens. A atividade dos homens, pelo menos a dos homens com quem tenho tratado, se traduz em palavras, ao passo que a nossa se manifesta em fatos. Assim, pois, o chefe das cavalariças açoitou o criado porque havia adquirido o direito de chamar-me seu cavalo. Este descobrimento, que profundamente me consternou, assim como os conceitos que minha pele despertara entre as pessoas e a volubilidade de minha mãe, obrigaram-me a tornar-me o cavalo sério e pensativo que sou.
Sentia-me três vezes desgraçado: meu pelo era mosqueado, haviam-me castrado e os homens imaginavam que eu não pertencia a Deus nem a mim mesmo, como é próprio de todo ser vivente, e sim, a um cavalariço.
Disto se derivaram numerosas consequências. A primeira delas foi que me separaram dos outros cavalos, alimentaram-me melhor e me ajaezaram antes do que em geral costuma fazer-se. Ajaezaram-me, pela primeira vez, aos dois anos de idade. Lembro-me de que o chefe das cavalariças, que imaginava que eu lhe pertencia, em companhia de uma série de criados, começou a pôr-me arreios, esperando que eu me encabritasse ou me rebelasse. Amarraram-me com cordas, para introduzir-me entre varais. Puseram-me às costas uns arneses em forma de cruz, que ataram às varas, para que eu não desse coices; e eu só esperava uma oportunidade de demonstrar-lhes meu amor ao trabalho. Assombraram-se ao ver que me portava como um cavalo velho. Passearam comigo e fui-me exercitando a correr a trote. Cada dia que se passava, maiores eram os meus progressos, de maneira que, três meses depois, o próprio general e muitos outros louvaram minha andadura. Mas, coisa estranha: como imaginavam que eu não me pertencia a mim mesmo, e sim ao chefe dos estábulos, minhas andaduras tinham aplicações muito diferentes das dos meus companheiros.
A meus irmãos, os potros, faziam com que corressem e cronometravam suas corridas. Examinavam-nos detidamente, atrelavam-nos a carruagenzinhas douradas e os cobriam com ricas gualdrapas. Eu, porém, puxava a carruagem comum do cavalariço, quando ele ia tratar de seus assuntos em Chesmene e outras aldeias. Tudo isto era devido à minha pele e, sobretudo, a que, na sua opinião, eu não pertencia ao conde, mas ao chefe dos estábulos.
Amanhã, se ainda vivermos, contar-vos-ei a consequência principal que teve para mim o direito de propriedade que o chefe dos estábulos se atribuía".
Durante todo aquele dia, os cavalos trataram Kolstomer com respeito. Mas o trato que Nester lhe dispensou foi tão grosseiro como sempre. O cavalinho do mujique, ao aproximar-se a cavalhada, relinchou; e a jovem égua baia tornou a exibir sua coqueteria.
CAPÍTULO VII
TERCEIRA NOITE
Saiu a lua e seu fino alfanje iluminou a figura de Kolstomer, que permanecia no meio do pátio. Os cavalos se agruparam à sua volta.
"A consequência principal e extraordinária de não pertencer eu ao conde nem a Deus, mas ao chefe das cavalariças - continuou o velho mosqueado - foi que aquilo que em geral constitui o nosso maior mérito, isto é, a marcha rápida, deu motivo a que me expulsassem da cavalhada. Um dia, faziam provas com Liebed, e o cavalariço, que chegava de chesmene montado em mim, aproximou-se da pista. Liebed passou junto de nós; corria bem, mas bamboleava-se e não tinha aquela pureza de movimentos que eu adquirira ao exercitar-me. Instantaneamente, ao contacto de uma pata com o chão, eu levantava a outra, sem fazer o menor esforço em vão, aproveitando-me disso para correr para a frente. Quando Liebed passou diante de nós, corri para a pista e o chefe das cavalariças não me reteve.
- Querem que experimentemos o meu mosqueado? - gritou.
E, quando Liebed chegou por segunda vez perto de mim, o cavalariço soltou-me. Liebed já havia tomado carreira e, por isso, fiquei para trás na primeira volta, mas, na segunda, fui recuperando terreno, alcancei-o e passei à sua frente. Fizeram outra prova e o resultado foi idêntico. Eu era melhor corredor. Isto horrorizou a todos. Decidiram vender-me quanto antes e, para quanto mais longe, melhor, para que nem sequer se ouvisse falar de mim. "Se o conde souber disso, passaremos maus bocados", diziam. E venderam-me a um traficante de cavalos.
Com ele estive pouco tempo. Comprou-me um hussardo, que fora lá a negócios de remonta. Tudo aquilo era tão injusto e tão cruel que me alegrei quando me afastaram de Krenovo, separando-me em definitivo de tudo quanto me era agradável e querido. Permanecendo com a cavalhada eu sofria demasiado. Aos outros esperavam o amor, as honrarias, a liberdade; a mim, só o trabalho e as humilhações, as humilhações e o trabalho, até o fim de minha vida. Por quê? Por que eu era mosqueado e porque, em razão disso, tinha de pertencer a alguém".
Naquela noite, Kolstomer não pôde prosseguir sua narrativa. Aconteceu um fato que semeou agitação entre os cavalos. Rupchika, uma potra prenhe, que escutara o relato desde o início, virou-se de repente e dirigiu-se com lentidão para debaixo do telhado, onde se pôs a gemer tão fortemente que chamou a atenção de todos; depois, deitou-se, levantou-se e tornou a deitar-se. As éguas velhas compreenderam de que se tratava, mas as jovens se inquietaram e, abandonando o cavalo mosqueado, rodearam a enferma. Para o amanhecer, havia um potro novo, que se bamboleava nas perninhas. Nester chamou o criado. Levaram a égua e o potrinho para o estábulo e os demais foram para o prado.
CAPÍTULO VIII
QUARTA NOITE
Ao anoitecer, quando as portas se fecharam e tudo ficou em silêncio, o mosqueado assim continuou:
"Pude fazer múltiplas observações a respeito das pessoas e dos cavalos durante a época em que fui passando de dono para dono. Dois amos foram os que me tiveram por mais tempo: o oficial de hussardos, que era um príncipe; e depois uma velha, que vivia em Nikolai Ivavleni.
Com o hussardo passei os melhores dias de minha vida.
Embora tenha sido ele a causa de minha ruína, embora não tivesse estima a ninguém, eu o estimava e estimo, precisamente por isso. Agradava-me ver que ele era elegante, feliz e rico e que, por isso mesmo, a ninguém amava. Compreendeis esse elevado sentimento cavalar. Sua frieza, sua crueldade e minha dependência dele emprestavam força singular a meu afeto. E, em meus bons tempos, pensava: "Mata-me, extenua-me; sentir-me-ei tanto mais feliz".
Comprou-me do traficante de cavalos, que por sua vez me adquirira do cavalariço por oitocentos rublos. Elogiou-me, porque ninguém tinha cavalos mosqueados. Foi minha época melhor. O hussardo tinha uma amante. Soube disso porque todos os dias eu o levava à casa dela e, às vezes, tinha que levar os dois. A amante era muito bela, o hussardo era distinto e também o era seu cocheiro. Por isso eu queria bem a todos. E vivia a meu gosto. Minha vida transcorria da maneira seguinte: de manhã, o criado vinha limpar-me. Era um moço novo, que procedia de família camponesa. Abria a porta, para que saísse o bafo; tirava o esterco, removia as gualdrapas dos cavalos e começava a raspar-me o corpo com escovas, brossa e almofaça. Eu, de brincadeira, mordiscava-lhe a manga e batia com as patas no chão. Depois, levavam-nos, uns após os outros, a umas tinas de água fria; e o rapaz admirava minha pele mosqueada, minhas patas retas "como umas flechas", meus cascos largos e meu lombo lustroso, "sobre o qual se podia dormir". Enfiava feno pelas grades da porta e colocava aveia na manjedoura de carvalho. Depois, vinha Feofane, o cocheiro principal.
O amo e o cocheiro se pareciam. Ambos eram valentes e não gostavam de ninguém, a não ser de si mesmos; por isso, todos os apreciavam. Feofane costumava usar camisa vermelha e calças de feltro. Gostava de vê-lo chegar, nos dias de festa ,com os cabelos untados de brilhantina. Costumava exclamar: "Então, não te lembras de mim?" E empurrava-me com o cabo do forcado, mas sem fazer-me dano, só para pilheriar. Eu compreendia imediatamente; agachava as orelhas e rangia os dentes. Havia um potro preto que formava parelha com outro. De noite, também me atrelavam com ele. Chamava-se Polkane, não entendia as brincadeiras e era mau como um demônio. No estábulo, permanecíamos um ao lado do outro e ele me atormentava seriamente. Feofane não lhe tinha medo. Costumava aproximar-se dele claramente e soltar um grito; o potro parecia disposto a matá-lo, mas Feofane esquivava-se e conseguia lançar-lhe a corda ao pescoço. Uma vez, tomamos ambos a rédea nos dentes, em Kuznietski. Mas nem o amo nem o cocheiro se assustavam; ambos riram, gritaram às pessoas que se afastassem e depois retomaram as rédeas para que não atropelássemos ninguém.
Servindo ao hussardo, perdi minhas melhores faculdades e a metade de minha vida. Ali comecei a ressentir-me das pernas. Mas, apesar disto, foi a melhor época de minha existência. Às doze horas costumavam atrelar-nos, depois de nos untarem os cascos e de nos refrescarem o topete e as crinas.
O trenó era de junco trançado e tapizado de veludo: os arneses tinham pequenas fivelas de prata e as rédeas eram de seda.
Os arneses ajustavam-se tão bem que, quando estávamos prontos e encilhados, não se podia distinguir onde terminavam eles e onde começava o cavalo. Costumavam atrelar-me num telheiro. Chegava Feofane - que tinha as cadeiras mais largas que os ombros - com um cinturão vermelho que lhe chegava quase debaixo dos braços; examinava os arreios, sentava-se e, depois de ajeitar o cafetã, dizia umas palavras por pilhéria, preparava o chicote apenas por formalidade, pois quase nunca me fustigava e exclamava: "Andemos". Saíamos pela porta da cocheira; a cozinheira, que ia esvaziar o balde, parava no umbral; e os homens que traziam lenha ao pátio olhavam-nos com os olhos esbugalhados. Dávamos uma voltazinha e parávamos. Então chegavam os lacaios e os outros cocheiros, que se punham a falar. Assim esperávamos todos, por vezes, até três horas seguidas, junto à porta da casa, dando de vez em quando um pequeno passeio e detendo-nos de novo. Finalmente, ouvia-se barulho junto à porta; saía correndo o encanecido e barrigudo Tikone, vestido de fraque e ordenava: "A carruagem!" Então não havia a maneira estúpida de gritar: "Para a frente!", como se eu não soubesse que se deve andar para adiante e não para trás. Feofane estalava a língua. Aproximávamo-nos da escada e aparecia o patrão, ao mesmo tempo displicente e apressado, como se nada houvesse de surpreendente em Feofane, ou nos cavalos. O cocheiro estirava os braços e curvava as costas a ponto de parecer impossível que os mantivesse assim por muito tempo. O príncipe trajava barretina e um capote de pele de castor que lhe cobria o belo rosto corado, de sobrancelhas negras, que nunca deveria encobrir-se. Fazendo tilintar o sabre e as esporas, caminhava pelo tapete, como se tivesse pressa, sem prestar atenção a mim e a Feofane, quando todos nos admiravam. Ao chegar à escada, eu sacudia a cabeça e minhas finas crinas, saudando o príncipe. Quando estava de bom humor, ele pilheriava com Feofane; e este, virando levemente a cabeça e sem baixar os braços, fazia um sinal imperceptível com as rédeas, que eu entendia. Empreendia a marcha, estremecendo em cada músculo e lançando a neve suja sob a parte dianteira do trenó. Também não havia naquele tempo o costume tolo de gritar: "Eh!", como se o cocheiro sentisse alguma dor; mas só "Cuidado!" Feofane gritava: "Atenção! Cuidado!" e as pessoas se afastavam, detinham-se e, virando o pescoço, contemplavam o formoso cavalo, assim como o patrão e o cocheiro, todos distintos.
CAPÍTULO PRIMEIRO
A abóbada celeste se alteava, a aurora se estendia, o orvalho de um prateado fosco se tornava mais branco, a lua minguante ia perdendo vida e o bosque adquiria sonoridades. A gente já se levantava e, no estábulo da casa senhorial, começavam a ouvir-se, cada vez mais frequentes, os bufidos, os rumores de palha remexida e até mesmo os relinchos, irritados e friorentos, dos cavalos que, reunidos, pareciam brigar por causa de alguma coisa.
- Olá! Está quase na hora! Estão com fome? - exclamou o velho cavalariço, abrindo as portas rangentes do estábulo. - Aonde vais? - gritou, ameaçando uma égua que se havia adiantado.
O cavalariço Nester, com um casaco apertado por uma correia, levava o chicote ao ombro e o pão, enrolado numa toalha, enfiado na cintura. Nas mãos tinha uma sela e um freio.
Os cavalos não se assustaram em absoluto nem os ofendeu o tom zombeteiro. Mostraram-se indiferentes e afastaram-se da porta sem pressa. Só uma velha égua baia, obscura e de grandes crinas, baixou as orelhas e virou-se de costas, rapidamente. Então, uma potranca, que estava mais distante e nada tinha a ver com o assunto, relinchou e empurrou sua vizinha.
- Eh! - tornou a gritar o cavalariço em tom mais alto e mais ameaçador do que antes, dirigindo-se ao fundo do estábulo.
De todos os cavalos que ali se encontravam (havia cerca de uma centena), o que mostrava menos impaciência era um cavalo mosqueado, que permanecia solitário a um canto, com os olhos caídos, lambendo um tronco de carvalho. Não se sabe que gosto achava nele, mas, enquanto o fazia, sua expressão era séria e pensativa.
- Basta de mimos! - exclamou o cavalariço, no mesmo tom de antes, e aproximou-se dele, deixando sobre um monte de esterco a sela e uma manta suja.
O cavalo mosqueado deixou de lamber o tronco e, ficando imóvel, fitou Nester por longo tempo. Não se riu, nem se aborreceu, nem sequer franziu a testa; limitou-se a suspirar profundamente e a virar a cabeça. O cavalariço rodeou-lhe o pescoço com os braços e pôs-lhe o freio.
- Por que suspirar? - perguntou.
O cavalo agitou a cauda, como se dissesse: "Não é por coisa alguma, Nester". O cavalariço cobriu-lhe o lombo com a manta e colocou a sela. O cavalo baixou as orelhas, expressando, ao que parece, seu descontentamento, e por isso Nester chamou-o de inútil e apertou-lhe a cilha. Então, o cavalo se inflou, mas o cavalariço enfiou-lhe um dedo na boca e bateu-lhe com o joelho no ventre, de modo que o animal se viu obrigado a expirar o ar. Apesar disso, baixou as orelhas e até virou a cabeça enquanto o homem lhe colocava a rédea. Bem sabia que isso não lhe serviria de nada, mas achava necessário manifestar que aquilo lhe era desagradável e que sempre o demonstraria. Quando ficou selado, adiantou a pata esquerda e começou a mascar o freio, não se sabe por que motivo, pois já era tempo de que soubesse que um freio não pode ter sabor algum.
Nester montou, com ajuda do estribo curto, desenrolou o chicote, libertou as abas do casaco, sentou-se na sela com esse estilo próprio dos cocheiros, caçadores e cavalariços e sacudiu as rédeas. O cavalo ergueu a cabeça, demostrando que estava disposto a ir onde lhe ordenassem, mas não se moveu do lugar. Sabia que Nester, antes de sair montado nele, teria de dizer muitas coisas, aos gritos, como, por exemplo, dar ordens a outro cavalariço, Vaska, e aos cavalos. De fato, Nester começou a gritar:
- Vaska, Vaska! Soltaste os cavalos? Que fazes, estúpido? Eh! Estás dormindo? Abre, para que as éguas saiam primeiro.
Rangeram as portas e Vaska, semi-adormecido, mal-humorado e segurando um cavalo pelas rédeas, afastou-se para um lado a fim de deixar os animais passarem. Começaram a desfilar, pisando a palha com cuidado e cheirando-a, éguas jovens, potros de crinas cortadas, potrinhos de mama e éguas grávidas, que atravessavam as portas passando as barrigas com precaução. As potras se juntavam de duas em duas e até de três em três, pondo a cabeça sobre o lombo das companheiras e apressando-se em sair, com o que de cada vez recebiam invectivas dos cavalariços. Os de mama às vezes se enfiavam entre as patas das mães de outros e relinchavam sonoramente respondendo à chamada das suas.
Uma potra muito travessa, mal se viu fora, virou a cabeça e pôs-se a dar coices e a relinchar; no entanto, não se atreveu a passar à frente da velha égua cinzenta Kuldiba, que, como sempre, ia à frente da eguada com expressão grave, andar pesado e balançando a barriga. Em poucos minutos, o estábulo, tão animado até pouco antes, ficou triste e vazio; erguiam-se melancólicos os postes do telheiro e só se via a palha pisoteada e revolvida de esterco. Por muito acostumado que estivesse a esse espetáculo, o cavalo mosqueado sentiu uma impressão penosa. Como se fizesse uma saudação, inclinou e levantou de leve a cabeça, suspirou até onde o permitia a cilha que lhe cingia o ventre e, movendo as patas intumescidas, seguiu atrás da égua, levando ao lombo ossudo o velho Nester.
"Sei que, quando sairmos pelo caminho, ele fará fogo e acenderá seu cachimbo de pau com enfeites de cobre, que traz preso a uma corrente" - pensou o cavalo. - "Isto me alegra, porque, de manhã cedo, quando ainda há orvalho, esse cheiro me agrada e me recorda muitas coisas gratas; só o que me incomoda é que o velho, quando está de cachimbo entre os dentes, fica fanfarrão, imagina que é personagem importante e sempre se senta de lado, machucando-me. Mas, tanto faz! Não é novidade, para mim, sofrer a fim de satisfazer o prazer dos outros. Que o pobre faça castelos! Só os pode fazer quando está sozinho, quando ninguém o vê. Assim, que monte de lado!", continuou a refletir o cavalo, enquanto avançava pelo meio do caminho, pisando cautelosamente com as patas curvadas.
CAPÍTULO II
Tendo levado a eguada para junto do rio, onde devia pastar, Nester apeou-se e tirou os arreios do cavalo. Os animais foram-se dispersando lentamente, pelo prado não pisado, coberto de orvalho e de um bafo que subia tanto da terra como do rio, o qual ali fazia uma volta.
Depois de tirar as rédeas do cavalo mosqueado, Nester coçou-lhe o pescoço e ele fechou os olhos, em sinal de agradecimento e de prazer.
- O velho gosta disso - murmurou Nester.
- Na verdade, o cavalo não gostava daquilo; fingia, por delicadeza. Por isso movera a cabeça, em sinal de aprovação. Logo, de modo completamente inesperado e sem motivo algum, Nester, supondo provavelmente que uma familiaridade excessiva poderia dar ideia equívoca a respeito de sua importância, empurrou a cabeça do cavalo e, brandindo a rédea, golpeou-lhe as pernas delgadas; e, sem dizer nada, foi sentar-se num tronco, no alto da colina, onde em geral costumava instalar-se.
Esse procedimento entristeceu o cavalo mosqueado, mas aparentou indiferença e, movendo a cauda rala e farejando algo, dirigiu-se para o rio, arrancando de passagem algumas ervas, só para distrair-se. Sem prestar atenção ao que faziam a seu redor as éguas jovens, os potros e potrinhos, que se alegravam com a manhã, e sabendo que o mais conveniente à sua saúde e sobretudo a seus anos era beber em jejum e comer depois, escolheu um lugar onde a margem era mais plana, fincou os cascos e esporões na água, enfiou nela o focinho e começou a beber aos sorvos, através dos lábios fendidos, movendo as ancas e agitando com prazer a cauda, de tronco ralo.
Uma égua baia, que sempre enraivecia o velho e lhe causava toda espécie de desgostos, aproximou-se dele andando pelo rio, como se por necessidade, mas realmente com o propósito de turvar-lhe a água diante do focinho. Mas o cavalo mosqueado já havia bebido bastante e, como se não notasse a intenção da égua, tirou tranquilamente, uma após a outra, as patas afundadas no lodo, sacudiu a cabeça e, afastando-se dos jovens, foi pastar. Esteve comendo durante três horas seguidas, quase sem parar em absoluto, mudando somente a posição das patas e tratando de não pisar a relva inutilmente. Depois de ter-se saciado a ponto de se lhe prender o ventre, como um saco, às costelas magras, deitou-se sobre as patas doloridas, buscando o modo por que menos lhe doessem, sobretudo a da direita, que era a mais fraca, e dormiu.
Existe a velhice majestosa, a repulsiva, assim como a velhice lamentável. Também há a majestosa e a repulsiva unidas. A do velho cavalo mosqueado era precisamente deste último gênero.
Era alto; media pelo menos dois archines e três verchki. Seu pelo era mosqueado de preto; ou antes, fora assim, pois na atualidade as manchas negras se haviam tornado de cor castanha suja. Sua pele consistia de três manchas: uma, na cabeça, estendendo-se até metade do pescoço e com uma calva irregular junto do nariz; as grandes crinas eram em parte brancas e em parte castanhas. A segunda cobria-lhe o flanco direito até a metade do ventre; a terceira, à garupa, abarcava a parte superior da cauda, descendo até metade das ancas. O resto da cauda era branco e matizado. A grande cabeça ossuda, com profundas cavidades sobre os olhos e com o lábio inferior, outrora preto, caído e fendido, pendia pesadamente do pescoço curvo e magro, que parecia de pau. O beiço caído deixava ver a língua pretuça, mordida de um lado, e os restos de uns dentes amarelentos e cariados. As orelhas, uma das quais estava torta, pendiam de ambos os lados da cabeça, e só de vez em quando se levantavam com indolência, para afugentar as pesadas moscas. Uma grande mecha do topete caía-lhe por trás de uma orelha; a testa nua estava afundada e rugosa e a pele tombava, formando bolsas. No pescoço e na cabeça, as veias se entrelaçavam, fazendo nós que se contraíam ao menor contacto com as moscas. Sua expressão era severa, concentrada e cheia de paciência e sofrimento. Suas patas dianteiras arqueavam-se nos joelhos; e numa delas, em que a mancha escura chegava até a metade da perna, havia um inchaço do tamanho de um punho fechado. As patas traseiras eram mais fortes, mas estavam muito roçadas nas ancas, onde por certo não tornaria o pelo a crescer. As quatro patas pareciam desmesuradamente largas em relação à delgadez do corpo. As costelas, embora fortes, estavam tão abertas e tensas, que a pele parecia estar pregada nos espaços intercostais. O peito e o lombo apresentavam sinais de antigos golpes e, na garupa, via-se uma ferida infectada; o tronco da cauda estava pelado e assinalavam-se as vértebras. Também na garupa, de cor castanha e perto da cauda, havia outra ferida, coberta de pelos brancos, do tamanho de uma palma de mão, que parecia produzida por mordedura, e uma cicatriz em forma de espátula. As patas de trás e a cauda estavam sempre sujas, por causa de seus constantes desarranjos intestinais. O pelo de todo o corpo embora curto, mantinha-se liso. No entanto, e a apesar da velhice repulsiva desse cavalo, um conhecedor afirmaria logo que, em outros tempos, fora um animal magnífico.
Um conhecedor diria, ainda, que só há na Rússia uma raça capaz de produzir ossatura tão ampla, tais cascos, pernas tão delgadas, pescoço tão bem colocado e, sobretudo, crânio tão perfeito, olhos tão grandes, negros e diáfanos, tais nós de veias no pescoço, junto à cabeça e uma pele e pelo tão finos. De fato, havia algo de majestoso na figura daquele cavalo, na terrível mescla de sinais repelentes da decrepitude com a expressão de aprumo e a serena consciência de sua beleza e de sua força.
Como ruína viva, permanecia de pé, em meio do prado coberto de orvalho, enquanto, a seu redor, se ouviam bufar, dar patadas e relinchar os potros novos da cavalhada dispersa.
CAPÍTULO III
Erguera-se o sol por cima do bosque e brilhava radioso, banhando de luz a relva e as sinuosidades do rio. O orvalho secava-se, formando grossas gotas. Aqui e ali, perto de um pequeno pântano e sobre o bosque, esfumavam-se os vapores matinais como tênue nuvenzita. Encrespavam-se as nuvens, mas ainda não se levantara o vento. Do outro lado do rio crescia centeio, verde ainda, e havia cheiro de vegetação fresca e de flores. Com voz rouca, um cuco cantava no bosque, e Nester, deitado de costas, contava quantos anos ainda lhe restariam de vida. Umas calhandras revoluteavam sobre o campo de centeio e o prado. Uma lebre tardia, surpreendida pela cavalhada, saltou para um lugar descoberto e refugiou-se ao pé de um arbusto, prestando atenção aos ruídos. Vaska ficara a dormir com a cabeça na relva e as éguas passaram diante dele, indo mais longe que antes. As velhas bufavam enquanto iam abrindo um sulco na relva e todas escolhiam lugares onde ninguém as pudesse incomodar. Mas já não comiam, apenas se deleitavam em mordiscar as ervas mais gostosas. Imperceptivelmente, toda a manada avançava na mesma direção. E, como sempre, a velha Kuldiba, gravemente à frente dos demais, indicava a possibilidade de ir mais adiante. A jovem Muchka, uma égua negra que tivera pela primeira vez um potrinho, relinchava sem parar e, com a cauda ao vento, chamava o filhote, que folgava a seu lado, de joelhos trêmulos. Uma égua jovem, chamada Lastochka, de cor baia escura e pelo liso e reluzente como se fosse de cetim, baixava a cabeça de modo tal que o negro topete sedoso lhe cobria a testa e os olhos, e brincava com a relva, arrancando-a jogando-a ao chão e pisoteando-a com os cascos úmidos de orvalho. Um dos filhotes maiores, inventor de um brinquedo, já elevara vinte e seis vezes a cauda curta, encrespada em trompa, caracoleando em volta da mãe, que pastava tranquilamente, pois já se acostumara com o caráter do filho, e só de vez em quando o fitava de soslaio, com grande olho negro. Um dos potrinhos menores, preto e cabeçudo, de topete encrespado entre as orelhas, e pequena cauda ainda meio de lado, tal como a tivera nas entranhas maternas, de orelhas tesas e vista fixa, imóvel, olhava o potro folgazão, talvez invejando-o ou talvez a perguntar para que fazia ele aquilo. Uns mamavam, empurrando com o focinho o ventre das mães; outros, sem saber por que, apesar de que as mães os chamassem, corriam desajeitadamente a trote em direção contrária, como se buscassem algo, e logo, sem razão aparente, detinham-se e prorrompiam em relinchos penetrantes e desesperados. Alguns estavam deitados, outros aprendiam a pastar ou se entretinham em coçar-se atrás da orelha com a pata traseira. Duas éguas prenhas estavam separadas do grupo, movendo lentamente as pernas, andando sem deixar de pastar. Via-se que todos respeitavam seu estado e que nenhum potro novo se atrevia a molestá-las. Se alguma potra travessa se atrevia a aproximar-se demasiado, um só movimento de orelhas ou de cauda era suficiente para fazer com que visse a impropriedade de sua conduta.
As potras de um ano de idade, que tinham as crinas cortadas, fingiam ser adultas e sérias; muito raramente saltavam ou se reuniam aos grupos alegres. Comiam a relva com atitude digna, arqueando os pescoços de cisne e meneando as caudas aparadas. Da mesma forma que as grandes, algumas se deitavam, se espojavam ou se coçavam mutuamente. O grupo mais alegre era formado pelos potros de dois e três anos e pelas éguas estéreis, que quase sempre andavam juntas. Entre elas se ouviam bufos, relinchos, saltos e grunhidos. Aproximavam-se umas das outras, colocavam a cabeça sobre as costas da companheira, farejavam-se, brincavam e, por vezes, sacudindo a cauda e levantando-a, corriam a trote ou a galope, com jeito altivo e presumindo diante das companheiras. A mais bonita e empreendedora desse grupo de potras era a travessa potranca baia. As demais a imitavam em qualquer coisa que fizesse e toda a manada a seguia a todos os lugares. Naquela manhã, sentia-se especialmente brincalhona. Inspirara-se-lhe a veia da alegria, como acontece com as pessoas. Depois de haver escarnecido do velho cavalo mosqueado, saíra trotando ao longo da água; em seguida, fingiu que se assustava; relinchou e correu, a toda velocidade, pelo prado, obrigando Vaska a correr atrás dela e das companheiras que a seguiam. Depois, entreteve-se comendo um pouco e espojando-se. Zombou das velhas, cortando-lhes o caminho; separou um potrinho da mãe e perseguiu-o, como se quisesse mordê-lo. A mãe, assutada, deixou de comer, e o potrinho gemia com voz penosa, mas a potranca nem sequer o tocou, limitando-se a fazer-lhe medo e dando com isso um espetáculo que suas companheiras contemplaram com prazer. Depois, ocorreu-lhe apaixonar um cavalinho que puxava um arado, do outro lado do rio, manejado por um camponês. A potra se deteve, levantou a cabeça com ar altivo, virando-a docemente de lado, sacudiu-se e relinchou com voz doce e delicada. Naquele relincho soava a zombaria, mas também havia sentimento e certa tristeza. Expressava desejo, aspiração e promessa de amor.
Ali a codorniz, correndo de um lado para outro, entre os juncais espessos, chama apaixonadamente seu amigo; ali o cuco e a calhandra cantam seu amor e as flores transmitem umas às outras, por meio do vento, o pólen aromático.
"Também sou moça, formosa e forte - dizia a potra em seu relincho - Mas ainda não me foi outorgado provar a doçura deste sentimento, nem sequer ainda me viu um só amante".
E esse relinchar, tão significativo, ressoou pelo prado e chegou até ao cavalinho, que ergueu as orelhas e se deteve. O mujique o fustigou, mas o cavalinho estava enfeitiçado por aquela voz distante e relinchou também. Irritou-se o camponês, puxou as rédeas e deu-lhe uma pancada tão forte na barriga que o animal continuou seu caminho sem ter podido terminar o relincho. Sentiu-se invadido pela doçura e pela tristeza enquanto chegavam à cavalhada, do distante campo de centeio, os sons de seu relincho apaixonado e da voz iracunda do mujique.
Se bastara o som daquela voz para impressionar o cavalinho a ponto de fazê-lo esquecer seu dever, que não teria acontecido se houvesse visto a bela e travessa potra que o chamara, com as ventas dilatadas, aspirando o ar como se algo a atraísse, vibrando em todo o corpo jovem e formoso?
Mas a égua moça não se deteve por muito tempo a pensar em suas impressões. Quando se extinguiu a voz do cavalinho, relinchou zombeteiramente e, baixando a cabeça, começou a escavar a terra com uma das patas, e a seguir foi despertar e encolerizar o cavalo mosqueado. Este era sempre a vítima e o bufão daquela juventude feliz. Faziam-no padecer mais do que as pessoas. Não fizera mal a uns nem a outros. As pessoas precisavam dele, pelo menos; por que, porém, o mortificavam aquelas éguas novas?
CAPÍTULO IV
Ele era velho e elas, novas. Ele era fraco e elas, bem nutridas. Ele estava sempre triste e elas, sempre alegres. Portanto, era ele um ser alheio, completamente diferente e não havia razão para terem pena dele. Os cavalos só costumam ter pena de si mesmos e, de vez em quando, só sentem piedade daqueles em cuja pele podem imaginar a si próprios; mas que culpa teria o cavalo mosqueado de ser velho, magro e feio? Parece que nenhuma. Contudo, segundo os cavalos, era culpado de tudo isso; segundo eles, só têm razão os que são fortes, jovens e felizes, os que têm tudo à sua frente, aqueles cujos músculos estremecem por causa de uma tensão inútil e cuja cauda se levanta em trompa. Talvez o cavalo mosqueado compreendesse isso e, nos momentos tranquilos, reconhecesse que a culpa era sua, que já havia vivido sua vida e que chegara a hora de pagar seu tributo. Mas, no fundo, era um cavalo e, com frequência, incapaz de reprimir sentimentos como o desgosto, a tristeza e a indignação ao contemplar esses jovens que o sentenciavam por uma coisa que também eles teriam de sofrer no fim da vida. Um sentimento aristocrático era também a causa daquele procedimento desapiedado. Cada uma daquelas potras descendia, por parte de pai ou de mãe, do célebre Smetanka; e o cavalo mosqueado era de procedência desconhecida. Era um cavalo adventício; haviam-no comprado, três anos antes, numa feira, por oitenta rublos em notas de banco.
A potra baia, como se estivesse dando um passeio, aproximou-se das próprias narinas do cavalo mosqueado e empurrou-o. Este já sabia do que se tratava; sem abrir os olhos, baixou as orelhas e mostrou os dentes. A potra virou as costas e fez como se lhe quisesse dar um coice. O cavalo mosqueado abriu os olhos e afastou-se. Já não tinha sono e começou a comer. A potra travessa aproximou-se de novo dele, seguida por suas companheiras. Uma destas, de dois anos de idade e muito estúpida, que sempre imitava a baia em tudo, ia também fazê-lo desta vez e, como ocorre em tais casos, passou do limite. Em geral, a égua baia aproximava-se do cavalo mosqueado, como se fosse fazer alguma coisa, e passava diante mesmo de seu focinho, sem dirigir-lhe a vista, de modo que ele não sabia se deveria irritar-se ou não; e aquilo era realmente divertido. Desta vez fez o mesmo, mas a que a seguia e que estava especialmente alegre empurrou o mosqueado com toda a desenvoltura. Este tornou a mostrar os dentes, relinchou e, com agilidade inesperada nele, lançou-se atrás dela e mordeu-lhe a anca. A égua respondeu dando forte coice nas fracas costelas do velho, que até emitiu um gemido surdo. Quis correr a persegui-la, mas logo mudou de parecer e se afastou, com suspiro profundo. Provavelmente, toda a juventude da cavalhada considerou como ofensa pessoal a insolência que o velho cavalo se permitira com relação à potra nova; durante o resto daquele dia não o deixaram pastar nem lhe deram um momento de descanso, de modo que até o cavalariço teve de intervir várias vezes para separá-los, sem poder compreender o que havia sucedido. O cavalo mosqueado estava tão ofendido que ele próprio se aproximou de Nester quando o velho se dispôs a recolher a manada e se sentiu mais feliz e tranquilo quando selado e montado.
Deus sabe o que pensaria ao levar às costas o velho Nester. Talvez pensasse, com amargura, na impertinente e cruel juventude, ou, com aquela altivez desdenhosa e silenciosa própria dos velhos, perdoasse seus ofensores; mas o caso é que não deixou suas reflexões transparecerem, até que regressaram à casa.
Naquela noite, chegaram uns parentes de Nester. Ao conduzir a cavalhada diante das isbás dos servos, notou um carro com um cavalo amarrado à frente da escadinha de sua casa. Apressou-se tanto em recolher a cavalhada que, sem desencilhar o cavalo mosqueado, deixou-o no pátio e, ordenando a Vaska que ele o fizesse, fechou a porta e foi ver seus parentes. Talvez por causa da ofensa feita à potra nova, bisneta de Smetanka, pelo "tinhoso inútil", de pais desconhecidos, comprado numa feira, que havia molestado o sentimento aristocrático de toda a cavalhada, ou talvez porque o cavalo mosqueado, tendo ao lombo a sela alta sem cavaleiro, oferecesse um aspecto estranho e fantástico para as éguas, o fato é que naquela noite sucedeu algo insólito na cavalariça. Todas as éguas, tanto as jovens como as mais velhas, perseguiram o cavalo mosqueado, mostrando os dentes e obrigando-o a correr de um lado para outro; e ouviram-se os coices que lhe davam nos flancos delgados, assim como sua pesada respiração. O cavalo já não podia suportar mais aqueles golpes, nem era capaz de evitá-los. Deteve-se em meio do pátio e sua cara expressou primeiro uma débil raiva senil e impotente e, depois, o desespero. Baixou as orelhas. E, subitamente, aconteceu algo que obrigou todos a ficarem quietos. Viazopurika, a mais velha das éguas, aproximou-se dele, cheirou-o e suspirou. O cavalo mosqueado suspirou também.
CAPÍTULO V
No centro do pátio, iluminado pela lua, via-se a figura alta do cavalo mosqueado e o arção saliente. Os cavalos, imóveis, permaneciam em seu redor, observando profundo silêncio, como se tivessem acabado de inteirar-se de algo extraordinário. E assim era, com efeito.
Eis aqui o que o cavalo lhes contou:
PRIMEIRA NOITE
"Sim, sou filho de Liubesni I e de Baba. Meu nome de linhagem é Mujique I. Sou Mujique I e, para os da rua, Kolstomer, assim apelidado pelo vulgo em razão de minha marcha ampla, que nunca teve igual em toda a Rússia. Não há no mundo um cavalo de sangue mais nobre que o meu. Eu nunca vos teria dito isso. Para quê? Nunca me teríeis reconhecido. Como até há pouco não me havia reconhecido Viazopurika, que esteve comigo em Krenovo. Sem o testemunho dela, não me acreditaríeis. Eu nunca vos teria dito isso. Não necessito da compaixão cavalar. Mas quisestes que eu o dissesse. Pois bem: sou aquele Kolstomer que os caçadores procuram em vão, o Kolstomer que conheceu pessoalmente o conde e que foi vendido por haver vencido o favorito dele, Liebed.
Quando nasci, não sabia o que significava a palavra mosqueado. Acreditava que era um cavalo comum. Recordo que a primeira observação que fizeram sobre minha pele nos surpreendeu profundamente, a mim e a minha mãe. Devo ter nascido de noite; já para a madrugada, bem lambido por minha mãe, estava de pé. Lembro que incessantemente desejava algo e que tudo me parecia muito estranho e simples ao mesmo tempo. Os estábulos ficavam num corredor largo e tépido, com portas de grades, que deixavam ver o exterior. Minha mãe me ofereceu as tetas, mas eu era tão ingênuo que tanto a empurrava com o focinho entre as patas dianteiras como no ventre. De repente, minha mãe se virou para a porta e, passando por cima de mim, afastou-se para um lado. O palafreneiro que tratava de nós contemplava-nos através das grades.
- A Baba pariu! - exclamou, abrindo o ferrolho; e, andando pela palha fresca, abraçou-me com as duas mãos. - Olha, Taras, é um potro mosqueado. Parece uma pega.
Soltei-me de seus braços, e caí de joelhos.
- Que diabrete! - disse o cavalariço.
Minha mãe ficou inquieta, mas não fez nada para defender-me. Limitou-se a suspirar profundamente e afastou-se um pouco. Chegaram outros cavalariços e puseram-se a examinar-me. Um deles correu a avisar o chefe do estábulo. Todos se riam de minhas manchas e me davam nomes estranhos. Nem mesmo minha mãe entendia o significado dessas palavras. Até então, não houvera em nossa linhagem um só cavalo de pele mosqueada. Não pensávamos que isso pudesse ser mau de qualquer forma. E já então todos louvavam minha constituição e minha força.
- Como é esperto! Não se pode segurá-lo! - disse o palafreneiro.
Pouco depois chegou o chefe das cavalariças e estranhou minha cor; pareceu até ficar desgostoso.
- A quem puxou esse monstro? O general não quererá deixá-lo nas cavalariças - disse ele. - Ah, Baba, boa coisa nos fizeste! - acrescentou, dirigindo-se a minha mãe. - Teria sido melhor que fosse calvo; mas mosqueado...
Minha mãe nada respondeu e, como sempre em tais casos, suspirou.
- A quem terá saído? Parece um mujique. Não podemos deixá-lo na cavalhada, seria uma vergonha. No entanto, é um bom cavalo - dizia o chefe, assim como todos os demais, enquanto me contemplavam.
Poucos dias depois, o general em pessoa veio ver-me. De novo, não sei por que, todos se horrorizaram e invectivaram minha mãe pela cor de minha pele.
- No entanto, é um bom cavalo, um cavalo muito bom - diziam todos os que me viam.
Até a primavera, ficamos separados, cada qual com sua mãe; e só algumas vezes, quando o sol derretia a neve do telhado dos estábulos, nos levavam ao grande pátio coberto de palha fresca. Ali conheci todos os meus parentes, tanto os próximos como os afastados. Ali vi como, por portas diferentes, saíam as éguas mais famosas daquele tempo, com seus rebentos. Entre elas se encontravam a velha Golanka, Muchka, a filha de Smetanka, Krasnuka e a hacaneia de sela Dobrokotika. Todas as celebridades daquela época se reuniam ali com seus filhos, passeavam ao sol, espojavam-se na palha fresca e cheiravam-se mutualmente, da mesma forma que os cavalos de hoje. Não esqueço até agora o aspecto que apresentava aquela eguada, cheia de potras formosas. Estranha-vos pensar que, em meu tempo, fui jovem e esperto, mas foi assim. Ali se encontrava também esta mesma Viazopurika, que então era uma potranca de um ano, simpática, alegre e cheia de vivacidade; mas direi, sem querer ofendê-la, que, embora aqui a considerem uma raridade de seu sangue, naquele estábulo era um dos piores exemplares. Ela mesma o confirmará.
Minha pele mosqueada, que tanto desagradava aos homens, era, em compensação, apreciada pelos cavalos. Todos me rodeavam e, admirados, brincavam comigo. Comecei a esquecer as palavras das pessoas a respeito de minha pele e sentia-me feliz. Mas não tardei a conhecer a primeira dor de minha vida, causada por minha própria mãe. Quando a neve começou a derreter-se, as codornizes piavam sob os beirais dos telhados e a primavera começou a sentir-se com mais força no ar; minha mãe transformou-se com relação a mim. Seu caráter mudou por completo. Ora, sem causa aparente, começava a brincar, correndo pelo pátio, coisa que não convinha em absoluto à sua idade; ora permanecia pensativa e relinchava; ora mordia e trocava coices com as companheiras. Às vezes, cheirava-me e fungava, com desgosto. Ou então, saia a tomar sol e apoiava a cabeça no pescoço de sua prima Kupchika, ficando a coçar-lhe o lombo por muito tempo, em atitude pensativa, sem deixar que me aproximasse de suas tetas. Um dia, o chefe das cavalariças ordenou que pusessem freio em minha mãe e levaram-na do estábulo. Minha mãe relinchou; respondi e quis acompanhá-la, mas nem sequer ela me fitou. Taras, o criado, agarrou-me no momento em que fechavam a porta atrás de minha mãe. Precipitei-me, derrubando-o sobre a palha, mas a porta estava fechada e só pude ouvir os relinchos de minha mãe, que se afastava. Já não me chamava e em sua voz se distinguia uma expressão completamente diferente. A seus relinchos responderam outros muito possantes; segundo soube depois, eram os de Dobri I, que, conduzido por dois cavalariços, ia ao seu encontro. Não me lembro como Taras saiu do estábulo; sentia-me demasiado triste. Pressentia que acabara de perder para sempre o amor de minha mãe. "E tudo isso, só por ser um cavalo mosqueado", pensava, recordando as palavras dos homens a respeito de minha pele. Foi tal a raiva que me invadiu que comecei a dar pancadas com a cabeça na parede do estábulo, até cair exausto e coberto de suor.
Ao fim de algum tempo, minha mãe voltou. Ouvia-a chegar a trote e aproximar-se do estábulo com passos diferentes. Abriram-lhe a porta; mal a reconheci, tanto se havia rejuvenescido e embelezado. farejou-me, fungou e começou a relinchar. Por sua expressão, notei que já não me queria. Falou-me de como Dobri era formoso e de quanto o amava. Aqueles encontros se repetiram e cada vez mais esfriavam minhas relações com a minha mãe.
Em breve nos deixaram sair ao prado. Então, conheci novas alegrias, que substituíram a perda do amor materno. Tinha amigas e companheiros; aprendemos juntos a comer a relva, a relinchar como os mais velhos e a galopar em volta de nossas mães, com a cauda erguida. Foi um período feliz. Tudo me era perdoado; todos me estimavam, me admiravam e eram condescendentes, fizesse eu o que fizesse; mas isso durou pouco. Não tardou a acontecer-me uma coisa terrível".
O cavalo mosqueado suspirou profundamente e afastou-se do grupo.
Amanhecera já desde algum tempo. As portas rangeram e entrou Nester. Os cavalos se separaram. O cavaleiro arranjou a sela do velho mosqueado e levou a cavalhada para fora.
CAPÍTULO VI
SEGUNDA NOITE
Depois de novamente recolhidos os cavalos, voltaram eles a reunir-se em redor do velho mosqueado.
"No mês de agosto, separaram-nos de nossas mães - disse o cavalo, continuando sua narrativa. - Senti pesar intenso. Via que minha mãe levava em suas entranhas meu irmão mais novo, o célebre Usane, e que eu já não era para ela o mesmo de antes. Não sentia ciúmes, mas tornava-me cada vez mais frio em relação a ela. Além disso, sabia que, ao separar-me de minha mãe, levar-me-iam ao departamento dos potros, onde estes eram encerrados em grupos de dois ou três e de onde saía para o ar livre, todos os dias, uma manada de potros novos. Fiquei com o potro Mili; era um cavalo de sela e mais tarde foi montado pelo imperador, sendo reproduzido em selos, gravuras e estátuas. Então, não passava de um filhote de pelo delicado e reluzente, pescoço de cisne e patas delgadas e retas. Sempre estava alegre e mostrava-se afetuoso e amável; sempre estava disposto a brincar, a lamber-se e a fazer pilhérias tanto com os cavalos como com as pessoas. Sem querer, tornamo-nos amigos, porque vivíamos juntos; e essa amizade se manteve durante toda a nossa adolescência. Era alegre e despreocupado; já naquela época começava a interessar-se pelo amor, brincava com as éguas jovens e zombava de minha inocência. Para grande infelicidade minha, quis imitá-lo, por amor-próprio; e muito depressa deixei que o amor me arrastasse. Esta inclinação precoce foi a causa de uma mudança importantíssima em meu destino. Acontece que me enamorei.
Viazopurika tinha um ano mais do que eu e éramos muito bons amigos; mas, para os fins de outono, observei que começava a evitar-me... Não contarei a triste história de meu primeiro amor; a própria Viazopurika deve lembrar-se de minha louca paixão, que terminou com uma mudança importantíssima em minha vida. Os cavalariços expulsaram Viazopurika e me deram uma sova. Conduziram-me a um estábulo especial, onde passei a noite inteira relinchando, como se pressentisse o acontecimento que iria ocorrer no dia seguinte.
De manhã, chegaram ao pátio do estábulo o general, o chefe das cavalariças, o palafreneiro e os ajudantes; e armou-se grande gritaria. O general ralhava com o chefe, que se desculpava, dizendo que ele não havia mandado que me soltassem e que os ajudantes o haviam feito por sua conta. O general ameaçou mandar açoitar a todos eles e disse que não poderiam ser conservados todos os potros. O chefe prometeu cumprir suas ordens. Depois, calaram-se e saíram dali. Não compreendi nada; mas notei que algo se tramava contra mim.
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No dia seguinte, deixei de relinchar para sempre e tornei-me o que sou agora. O mundo mudou completamente ante meus olhos. Nada me era agradável; fechei-me em mim mesmo e comecei a refletir. A princípio, tudo me pareceu odioso. Até deixei de comer, de beber e de andar. Nem sequer pensava em brincar. Às vezes, vinham-me desejos de caracolear, de galopar ou de relinchar; mas imediatamente se apresentava a terrível pergunta: "Para quê? Com que fim?" E minhas últimas forças me abandonavam.
Certa vez me tiraram à noite, quando a cavalhada regressava do prado. De longe avistei uma nuvem de poeira e os contornos confusos de nossas mães. Ouvi os relinchos alegres e o ruído dos cascos. Detive-me, embora o freio, puxado pelo criado que me levava, me ferisse a nuca; e fitei a cavalhada que se aproximava da mesma forma por que se fita a felicidade que se perdeu para sempre. As éguas aproximavam-se e pude distinguir, uma por uma, as silhuetas belas, majestosas, sãs e bem nutridas que eu conhecia. Algumas delas também me olharam. Já não sentia a dor que me produzia o freio que o criado puxava. Esqueci-me de minha condição e, sem querer, relinchei e corri a trote; mas meu relincho soou triste, lamentável e ridículo. As éguas não se riram de mim, mas notei que muitas desviavam a vista, por decoro. Ao que parece, eu lhes inspirava repulsa, dó, desgosto e, sobretudo, riso. Fazia-as rir o meu pescoço esquálido e inexpressivo, a minha cabeça enorme (durante aquele tempo eu havia emagrecido), minhas amplas patas sem garbo e meu porte estúpido ao empreender um leve trote em volta do criado, por hábito antigo. Ninguém respondeu a meu relincho e todos me viraram as costas. Logo compreendi tudo: compreendi até que ponto me tornara estranho para todos eles, e nem lembro sequer como voltei.
Já antes eu tivera certa tendência para a seriedade e a meditação, mas então sofri uma transformação definitiva. Meu pelo, que despertava desprezo tão estranho entre as pessoas, minha desgraça inesperada e, além disso, minha situação especial na cavalhada, que pressentia, mas que não conseguia explicar a mim mesmo, obrigaram-me a concentrar-me ainda mais dentro de meu íntimo. Refleti sobre a injustiça dos homens, que me censuravam por causa da cor da pele; sobre a inconstância do amor materno e, em geral, do amor feminino, que dependia de certas circunstâncias físicas. Principalmente, meditei sobre as particularidades daquele estranho animal a que chamam gênero humano e a que estamos tão estreitamente ligados, e sobre as particularidades a que se devia minha condição, que pressentia mas não chegava a entender. A importância dessa particularidade e das propriedades humanas sobre as quais ela se baseava foi-me revelada pelo acontecimento seguinte.
Foi no inverno, na época das festas. Durante todo o dia haviam-me deixado sem comer e sem beber. Posteriormente, inteirei-me de que isso acontecera porque o palafreneiro se embriagara. O chefe dos estábulos veio ver-me e, ao verificar que eu não tinha ração, começou a invectivar o criado (que não se encontrava ali) com palavras grosseiras; depois, saiu. No dia seguinte, o palafreneiro, acompanhado de outro criado, entrou no estábulo para dar-me a ração. Notei que estava especialmente pálido e triste. Sobretudo, em suas largas costas notava-se algo de significativo, que despertava compaixão. Atirou o feno por cima da grade, com gesto de aborrecimento e, quando me aproximei, com a intenção de por a cabeça em seu ombro, assestou-me um murro tão forte, em pleno focinho, que retrocedi. Depois, deu-me um pontapé na barriga.
- Se não fosse por causa desse tinhoso não teria acontecido nada! - exclamou.
- Por que dizes isso? - perguntou o outro criado.
- Falta de cuidado: o chefe não inspeciona os cavalos do conde. Mas o seu potro, vem visitá-lo duas vezes por dia.
- Deram-lhe esse mosqueado de presente?
- O diabo sabe se o deram ou se o venderam. O fato é que podemos matar de fome os cavalos do conde; ele não se preocupa com isso, em absoluto. Atreva-se alguém, no entanto, a deixar sem ração o seu potro. "Deita-te", disse-me ele. E começaram a acoitar-me. Não parece cristão. Tem mais pena dos animais que das pessoas. Deve ser herege. O bárbaro contou pessoalmente os açoites que me davam. Nem mesmo o general manda açoitar assim. Fiquei com as costas todas lanhadas.
Compreendi muito bem o que dizia a respeito dos açoites e do cristianismo. Mas ficou completamente obscura para mim a palavra seu, pela qual pude deduzir que estabeleciam um vínculo a ligar-me ao chefe das cavalariças. Então, não pude compreender de modo algum em que consistiria tal vínculo. Só muito depois, quando me separaram dos demais cavalos, é que expliquei a mim mesmo o que aquilo representava. Naquela época, eu não era capaz de entender a significação do fato de ser eu propriedade de um homem. As palavras "meu cavalo", referindo-se a mim, a um cavalo vivo, pareciam-me tão estranhas como as palavras "minha terra", "meu ar", "minha água".
No entanto, elas exerceram sobre mim enorme influência. Sem cessar pensava nelas e só depois de longo contato com os seres humanos pude explicar-me a significação que, afinal, lhes é atribuída. Querem dizer o seguinte: os homens não dirigem a vida com fatos, mas com palavras. Não os preocupa tanto a possibilidade de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, como a de falar de objetos diferentes mediante palavras convencionais. Essas palavras, que consideram muito importantes, são, sobretudo, meu ou minha, teu ou tua. Aplicam-nas a todas as espécies de coisas e de seres, inclusive à terra, ao seus semelhantes e aos cavalos.
Além disso, convencionaram que uma pessoa só pode dizer meu a respeito de uma coisa determinada. E aquele que puder aplicar a palavra "meu" a um número maior de coisas, segundo a convenção feita, considera-se a pessoa mais feliz. Não sei por que as coisas são desse modo; mas sei que são assim. Durante muito tempo procurei compreender isso, supondo que daí viria algum proveito direto; mas verifiquei que isso não era exato.
Muitas pessoas das que me chamavam seu cavalo nem mesmo me montavam; mas outras o faziam. Não eram elas as que me davam de comer, mas outros estranhos. Também não eram as pessoas que me faziam bem, mas os cocheiros, os veterinários e, em geral, pessoas desconhecidas. Posteriormente, quando ampliei o círculo de minhas observações, convenci-me de que o conceito de meu - e não só com relação a nós, cavalos - não tem qualquer outro fundamento além de um baixo instinto animal, que os homens chamam sentimento ou direito de propriedade. O homem diz "minha casa", mas nunca vive nela; preocupa-se só em construí-la e mantê-la. O comerciante diz "minha loja", ou "meus tecidos", por exemplo, mas não faz suas roupas com os melhores tecidos que vende na loja. Há pessoas que chamam sua uma extensão de terra e nunca a viram nem passaram por ela. Há outras que dizem serem suas certas pessoas que nunca viram nesta vida e a única relação que têm com elas consiste em causar-lhes dano. Há homens que chamam de suas certas mulheres, e estas convivem com outros homens. As pessoas não procuram, em sua vida, fazer o que consideram o bem, e sim a maneira de poder dizer do maior número possível de coisas: é meu. Agora estou persuadido de que nisso reside a diferença essencial entre nós e os homens. Portanto, sem falar de outras prerrogativas nossas, só por este fato podemos dizer, com segurança, que, entre os seres vivos, nos encontramos em nível mais alto que o dos homens. A atividade dos homens, pelo menos a dos homens com quem tenho tratado, se traduz em palavras, ao passo que a nossa se manifesta em fatos. Assim, pois, o chefe das cavalariças açoitou o criado porque havia adquirido o direito de chamar-me seu cavalo. Este descobrimento, que profundamente me consternou, assim como os conceitos que minha pele despertara entre as pessoas e a volubilidade de minha mãe, obrigaram-me a tornar-me o cavalo sério e pensativo que sou.
Sentia-me três vezes desgraçado: meu pelo era mosqueado, haviam-me castrado e os homens imaginavam que eu não pertencia a Deus nem a mim mesmo, como é próprio de todo ser vivente, e sim, a um cavalariço.
Disto se derivaram numerosas consequências. A primeira delas foi que me separaram dos outros cavalos, alimentaram-me melhor e me ajaezaram antes do que em geral costuma fazer-se. Ajaezaram-me, pela primeira vez, aos dois anos de idade. Lembro-me de que o chefe das cavalariças, que imaginava que eu lhe pertencia, em companhia de uma série de criados, começou a pôr-me arreios, esperando que eu me encabritasse ou me rebelasse. Amarraram-me com cordas, para introduzir-me entre varais. Puseram-me às costas uns arneses em forma de cruz, que ataram às varas, para que eu não desse coices; e eu só esperava uma oportunidade de demonstrar-lhes meu amor ao trabalho. Assombraram-se ao ver que me portava como um cavalo velho. Passearam comigo e fui-me exercitando a correr a trote. Cada dia que se passava, maiores eram os meus progressos, de maneira que, três meses depois, o próprio general e muitos outros louvaram minha andadura. Mas, coisa estranha: como imaginavam que eu não me pertencia a mim mesmo, e sim ao chefe dos estábulos, minhas andaduras tinham aplicações muito diferentes das dos meus companheiros.
A meus irmãos, os potros, faziam com que corressem e cronometravam suas corridas. Examinavam-nos detidamente, atrelavam-nos a carruagenzinhas douradas e os cobriam com ricas gualdrapas. Eu, porém, puxava a carruagem comum do cavalariço, quando ele ia tratar de seus assuntos em Chesmene e outras aldeias. Tudo isto era devido à minha pele e, sobretudo, a que, na sua opinião, eu não pertencia ao conde, mas ao chefe dos estábulos.
Amanhã, se ainda vivermos, contar-vos-ei a consequência principal que teve para mim o direito de propriedade que o chefe dos estábulos se atribuía".
Durante todo aquele dia, os cavalos trataram Kolstomer com respeito. Mas o trato que Nester lhe dispensou foi tão grosseiro como sempre. O cavalinho do mujique, ao aproximar-se a cavalhada, relinchou; e a jovem égua baia tornou a exibir sua coqueteria.
CAPÍTULO VII
TERCEIRA NOITE
Saiu a lua e seu fino alfanje iluminou a figura de Kolstomer, que permanecia no meio do pátio. Os cavalos se agruparam à sua volta.
"A consequência principal e extraordinária de não pertencer eu ao conde nem a Deus, mas ao chefe das cavalariças - continuou o velho mosqueado - foi que aquilo que em geral constitui o nosso maior mérito, isto é, a marcha rápida, deu motivo a que me expulsassem da cavalhada. Um dia, faziam provas com Liebed, e o cavalariço, que chegava de chesmene montado em mim, aproximou-se da pista. Liebed passou junto de nós; corria bem, mas bamboleava-se e não tinha aquela pureza de movimentos que eu adquirira ao exercitar-me. Instantaneamente, ao contacto de uma pata com o chão, eu levantava a outra, sem fazer o menor esforço em vão, aproveitando-me disso para correr para a frente. Quando Liebed passou diante de nós, corri para a pista e o chefe das cavalariças não me reteve.
- Querem que experimentemos o meu mosqueado? - gritou.
E, quando Liebed chegou por segunda vez perto de mim, o cavalariço soltou-me. Liebed já havia tomado carreira e, por isso, fiquei para trás na primeira volta, mas, na segunda, fui recuperando terreno, alcancei-o e passei à sua frente. Fizeram outra prova e o resultado foi idêntico. Eu era melhor corredor. Isto horrorizou a todos. Decidiram vender-me quanto antes e, para quanto mais longe, melhor, para que nem sequer se ouvisse falar de mim. "Se o conde souber disso, passaremos maus bocados", diziam. E venderam-me a um traficante de cavalos.
Com ele estive pouco tempo. Comprou-me um hussardo, que fora lá a negócios de remonta. Tudo aquilo era tão injusto e tão cruel que me alegrei quando me afastaram de Krenovo, separando-me em definitivo de tudo quanto me era agradável e querido. Permanecendo com a cavalhada eu sofria demasiado. Aos outros esperavam o amor, as honrarias, a liberdade; a mim, só o trabalho e as humilhações, as humilhações e o trabalho, até o fim de minha vida. Por quê? Por que eu era mosqueado e porque, em razão disso, tinha de pertencer a alguém".
Naquela noite, Kolstomer não pôde prosseguir sua narrativa. Aconteceu um fato que semeou agitação entre os cavalos. Rupchika, uma potra prenhe, que escutara o relato desde o início, virou-se de repente e dirigiu-se com lentidão para debaixo do telhado, onde se pôs a gemer tão fortemente que chamou a atenção de todos; depois, deitou-se, levantou-se e tornou a deitar-se. As éguas velhas compreenderam de que se tratava, mas as jovens se inquietaram e, abandonando o cavalo mosqueado, rodearam a enferma. Para o amanhecer, havia um potro novo, que se bamboleava nas perninhas. Nester chamou o criado. Levaram a égua e o potrinho para o estábulo e os demais foram para o prado.
CAPÍTULO VIII
QUARTA NOITE
Ao anoitecer, quando as portas se fecharam e tudo ficou em silêncio, o mosqueado assim continuou:
"Pude fazer múltiplas observações a respeito das pessoas e dos cavalos durante a época em que fui passando de dono para dono. Dois amos foram os que me tiveram por mais tempo: o oficial de hussardos, que era um príncipe; e depois uma velha, que vivia em Nikolai Ivavleni.
Com o hussardo passei os melhores dias de minha vida.
Embora tenha sido ele a causa de minha ruína, embora não tivesse estima a ninguém, eu o estimava e estimo, precisamente por isso. Agradava-me ver que ele era elegante, feliz e rico e que, por isso mesmo, a ninguém amava. Compreendeis esse elevado sentimento cavalar. Sua frieza, sua crueldade e minha dependência dele emprestavam força singular a meu afeto. E, em meus bons tempos, pensava: "Mata-me, extenua-me; sentir-me-ei tanto mais feliz".
Comprou-me do traficante de cavalos, que por sua vez me adquirira do cavalariço por oitocentos rublos. Elogiou-me, porque ninguém tinha cavalos mosqueados. Foi minha época melhor. O hussardo tinha uma amante. Soube disso porque todos os dias eu o levava à casa dela e, às vezes, tinha que levar os dois. A amante era muito bela, o hussardo era distinto e também o era seu cocheiro. Por isso eu queria bem a todos. E vivia a meu gosto. Minha vida transcorria da maneira seguinte: de manhã, o criado vinha limpar-me. Era um moço novo, que procedia de família camponesa. Abria a porta, para que saísse o bafo; tirava o esterco, removia as gualdrapas dos cavalos e começava a raspar-me o corpo com escovas, brossa e almofaça. Eu, de brincadeira, mordiscava-lhe a manga e batia com as patas no chão. Depois, levavam-nos, uns após os outros, a umas tinas de água fria; e o rapaz admirava minha pele mosqueada, minhas patas retas "como umas flechas", meus cascos largos e meu lombo lustroso, "sobre o qual se podia dormir". Enfiava feno pelas grades da porta e colocava aveia na manjedoura de carvalho. Depois, vinha Feofane, o cocheiro principal.
O amo e o cocheiro se pareciam. Ambos eram valentes e não gostavam de ninguém, a não ser de si mesmos; por isso, todos os apreciavam. Feofane costumava usar camisa vermelha e calças de feltro. Gostava de vê-lo chegar, nos dias de festa ,com os cabelos untados de brilhantina. Costumava exclamar: "Então, não te lembras de mim?" E empurrava-me com o cabo do forcado, mas sem fazer-me dano, só para pilheriar. Eu compreendia imediatamente; agachava as orelhas e rangia os dentes. Havia um potro preto que formava parelha com outro. De noite, também me atrelavam com ele. Chamava-se Polkane, não entendia as brincadeiras e era mau como um demônio. No estábulo, permanecíamos um ao lado do outro e ele me atormentava seriamente. Feofane não lhe tinha medo. Costumava aproximar-se dele claramente e soltar um grito; o potro parecia disposto a matá-lo, mas Feofane esquivava-se e conseguia lançar-lhe a corda ao pescoço. Uma vez, tomamos ambos a rédea nos dentes, em Kuznietski. Mas nem o amo nem o cocheiro se assustavam; ambos riram, gritaram às pessoas que se afastassem e depois retomaram as rédeas para que não atropelássemos ninguém.
Servindo ao hussardo, perdi minhas melhores faculdades e a metade de minha vida. Ali comecei a ressentir-me das pernas. Mas, apesar disto, foi a melhor época de minha existência. Às doze horas costumavam atrelar-nos, depois de nos untarem os cascos e de nos refrescarem o topete e as crinas.
O trenó era de junco trançado e tapizado de veludo: os arneses tinham pequenas fivelas de prata e as rédeas eram de seda.
Os arneses ajustavam-se tão bem que, quando estávamos prontos e encilhados, não se podia distinguir onde terminavam eles e onde começava o cavalo. Costumavam atrelar-me num telheiro. Chegava Feofane - que tinha as cadeiras mais largas que os ombros - com um cinturão vermelho que lhe chegava quase debaixo dos braços; examinava os arreios, sentava-se e, depois de ajeitar o cafetã, dizia umas palavras por pilhéria, preparava o chicote apenas por formalidade, pois quase nunca me fustigava e exclamava: "Andemos". Saíamos pela porta da cocheira; a cozinheira, que ia esvaziar o balde, parava no umbral; e os homens que traziam lenha ao pátio olhavam-nos com os olhos esbugalhados. Dávamos uma voltazinha e parávamos. Então chegavam os lacaios e os outros cocheiros, que se punham a falar. Assim esperávamos todos, por vezes, até três horas seguidas, junto à porta da casa, dando de vez em quando um pequeno passeio e detendo-nos de novo. Finalmente, ouvia-se barulho junto à porta; saía correndo o encanecido e barrigudo Tikone, vestido de fraque e ordenava: "A carruagem!" Então não havia a maneira estúpida de gritar: "Para a frente!", como se eu não soubesse que se deve andar para adiante e não para trás. Feofane estalava a língua. Aproximávamo-nos da escada e aparecia o patrão, ao mesmo tempo displicente e apressado, como se nada houvesse de surpreendente em Feofane, ou nos cavalos. O cocheiro estirava os braços e curvava as costas a ponto de parecer impossível que os mantivesse assim por muito tempo. O príncipe trajava barretina e um capote de pele de castor que lhe cobria o belo rosto corado, de sobrancelhas negras, que nunca deveria encobrir-se. Fazendo tilintar o sabre e as esporas, caminhava pelo tapete, como se tivesse pressa, sem prestar atenção a mim e a Feofane, quando todos nos admiravam. Ao chegar à escada, eu sacudia a cabeça e minhas finas crinas, saudando o príncipe. Quando estava de bom humor, ele pilheriava com Feofane; e este, virando levemente a cabeça e sem baixar os braços, fazia um sinal imperceptível com as rédeas, que eu entendia. Empreendia a marcha, estremecendo em cada músculo e lançando a neve suja sob a parte dianteira do trenó. Também não havia naquele tempo o costume tolo de gritar: "Eh!", como se o cocheiro sentisse alguma dor; mas só "Cuidado!" Feofane gritava: "Atenção! Cuidado!" e as pessoas se afastavam, detinham-se e, virando o pescoço, contemplavam o formoso cavalo, assim como o patrão e o cocheiro, todos distintos.
Eu gostava de passar à frente dos carros velozes. Quando Feofane e eu víamos de longe uma parelha que merecesse nosso esforço, lançávamo-nos atrás dela como um torvelinho e, pouco a pouco, a alcançávamos. Então eu já não me preocupava em lançar a neve para o trenó. Alcançava o carro, fungava por cima da cabeça do ocupante; depois, alcançava a parelha, que não tardava em deixar para trás, ouvindo só o ruído que produzia e que se ia perdendo. tanto o príncipe como Feofane e eu mantínhamos silêncio, aparentando que tínhamos nossas coisas a tratar e que nem havíamos notado aqueles maus cavalos. Eu gostava de passar à frente dos carros velozes e também de encontrar-me com um bom trotador; um instante fugaz, um barulho, um olhar, e continuávamos, cada qual para o nosso lado".
Rangeram as portas e soaram as vozes de Nester e de Vaska.
QUINTA NOITE
(Segue a história depois...)
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(Segue a história depois...)
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