sábado, 8 de março de 2025

A língua de Eulália - Marcos Bagno (1)



Refeição Cultural

História da norma-padrão


"Na Itália, a variedade que ganhou o título de padrão e que hoje chamamos de italiano é a língua originária de uma região chamada Toscana. Esta região teve uma importância muito grande durante vários séculos, tendo a cidade de Florença como capital política e cultural. Florença foi um dos pólos do Renascimento, o grande movimento cultural europeu que revolucionou todos os gêneros artísticos e literários da época. Lá trabalharam e viveram gênios como Leonardo da Vinci, Michelangelo e Botticelli. E na língua da Toscana foram escritas algumas das obras-primas da literatura mundial: a Divina Comédia de Dante Alighieri, as Poesias de Petrarca, o Decamerão de Bocácio. Além disso, a Toscana contava com uma moeda forte, o florim, que foi uma moeda importante de comércio internacional durante mais de duzentos anos e em torno do qual se havia organizado um sistema bancário muito evoluído para a época. Tamanho prestígio fez com que o toscano se tornasse, pouco a pouco, a língua de cultura de toda a Itália. E isso apesar de existirem naquele país dezenas e dezenas de línguas diferentes, chamadas dialetos, falados por milhões de pessoas e também veículos de importantes manifestações culturais." (p. 25/26)


Enquanto tomava vitamina de abacate e banana, relia o clássico de Marcos Bagno, A língua de Eulália, livro que conheci em 2001, ano que iniciei minha graduação em Letras na Universidade de São Paulo. 

Os ensinamentos do linguista e escritor Marcos Bagno mudaram para sempre aquele adulto jovem, branco e pobre, que vinha sendo conquistado pelas mídias ideológicas da casa-grande: jornalões e canais de TV que eram as referências de todo mundo. Eu era como a maioria e tinha preconceito linguístico, pois a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante. 

A cada capítulo da novela sociolinguística, os leitores vão se surpreendendo com as informações que tia Irene traz nas conversas com as jovens Vera, Sílvia e Emília, que passam uns dias na casa dela. Dona Eulália era empregada de Irene, professora de língua portuguesa e linguística.

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Dias atrás, vi uma entrevista do escritor Alberto Manguel e novamente me veio à lembrança aquele ano de 2001, primeiro ano das Letras na USP.

Ao ler dois textos de Manguel da bibliografia de uma matéria de literatura, saí desesperado atrás do livro dele: Uma história da leitura (1997). É um dos livros mais interessantes que li em minha vida!

Foi tão encantador vê-lo falar de literatura e cultura que dá até vontade de seguir teimando com a vida para poder ler mais um pouco. A leitura salva!

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Enfim, após instantes de prazer na leitura, preciso perseverar em trabalhar na revisão, sistematização e encadernação de meus textos nos blogs. É a minha vida ali e o meu desejo de preservar tudo que compartilhei de conhecimento com as pessoas. 

William 


Bibliografia:

BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: novela sociolinguística. 6a ed. São Paulo: Contexto, 2000.

sexta-feira, 7 de março de 2025

O nome da rosa: os segredos da igreja



Refeição Cultural 

Umberto Eco, um grande pensador


"Aconteceu uma coisa nesta abadia, que pede a atenção e o conselho de um homem prudente e agudo como vós. Agudo para descobrir e prudente (se for o caso) para encobrir." (p. 37)


Ao reler com atenção o que havia lido de forma displicente, vou percebendo as nuanças da história e do enredo em O nome da rosa (1980). 

O sábio franciscano frei Guilherme de Baskerville vai à abadia do romance por missão dada a ele pelo imperador. 

O abade local, na primeira conversa com o visitante, já dá a ele a determinação que se espera de qualquer investigação ou tarefa a cumprir: encubra seja lá o que descobrir...

É mole?

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Palavras, palavras, palavras... ler sem atenção nos tira a essência da leitura.

Quantas vezes interrompi leituras de clássicos da literatura universal para recomeçar com mais sentido!

A primeira vez que li Ulisses (1922), de Joyce, comecei diversas vezes o livro e voltei ao início, até que peguei o ritmo.

Não foi diferente com Os Lusíadas (1572), de Camões. E com a Odisseia, atribuída ao aedo Homero, se passou a mesma coisa quando a li em versos.

O nome da rosa deve ser lido com atenção, pois tem muita coisa a cada página da obra.

A estratégia do abade Abbone foi interessante, mas a postura escorregadia do frei também surpreendeu. 

Ao saber que o frei Guilherme de Baskerville foi um inquisidor que livrou da fogueira alguns acusados, saiu com um discurso malicioso ao sugerir que ele reconhecia que alguns acusados eram inocentes por ser culpado o diabo...

Frei Guilherme respondeu ao abade Abbone que o diabo era tão esperto que poderia até influenciar o inquisidor... 

É lição para quem sabe ler além das palavras. 

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A igreja encobre os erros de seus membros 

"(...) Frequentemente, de fato, é indispensável provar a culpa de homens que deveriam sobressair por sua santidade, mas de modo a poder eliminar a causa do mal sem que o culpado seja relegado ao desprezo público. Se um pastor falha, deve ser isolado dos outros pastores, mas ai se as ovelhas começam a desconfiar dos pastores." (p. 37)

Sigamos, de forma perspicaz, pelos cantos sombrios da vida.

William 


Bibliografia:

ECO, Umberto. O nome da rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: O Globo; Folha de São Paulo, 2003.

quinta-feira, 6 de março de 2025

Nada mais será como antes - Miguel Nicolelis (12)



Refeição Cultural 

"Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia!" (Citação de frase de Arthur C. Clarke, na p. 207)


Parei de ler com regularidade o romance de Miguel Nicolelis. Na verdade, parei de ler com rotina tudo que estava lendo. Sei de meu desejo e necessidade de ler diariamente. No entanto, defini outra prioridade na urgência e instabilidade do viver. Não farei nada até terminar a tarefa.

Nossos colegas da intelectualidade, da produção de cultura e da esquerda ou qualquer qualificação do tipo ficaram tão encantados com a tecnologia das últimas décadas que perderam a razão quase que por mágica... confiam toda nossa história humana às plataformas digitais de nossos inimigos. Atitude irracional de "homo sapiens".

Sabemos algo do passado porque meios físicos chegaram até nós ao longo de milênios. Argila, pedra, couro, papiro, tabuinhas, papel, pele, osso... no entanto, nada ficou da cultura humana que não estivesse registrada em algum material que durasse no tempo.

E neste momento da história humana, primeiro quarto do século XXI, boa parte do conhecimento humano que vem sendo produzido nas últimas 3 décadas não está salvo e registrado em nenhum meio físico, nenhum! Só no meio digital das big techs, dos "overlords", pra usar a linguagem do neurocientista e romancista Nicolelis. Salvo na máquina dos nossos inimigos... nas nuvens!

Eu mesmo tenho milhares de textos com a história coletiva do meu país, do meu segmento social, da minha vida privada - que não deixa de ser pública, pois somos legião, somos seres humanos - dispersos nas plataformas dos inimigos da humanidade. 

É uma obrigação ética de alguém consciente preservar em meios duráveis a nossa história humana. Por mais que a ideologia da classe dominante se imponha neste momento - a ignorância e o desprezo pela história - tenho (temos) que preservar e sistematizar nossa produção cultural e histórica.

Decidi não priorizar mais nada até terminar minha tarefa de preservar tudo que registrei na vida nas duas décadas que escrevi como dirigente da classe trabalhadora brasileira. 

E digo aqui que está dando muito trabalho fazer isso. Muito! Nem bunda tenho para tantas horas lendo, corrigindo textos, diagramando, salvando e encadernando. 

Sistematizar e preservar minha produção textual é um compromisso ético para com as pessoas que amo, que me consideram e para a imensidão de gente que está por aí - a humanidade -, capturada sem tempo de pensar, de ser gente humana, que está no "corre", sobrevivendo ao instante.

Seguirei trabalhando para preservar a nossa história humana, enquanto os overlords das plataformas digitais se preparam para dominar o mundo inteiro (reescrevendo e inventando a história).

William 


terça-feira, 4 de março de 2025

Dom Quixote de la Mancha - Cervantes (5)


Don Quijote em Toledo, Espanha.


Refeição Cultural

“-Yo sé quién soy - respondió don Quijote-, y sé que puedo ser no sólo los que he dicho, sino todos los Doce Pares de Francia y aun todos los nueve de la Fama, pues a todas las hazañas que ellos todos juntos y cada uno por sí hicieron, se aventajarán las mías.” (de “El ingenioso caballero don Quijote de la Mancha. Parte 1 [Spanish Edition]” por “Miguel de Cervantes”)


Sigo na aventura de acompanhar nosso cavaleiro andante em suas primeiras façanhas. Após os incidentes da primeira saída de Dom Quixote, já é dado a ele a primeira alcunha: "El herido Caballero del Bosque".

Depois de "salvar" o pobre Andrés do açoite (no capítulo anterior: aqui), Dom Quixote quis que um grupo de mercadores de Toledo enaltecesse a beleza sem igual de sua amada Dulcinea del Toboso.

Ele se deu mal no confronto com a turba (os mercadores) porque Rocinante escorregou no caminho. Levou muita pancada e não conseguiu mais se levantar.

Neste capítulo, o senhor Alonso Quijana é encontrado nessa situação por um vizinho, caído e todo moído de levar pauladas de um servo dos mercadores.

O bondoso conhecido - Pedro Alonso - vai levá-lo de volta pra casa.

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CAPÍTULO 5

"Donde se prosigue la narración de la desgracia de nuestro caballero"


Através de alguns trechos do capítulo 5 é possível compreender a criatividade e engenhosidade de Miguel de Cervantes no trato com seus leitores. 

Ele se mantém fiel ao que contratou com os leitores no "Prólogo", mas aos poucos nós leitores já vamos esquecendo o senhor Alonso Quijana e vamos nos envolvendo emocionalmente com Dom Quixote. 

Já vivi a experiência de ler os dois volumes do clássico cervantino. Depois que Dom Quixote sair novamente, a 2ª saída, já acompanhado de seu fiel escudeiro Sancho Pança, não nos lembraremos mais do senhor Quijana.

Seremos todos Dom Quixote.

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EXCERTOS

Senhor Alonso Quijana é encontrado pelo vizinho Pedro Alonso:

“Y quiso la suerte que, cuando llegó a este verso, acertó a pasar por allí un labrador de su mesmo lugar y vecino suyo que venía de llevar una carga de trigo al molino, el cual, viendo aquel hombre allí tendido, se llegó a él, y le preguntó que quién era, y qué mal sentía, que tan tristemente se quejaba. Don Quijote creyó sin duda que aquél era el marqués de Mantua, su tío, y así, no le respondió otra cosa sino fue proseguir en su romance, donde le daba cuenta de su desgracia y de los amores del hijo del emperante con su esposa, todo de la misma manera que el romance lo canta.”

O engenhoso cavaleiro andante está caído ao solo e segue esperando por um sábio ou sábia com alguma poção que o cure das feridas em batalha...

“-Señor Quijana - que así se debía de llamar cuando él tenía juicio y no había pasado de hidalgo sosegado -a caballero andante-, ¿quién ha puesto a vuestra merced desta suerte?”

Dom Quixote segue com suas lamúrias descrevendo cavaleiros e feiticeiros enquanto rola pelo chão todo moído. Ele entende que seu vizinho é um dos personagens que idealiza em sua cabeça. O vizinho insiste:

“-Mire vuestra merced, señor, ¡pecador de mí!, que yo no soy don Rodrigo de Narváez ni el marqués de Mantua, sino Pedro Alonso, su vecino; ni vuestra merced es Valdovinos, ni Abindarráez, sino el honrado hidalgo del señor Quijana.”

Nosso ferido Cavaleiro do Bosque responde de forma convicta ao seu vizinho:

“-Yo sé quién soy - respondió don Quijote-, y sé que puedo ser no sólo los que he dicho, sino todos los Doce Pares de Francia y aun todos los nueve de la Fama, pues a todas las hazañas que ellos todos juntos y cada uno por sí hicieron, se aventajarán las mías.”

DE VOLTA AO LAR (fim da 1ª saída)

O vizinho chega com o senhor Alonso e encontra reunidos a ama e a sobrinha, o licenciado Pero Pérez - o cura - e o barbeiro senhor maese Nicolás, amigos do antes honrado fidalgo Alonso Quijana, leitor voraz de romances de cavalaria. Comentam que aquele tipo de leitura é coisa do demônio.

“Encomendados sean a Satanás y a Barrabás tales libros, que así han echado a perder el más delicado entendimiento que había en toda la Mancha.”

A sobrinha afirma:

“Mas yo me tengo la culpa de todo, que no avisé a vuestras mercedes de los disparates de mi señor tío, para que lo remediaran antes de llegar a lo que ha llegado, y quemaran todos estos descomulgados libros, que tiene muchos, que bien merecen ser abrasados, como si fuesen de herejes.”

Eles conversavam sobre as consequências da leitura daquelas histórias sem pé nem cabeça contadas nos livros de cavalaria, tão populares à época. 

Cervantes apresenta aqui a questão de se lançar os livros à fogueira, algo comum ao longo dos séculos e séculos, em um mundo dominado pela igreja e pelos monarcas.

O senhor Quijana segue sendo Dom Quixote e intervém na conversa ao redor dele, culpando o pobre pangaré nominado Rocinante:

“-Ténganse todos, que vengo mal ferido por la culpa de mi caballo: llévenme a mi lecho, y llámese, si fuere posible, a la sabia Urganda, que cure y cate de mis feridas.”

E vamos caminhando para o final do capítulo.

“Hiciéronle a don Quijote mil preguntas, y a ninguna quiso responder otra cosa sino que le diesen de comer y le dejasen dormir, que era lo que más le importaba. Hízose así, y el cura se informó muy a la larga del labrador del modo que había hallado a don Quijote. El se lo contó todo, con los disparates que al hallarle y al traerle había dicho, que fue poner más deseo en el licenciado de hacer lo que otro día hizo, que fue llamar a su amigo el barbero maese Nicolás, con el cual se vino a casa de don Quijote.”

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Amigas e amigos leitores, que romance extraordinário! A leitura de Dom Quixote foi uma das maiores aventuras literárias de minha vida.

William

segunda-feira, 3 de março de 2025

Poesia 20: Ainda estou aqui


AINDA ESTOU AQUI


Eunice Paiva vê notícias de Rubens na TV,

seu olhar antes distante, reconhece o instante. 

Marcelo percebe o momento de Eunice:

ainda estou aqui.


Há dez anos, Marcelo dividiu conosco

a história de Eunice e de sua família.

Graças à Comissão da Verdade e Dilma

as novas gerações puderam saber

a verdade da ditadura que não passou na TV.


Fernanda Torres e Selton Mello deram vida

nas telas do cinema à história de Eunice,

Rubens, Marcelo Paiva e família.

Na direção, Walter Salles mostrou ao mundo

os olhares de nossas divas fernandas.


Agora o mundo conhece 

Fernanda Torres e Eunice Paiva.

Através da leitura, cultura e pela sétima arte,

fica o alerta ao perigo do dia:

Ditadura nunca mais! Sem anistia!


William 

03/03/25

(Uma homenagem a Eunice e família e ao cinema brasileiro pelo Oscar)

sábado, 1 de março de 2025

O nome da rosa: arquitetura



Refeição Cultural 

Umberto Eco, um grande pensador


"Pois a arquitetura é dentre todas as artes a que mais ousadamente busca reproduzir em seu ritmo a ordem do universo, que os antigos chamavam de kosmos, isto é, ornado, enquanto parece um grande animal sobre o qual refulge a perfeição e a proporção de todos os seus membros. E seja louvado o Nosso Criador que, como diz Agostinho, estabeleceu as coisas em número, peso e medida." (p. 34)


O noviço beneditino Adso de Melk estava impressionado com o conjunto arquitetônico que via na abadia que acabara de adentrar em companhia de seu mestre, o sábio franciscano frei Guilherme de Baskerville, mais ou menos entre 1324 e 1327 quando pensou a ideia acima.

Ao pegar o clássico de Umberto Eco para ler semanas atrás, parei quando estava chegando à metade do livro. Percebi que não estava lendo com a devida atenção. 

Paulo Freire nos ensina lição importante sobre leitura: devemos prestar atenção e compreender cada palavra e sentença do texto que estamos lendo. Ler é compreender o texto lido, é refletir sobre a leitura e seu significado. Não importa a quantidade de leitura, mas a qualidade da leitura. 

Para se ter uma ideia do quanto minha leitura anterior estava inadequada, ao ler a descrição sobre a impressão que os personagens tiveram ao se depararem com a abadia, eu não havia criado em minha mente a imagem da descrição que Adso fez da entrada pelo único portal da muralha, não tinha imaginado a alameda até a igreja, o horto à esquerda e outras descrições do cenário. Eu havia lido sem ler.

Adso diz ser a abadia em questão a mais bela que viu na vida, citando outras famosas para comparar. 

Enfim... se for para ler, devemos ler corretamente. 

William 


Bibliografia:

ECO, Umberto. O nome da rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: O Globo; Folha de São Paulo, 2003.