Este blog é para reflexões literárias, filosóficas e do mundo do saber. É também para postar minhas aulas da USP. Quero partilhar tudo que aprendi com os mestres de meu curso de letras.
domingo, 31 de maio de 2020
Decamerão (Boccaccio) - 60 novelas lidas
Refeição Cultural
" - e como o novelar será feito para dar encantamento a vocês e aos outros -, não percebo com que fundamento poderá alguém, no futuro, censurá-las. Além disto, este nosso grupo, desde o primeiro dia, até o presente instante, tem tido um proceder honestíssimo. Por palavra que se tenha dito não acho que tal proceder se tenha manchado, nem virá a manchar-se, com o auxílio de Deus. Além do mais, quem é que não está ciente da honestidade de vocês? Acredito que tal honestidade não poderia correr risco por causa de algumas palestras divertidas, e nem mesmo com o terror da morte..." (Boccaccio, Decamerão, p. 455)
Certo dia, motivado pelas desgraças que assolavam o mundo e o país onde vivo, decidi pegar na estante o livro de Giovanni Boccaccio, Decamerão, e começar a lê-lo. Isso foi há 60 dias. O mundo vivia uma pandemia que se espalhava rapidamente e o Brasil começava a contar vítimas fatais.
O país jabuticaba iria enfrentar uma situação única no mundo. Enquanto a quase totalidade dos países do mundo seguiam as recomendações das autoridades sanitárias e de saúde, que recomendavam o isolamento social e a quarentena para se evitar a rapidez de contaminação pelo vírus Covid-19, sem vacina e sem remédio, e com índice alto de morte mesmo após atendimento com ajuda de aparelhos, a eterna colônia dominada por vigaristas atua em sentido contrário ao mundo civilizado. O inumano no poder atuou e atua para que os pobres sigam nas ruas e trabalhando para os caras da casa grande e que se dane as mortes relativas à pandemia.
E assim chegamos ao dia de hoje, um domingo, último dia de maio, 60 novelas depois e 60 dias depois que comecei a ler Decamerão, com o Brasil dos milicianos ocupando a segunda posição no mundo em número de infectados, 514.849 pessoas, e ultrapassando quase todos os países em número de vítimas fatais, 29.314, deixando para trás os países que sensibilizaram o mundo pelo desastre no número de mortos durante meses: França e Espanha, sendo que vamos ultrapassar a Itália e a Inglaterra nos próximos 4 ou 5 dias. O "campeão" em contaminados e mortos é o país cujo governo pensa e age igual ao genocida daqui, os Estados Unidos do inumano irmão siamês do daqui.
Amanhã começo as narrativas da 7ª jornada no romance de Boccaccio. A 6ª jornada foi de estórias curtas, a temática que as 7 moças e os 3 rapazes desenvolveram foi sobre frases e sentenças inteligentes, que livravam seus emissores da morte ou de algum problema sério.
"Tem início a sexta, sob o reinado de Elisa, na qual se discorre sobre quem, tentado com alguma frase elegante, consegue salvar-se por meio de resposta rápida, ou mesmo de esperteza, fugindo da perda, de perigo, ou de zombaria." (p. 423)
A jornada que se inicia agora, a 7ª, sob o comando de Dionéio, propôs que se fale sobre ações não muito abonadoras que as mulheres tenham feito em relação aos seus companheiros. Algumas moças não gostaram da proposta, por isso que o líder teve que lembrar a elas que o propósito deles ao sair da mortandade da Peste e ir para lugar agradável e afastado era contar estórias com o objetivo de passatempo e prazer, ou seja, estamos falando de ficção. Por isso, deixei a citação feita por Dionéio na abertura desta postagem.
Só buscando algum conforto nos livros e nas narrativas ficcionais para suportar tanta desgraça oriunda das pandemias que enfrentamos. Além da Peste atual por vírus, temos uma guerra fascista em andamento, e a qualquer hora estaremos enfrentando mais mortes - por armas e violência causada por eventual ruptura social. Nossa democracia acabou desde o golpe de Estado em 2016.
Somos ameaçados pelo vírus Covid-19 e pelo ódio e violência dos monstros criados pelos meios de comunicação empresariais (P.I.G.), que estragaram de vez o que era o povo brasileiro, criando fake news durante todo o período dos governos do PT, Lula e Dilma. Essa pandemia do ódio e do bolsonarismo é consequência disso e vai demorar 100 vezes mais tempo para passar que a pandemia do novo coronavírus. Essa é minha opinião política, após atuar na luta de classes por mais de duas décadas como representante dos trabalhadores.
As próximas 40 novelas e narrativas serão lidas se a Sorte ou Fortuna me permitir viver nesse período conturbado. Como Boccaccio aponta no romance, a Fortuna ao fim e ao cabo é quem define tudo nos rumos dos acontecimentos em nossas vidas.
William
Um leitor
Bibliografia:
BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. Imortais da Literatura Universal, Nova Cultural, São Paulo, 1996.
Instantes (15h34)
Imagem de divulgação. |
(atualizado em 24/7/20)
O estudante sabia que tinha que fazer a lição até o dia seguinte, o último dia de prazo. A lição havia sido pedida há uns quinze dias. Mas ele queria descansar um pouco daquele tema, língua japonesa. Deixa que no domingo ele faz e sobe o arquivo. Ao zapear a TV para ver se teria algo interessante na programação, viu que à noite iria passar o filme Blow-Up, de Michelangelo Antonioni. O filme era um clássico de um diretor clássico baseado num conto clássico de Julio Cortázar. Ele nunca leu o conto do escritor argentino, apesar de tê-lo bem ali na estante de casa, numa pequena coleção que comprou numa viagem de passeio a Buenos Aires. Decidiu que veria o filme à noite.
O filme foi bem interessante. O cinquentenário gosta mais de filmes antigos do que de filmes atuais. Sua companheira detesta filmes assim. Já ele prefere, apesar de conhecer pouco sobre filmes. O filme de Antonioni é de 1966. E o conto de Cortázar que inspirou o diretor é de 1959. No filme, um fotógrafo meio doidão tira fotos num parque e decide fotografar um casal, a mulher se incomoda e pede ao fotógrafo que lhe entregue o filme. Ele diz que depois o fará e vai embora. A mulher é uma morena e o procura depois. O filme é bem psicodélico, com uma cena envolvendo um monte de gente num apartamento em meio a drogas, bebidas e orgias. No filme todos são muito muito magros. Isso chamou a atenção. O filme tem um final que deixa a imaginação pensando a respeito dos acontecimentos.
O eterno estudante pegou o livro na estante e decidiu que na manhã seguinte iria ler o conto de Cortázar, "Las babas del diablo", do livro Las armas secretas. Logo pela manhã, "logo" seria lá pelo meio-dia porque ele não teve saco de levantar-se cedo e ficou enrolando na cama até tarde. Gostou muito do conto. Gostou. No conto, o casal não é de uma mulher e um homem mais velho; é de uma mulher adulta e loira e um jovem de quatorze para quinze anos. As estórias são diferentes. A marca comum é a paisagem erma no parque, a terceira pessoa que observa, além do fotógrafo, e do vento forte naquele instante. O final é doido também, aberto.
Esses clássicos são muito instigantes para ele, dão-lhe uma sensação de mais uma etapa vencida em seu antigo desejo de conhecer os clássicos da cultura universal.
O domingo segue. Ele tem que pegar a lição de japonês e estudar aqueles kanjis...
sábado, 30 de maio de 2020
Instantes (16h30)
No sábado, ele se levantou cedo, com a ajuda do despertador do celular, para descer até a portaria do condomínio e receber os pães que haviam sido encomendados no dia anterior. Que preguiça levantar cedo depois de mais uma madrugada fria, coisa de onze graus. Feito isso, preparou o café para o filho e para ele e ficou na mesinha da cozinha lendo um pouco. Viajou até o passado. Foi para os anos setenta, oitenta, foi para a sua infância e para os tempos de seus pais e tios. Hobsbawm contou um pouco mais, foi até os anos cinquenta e sessenta.
O historiador relembrou a ele que o Brasil e o México se industrializaram naquele período com patrocínio do Estado. O Brasil chegou a ser a 8ª economia mais industrializada num certo período da história, mas o desenvolvimento da indústria em parceria com o Estado (uma ditadura) foi com base em burocracia, corrupção e desperdício (o leitor pensou: e o crescimento econômico favoreceu a classe dominante às custas da miséria e exploração do povo pobre e trabalhador). Os dois países citados tinham população suficiente para garantir demanda e mercado interno, a demanda da população mais a demanda da máquina governamental garantiam o crescimento econômico. Hobsbawm contou também, e não era novidade, que naquele período após as grandes guerras e durante a Guerra Fria, bastava algum grupo pedir apoio aos Estados Unidos dizendo que no seu país ou novo país havia risco de ascensão do comunismo que os norte-americanos apoiavam o grupo ou ditador local para tomar o poder ou mantê-lo contra revoltas populares. Foi assim que aquela potência do Norte apoiou um monte de ditaduras corruptas e sanguinolentas naquelas décadas. Essa viagem ao passado foi através da leitura do capítulo "Terceiro mundo", do livro Era dos Extremos.
O leitor decidiu ainda ler alguma coisa que o levasse mais para trás no passado, e leu um capítulo do livro Sapiens, de Yuval Harari. Aí sim, sua viagem no tempo foi bem para trás. Harari contou a ele sobre as desvantagens dos homo sapiens terem deixado a vida de caçadores-coletores para se transformarem em agricultores. Foi uma péssima escolha, em alguns sentidos que o historiador descreve no capítulo chamado "A maior fraude da história", que está na segunda parte do livro, "A Revolução Agrícola". Não foi o homem que dominou o trigo, foi o trigo que dominou o homem, diz ele. Antes, os humanos eram livres, se alimentavam de forma variada e até nos conflitos entre um grupo e outro, as chances de sobrevivência eram maiores, com os derrotados indo embora para outro lugar. Ao se estabelecerem em algum lugar, e passarem a depender de algum tipo de planta, trigo, por exemplo, a vida passou a ser em função do trigo. Se desse algum problema na colheita, as chances de fome e morte eram grandes. Se a terra fosse disputada por outro grupo, as chances de morte também eram grandes, porque o grupo "proprietário" preferia morrer a deixar sua terra e colheita...
O leitor de história viajou algumas décadas com Hobsbawm, depois alguns milênios com Harari.
Saiu então para correr no estacionamento do condomínio; o sol estava quente e convidativo. Fechou o mês com 50 km corridos naquele pequeno espaço possível. O leitor queria sobreviver, senão pelo prazer pessoal da existência, ao menos porque tinha amor a pessoas que dependiam dele de alguma forma. Finalizou aquela manhã e início de tarde assistindo animes com a família; era uma forma de integração entre o jovem filho e os pais.
Instantes (1h20)
Não foi possível estudar língua japonesa naquele dia. A sexta-feira não foi produtiva em termos de novos conhecimentos. Afazeres diversos o desviaram do desejo de leitura e aprendizado de algo novo. A renovação do seguro do carro teve algum problema e foi preciso tratar do assunto. A bateria do carro arriou por ficar desligado durante a pandemia e foi necessário acionar a assistência para ligar o veículo. Queria correr um pouco no estacionamento do condomínio, mas também não deu certo.
Leu um pouco de Hobsbawm, mas a leitura foi truncada, toda hora tinha que interromper; nem acabou o capítulo em que estava. Leu mais uma novela do Decamerão, de Giovanni Boccaccio; ele se propôs a ler uma por dia durante cem dias. Leu um pouco a respeito dos povos originários das Américas - Guatemala e México. O texto sobre o México foi um texto de Carlos Fuentes, o prefácio do livro Los cinco soles de México, escrito no ano 2.000. Se não estudou japonês, ao menos leu vinte páginas de língua espanhola moderna. Já é alguma coisa. O texto trouxe um pouco de reflexões a ele também. Leu um pouco do Popol-Vuh, sobre os povos maias-quiché.
E assim se foi mais um dia em sua vida. As notícias do mundo lá fora foram as mesmas más notícias do novo cotidiano de pandemias. Muitas mortes e contágios causados pelo vírus e o pior momento político da história daquele pedaço de mundo. Ele havia previsto que o dia seria assim, como o famoso romance de Remarque, Nada de novo no front.
quinta-feira, 28 de maio de 2020
280520 (d.C.) - Diário e reflexões
Tia Alice, vovó Cornélia, tia Lúcia, no aniversário de 84 anos de nossa avozinha, em Uberlândia, MG. Tia Alice e a vovó nos deixaram muitas saudades. |
Eram quase dez e meia da noite desta quarta-feira e o meu intestino estava roendo fundo, não era o estômago, era um tipo de roeção no intestino. A cada dia que passamos vivendo sob o governo do Mal parece que as tripas da gente sofrem uma espécie de roeção, efeito de ver tudo o que vemos. É de dar dó ver o que virou o nosso antigo mundo, o Brasil, ver o que somos neste momento.
Por algum motivo, lembrei-me da querida tia Alice, falecida já faz alguns anos. Como amávamos nossa querida tia, irmã de minha mãe. Eu senti uma necessidade de comer uma feijoada naquele exato momento que pensei na minha tia Alice. Me lembro da alegria que eram os dias na casa da vovó e da tia porque debatíamos o mundo inteiro, tomando uma cervejinha no almoço, e no fim da tarde comendo pipoca e tomando um cafezinho.
Por sorte havia sido dia de feijoada em São Paulo e nós tínhamos pedido uma na hora do almoço. Eu não comi naquela hora. Mas tinha sobrado. Vamos lembrar que estamos sob a Covid-19 e enfrentamos uma quarentena há mais de dois meses. Quem sai para comprar as coisas necessárias sou eu, com alguma daquelas merdas de máscaras e parecendo os tuaregues no deserto.
Nunca me esqueço do dia em que estávamos na casa da vovó e da tia Alice, reunidos em família, e o almoço seria uma bela feijoada feita em casa. Minha tia estava com câncer e estava deitada no quarto. Nos revezávamos o tempo todo conversando com ela.
Fiz um prato enorme de feijoada, mesmo sendo mais de dez horas da noite. Nossa realidade é essa merda de coronavírus, com mil mortes por dia e uma disputa política feita em cima da maior pandemia do novo século, com um genocida fazendo de tudo para que morra um monte de gente que poderia sobreviver caso o governo se importasse com as pessoas e seguisse as recomendações de isolamento e quarentena que o mundo todo adotou. Essa merda toda nos trouxe um clima de morte que ninguém mereceria num mundo normal. Mas o país é uma jabuticaba, caso único no mundo.
Nunca me esqueço que a tia Alice me falou deitada no quarto que tudo que ela queria era sarar logo para poder voltar a comer e ela estava louca de vontade de comer um pouquinho daquela feijoada.
Esquentei o pratão de feijoada no micro-ondas, peguei meio copo de Coca Cola com limão espremido, escolhi ouvir uma música (Kitaro) que me fizesse relaxar um pouco dos pensamentos envoltos na desgraça que nos abateu com o governo do Mal e da morte e da mentira e do fanatismo de seguidores zumbis que perderam a capacidade de pensar. Só de se informar e de ser politizado e consciente o nível de intoxicação que sofremos nos afoga em vida. Que horror!
As vítimas acometidas pelo novo coronavírus dizem exatamente isso, que o ataque do vírus aos pulmões faz com que as vítimas sintam uma sensação de estarem se afogando no seco.
O nível de intoxicação do bolsonarismo que tomou conta do país parece que afoga a gente; quando não afoga, dá uma roeção no intestino de tanta tristeza em ver um bando de pessoas que eram seres humanos talvez normais e que hoje são zumbis acéfalos andando por aí babando e vociferando ódio, grunhindo.
Comi a feijoada lentamente, com direito a tudo o que faz mal pra saúde de quem está com pressão alta e colesterol acima da média. Ouvi Kitaro.
Se morresse agora, esta noite, por esses instantes, não morreria com vontade de comer uma feijoada como acho que aconteceu com a nossa querida tia Alice.
Vou dormir, já são mais de duas horas da madrugada. Um novo dia... um dia igual na política, de destruição do país, de mais aberrações do governo, sem nada acontecer a ele.
Provavelmente morrerão mais umas mil pessoas de Covid-19 que não precisariam morrer. Não me parece que a quinta-feira será muito diferente desta quarta.
Faça o crime que fizer, o bando enorme de vigaristas que colocaram nas instâncias de poder não vai largar o osso sem incitar uma guerra civil, como foi prometida pelo inumano que colocaram no poder.
Seguimos, já que estamos aqui. Quem sabe a gente um dia veja esses desgraçados caírem e o país voltar a ter alguma perspectiva de reconstrução.
Tia Alice, saudades! Como disse pra senhora e pra vovó no dia do enterro da vovó, eu lutei por quase duas décadas como dirigente eleito dos trabalhadores por causa de pessoas como vocês, simples, humildes e que mereciam uma vida melhor.
William
Sobrinho da tia Alice
terça-feira, 26 de maio de 2020
260520 (d.C.) - Diário e reflexões
Flores e livros. |
Refeição Cultural
Morrer agora, seria uma coisa estúpida, temos que viver e ver o fim dessa desgraça em que nos colocaram
Hoje é terça-feira, dia 26 de maio, do mundo depois do novo coronavírus.
Estou ouvindo a Sinfonia nº 5, de Beethoven, enquanto reflito sobre o momento por alguns minutos aqui neste espaço virtual de escritura. Me pareceu que a 5ª Sinfonia é propícia para o momento.
O país em que vivo, uma das regiões mais privilegiadas do planeta Terra em termos geográficos e geológicos, sofreu um processo complexo de destruição recente, destruição motivada pelo incômodo que os governos do Partido dos Trabalhadores causaram aos homens da casa grande por ter o PT distribuído um pouco da riqueza gerada pelo povo explorado e gerar oportunidades ao povão por pouco mais de uma década. Isso foi imperdoável para a elite e para os manipuláveis da chamada "classe média"!
Entre 2003 e 2016, ano do golpe de Estado que retirou o PT do governo, vi o processo de destruição do país e da sociabilidade do povo brasileiro porque eu era um dirigente político e estudioso de linguagem e comunicação e das causas populares, e vi em andamento o processo que resultaria no golpe e na tragédia seguinte.
A casa grande não suportou ver de novo o PT no poder pelo voto popular. O partido havia sido eleito democraticamente pela 4ª vez em consulta aos cidadãos brasileiros e o candidato da casa grande, do partido da chamada "social democracia" brasileira, havia avisado que se o povo escolhesse novamente o PT, o partido não governaria mais. Eles cumpriram a ameaça.
Inventaram a Lava Jato, envenenaram o povo com ódio e medo, perseguiram os partidos e lideranças do campo popular, desrespeitaram o voto de 54,5 milhões de brasileiros, e entregaram o Brasil a uma bandidagem e gente má que nunca se viu na história do período republicano do país. Chegamos aonde chegamos. Com um grupo ligado às milícias no poder, nos poderes, e um bando de centenas de homens e algumas mulheres que representa tudo o que não presta nas instâncias do Estado nacional. Perdemos todos.
Eu não aceito em hipótese alguma que se esconda ou esqueça ou releve o que era o Brasil de Bolsonaro e tucanos e destruição total dos direitos civis, políticos e sociais e das instituições do Estado antes da chegada da pandemia de Covid-19 em janeiro deste ano. Se uma fada acabasse com a pandemia hoje, nada mudaria a destruição de nosso mundo, causada pelo golpe de 2016 e pelos agentes que cito aqui. Nada!
CENA DE MATRIX QUE EXPRESSA UM POUCO DA IMPOTÊNCIA QUE SINTO
Tem um momento no clássico Matrix (1999), que nunca me saiu da cabeça, porque me faz pensar que nos encontramos naquela situação de impotência, após tanto lutarmos contra os poderosos e contra o mal. Morrer daquele jeito é muito humilhante, é uma forma muito estúpida de morrer após lutar contra tanta coisa grande e após tanta exposição à morte nas batalhas contra os inimigos.
Cypher decide trair seus companheiros de luta, faz acordo com os agentes do sistema, e chega o momento em que ele está na nave Nabucodonosor e começa a matar um por um, daqueles que estão naquele momento lutando na Matrix. Para matar seus companheiros, ele simplesmente desconecta o cabo que está plugado neles e a pessoa cai morta do outro lado. Ele está falando com Trinity pelo telefone e avisa a ela que vai matar um por um. Eu até me arrepio quando ela olha para Switch, fazendo ela perceber que chegou a vez dela morrer, e ela com olhar desesperado diz antes de cair morta: - não assim...
Belinda McClory como Switch, em Matrix. |
Me sentiria como Switch, se morresse por esses tempos, seja de Covid-19, de depressão, de doença me comendo por dentro, enfim, morrer agora, vendo toda a desgraça que nosso mundo se transformou por causa do que nos fizeram os desgraçados da casa grande e seus representantes da grande imprensa e seus partidos de merda.
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LEITURAS
Além de uma novela por dia do clássico Decameron, já li 54 em 54 dias de quarentena, estou lendo Hobsbawm, A era dos extremos, e estudando língua japonesa.
A leitura de Hobsbawn é difícil e tiro o chapéu para quem conseguiu ler de forma fluente e direta. Não consigo ler mais que 15 ou 20 páginas por dia. Cada página faz você lembrar e relembrar e refletir sobre o ontem e ligar o ontem ao hoje. É leitura que nos traz amargura, porque não aprendemos nada com a história. Que merda somos nós nesse sentido. No ritmo em que estou, e tendo firmeza de propósito, espero acabar a leitura em mais umas 18 sentadas. Coisa de vinte e poucos dias.
Desde que retomei a leitura, já li cerca de 130 páginas. Li os capítulos 6. "As artes 1914-45", 7. "O fim dos impérios", 8. "Guerra fria", 9. "Os anos dourados", e estou terminando o 10. "A revolução social 1945-90".
O capítulo em que estou me lembrou muito os governos do PT no Brasil, ocorridos no início do século XXI, porque as semelhanças em termos de avanços para as classes populares são impressionantes. Os governos de Lula e o primeiro de Dilma foram para os trabalhadores brasileiros o que foram os anos dourados dos países desenvolvidos no pós-guerra em relação aos avanços para a classe trabalhadora.
Enfim, chega. Nem sei como tive saco para escrever tanto.
William
Me sentindo meio Switch. Espero que não morra de forma tão estúpida e inútil como a personagem de Matrix, sobreviver às batalhas e morrer por uma traição.
sexta-feira, 22 de maio de 2020
220520 (d.C.) - Diário e reflexões
Falhamos, mas existem violetas flores. |
Hoje é sexta-feira, um dia qualquer depois do novo coronavírus. Um dia qualquer depois da normalização da existência de um ser escroto como o inumano que chegou ao poder. Normalização disso, do mal ter representação política com substância. Difícil isso!
Eu sou só mais um organismo vivo no meio disso tudo. Um animal humano. Um número nos dados estatísticos da comunidade humana. Uma máscara social. Apesar de ser único no Universo, de ser um universo de possibilidades, sou só um organismo no meio do Universo. Não sou nada. Não somos nada. Ao mesmo tempo em que somos únicos.
O coronavírus é uma realidade que transformou a nossa vida. Ele fez com que o cotidiano do viver da espécie humana seja mais trabalhoso, mais arriscado e menos propenso a obtenção de prazer e felicidade. No entanto, se uma mágica fosse feita neste instante, nesta sexta-feira, e a pandemia desaparecesse da face da Terra, a realidade dos brasileiros continuaria com o fato da normalização do mal representado e empoderado.
E isso faz a vida ter muito menos atratividade que antes dessa consequência que vivemos. A representação do mal empoderada é efeito de toda a destruição política causada pelos meios de comunicação empresariais só porque o povo havia eleito um partido político que vinha amenizando a miséria do povo sem rupturas do sistema ou revoluções.
Os desgraçados endinheirados desta terra que destruíram a política e as instituições do Estado são os responsáveis pelos quinhentos anos de miséria e exploração da imensa maioria do povo brasileiro, um povo de descendência de índias e mulheres pretas trazidas como escravas pelos brancos que se estabeleceram aqui para explorar o que fosse possível para o país de origem deles, na Europa.
Que vale escrever, falar, registrar alguma coisa? Nada!
Me sinto um completo fracassado quando olho ao meu redor. Por mais que esteja entre os privilegiados na questão de sobrevivência econômica. A realidade do bolsonarismo ao nosso redor é sinal que a humanidade esgotou.
A realidade de um porcaria de animal humano ter tanta riqueza acumulada equivalente a soma da pobreza de recursos de centenas de milhões de seres humanos e isso ser normalizado até pelos desgraçados que não têm nada é sinal que a humanidade esgotou.
Que adiantaria se a mágica desaparecesse com a pandemia do coronavírus neste instante, nesta sexta-feira?
Cansei. Mas como animal que sou, sigo atendendo aos meus apelos biológicos e se roer o estômago eu como, porque tenho comida; se der sono eu durmo, porque tenho onde dormir; sem escolher respiro, seja o ar com vírus ou sem vírus.
Ler, lemos, já que somos homo sapiens alfabetizados. Mas não estou encontrando prazer nisso. Cansei.
Falhamos. Falhei. Em todas as funções sociais. Falhei como indivíduo e falhamos como humanos. É só olharmos ao redor. O normal é a prova de nossa falha.
Falhei como pai, como filho, como familiar de alguém, como estudante, como amigo, como dirigente sindical, como formador, como representante político, como indivíduo da espécie humana em busca de amor e paz. Falhei. Falhei como ser humano. Basta olhar ao nosso redor.
Não me deixo matar. Não faço nada pra morrer. Mas tô me lixando pro caso de morrer.
(imagino a papelada pra jogar fora quando eu não existir mais. Tudo o que acumulamos de tranqueiras não é nada além de encheção pros outros. Por que não jogamos tudo fora antes? Porque somos humanos)
quinta-feira, 21 de maio de 2020
Lembranças - Capítulo 4
Eu e os companheiros Cacaio e Marcel, no Congresso da Fetec CUT SP em 2006. (não sei qual de nossos fotógrafos tirou essa) |
"Ontem
Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas.
De como o banco
não reteve forma,
cor ou lembrança.
Nem esta árvore
balança o galho
que balançava.
Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado
não no ar, em mim,
que por minha vez,
escrevo, dissipo.
(A rosa do povo, 1945, C.D.A.)
Estamos no ano de dois mil e vinte. Século vinte e um. Ao olhar para trás e pinçar lembranças de meio século de existência, fazemos vários exercícios ao mesmo tempo. Refletimos sobre aonde chegamos; supomos aonde poderíamos ter chegado caso as veredas escolhidas ou trilhadas fossem outras; olhamos para o instante atual e para aonde vamos ainda. Até que a vida cesse.
Pode ser que nossa impressão das coisas não seja a mais adequada para classificar um tempo, um lugar e uma tendência em relação ao amanhã porque nosso olhar é inevitavelmente atomizado. No entanto, fazemos isso enquanto humanos pensantes. Ao viver cinco décadas é possível avaliar, comparar, traçar esboços sobre ontem, hoje e amanhã. Ainda mais quando tentamos ao longo da vida estudar a história humana e ver no que deram as coisas do passado.
A minha consciência de cidadão foi moldada e desenvolvida em contextos diversos ao longo da vida. Na primeira década, fui criança feliz, de lembranças felizes. Na segunda década, foram tempos de rupturas, despedidas da inocência, dificuldades financeiras e revolta: raiva e ódio de tudo e todos. Na terceira década, novas mudanças na vida, emprego público, estudos universitários, novas revoltas, tentativas vãs de se tornar uma pessoa feliz e cidadã. Nas últimas duas décadas, a maior experiência adquirida na vida: a representação de classe e as lutas coletivas no movimento sindical e popular. Essa fase me salvou e me fez uma pessoa melhor.
Neste momento em que estou fora da política, em que não pertenço mais aos quadros do movimento organizado de lutas da classe trabalhadora, um turbilhão de coisas atormentam nossa consciência: sensações, sentimentos, revoltas, pusilanimidades, outras mais. Eu me revolto em ver a passividade do povo brasileiro frente à hecatombe a qual nos submetemos. O país, o povo, as instituições estão sendo sacrificadas em benefício dos donos da casa grande e dos deuses do império do norte e o silêncio impera nos matadouros sanguinolentos.
Não resolveriam meus tormentos algum companheiro vir me dizer que ao invés de apontar a fraca reação dos movimentos organizados eu, euzinho, deveria fazer algo, sair por aí organizando a resistência. Não funciona assim a organização de uma luta coletiva. A resistência a um regime autoritário, à tirania, ao poder totalitário dos capitalistas e poderosos deve ser organizada e dirigida de forma estratégica e pensada a partir de organizações coletivas. Sem essa de "movimento espontâneo das massas".
E é isso que me revolta: não perceber a resistência e não vê-la acontecer a partir das organizações formais da classe trabalhadora. Tenho a noção das dificuldades, por exemplo, que o movimento sindical está enfrentando após os ataques desferidos pelos golpistas ocupando posições estratégicas no Estado tomado por golpe. As reformas após o Golpe de 2016 esgotaram os recursos dos sindicatos, feriram de morte cada organização dos trabalhadores, mas cada membro dessas organizações tem um mandato e um mandato é muita coisa. Repito o que disse por tanto tempo aos companheiros e companheiras do movimento organizado. Um mandato deve ser exercido até o limite do possível.
Enfim, a classe trabalhadora precisa resistir à destruição de nosso mundo. Não só com boa vontade ou com posturas conciliatórias, pois não se concilia e ou negocia sem o outro lado estar disposto a isso. É preciso juntar indignação, tesão em lutar contra as injustiças, inteligência tática e estratégica, capacidade para se reinventar e, sobretudo, é hora de resgatar os princípios, as concepções e práticas sindicais que nortearam a criação do Novo Sindicalismo e a Central Única dos Trabalhadores - CUT -, movimento de massas exitoso que vigorou do final dos anos setenta até as experiências dos governos do Partido dos Trabalhadores na Presidência da República. Percebo que os movimentos sindical, partidário e estudantil refluíram perigosamente nos dias que correm.
A IMPORTÂNCIA DA ALTERIDADE, DA OPOSIÇÃO E DO DIFERENTE NA FORMAÇÃO DA GENTE E NA EXISTÊNCIA DAS INSTITUIÇÕES HUMANAS
- ME LEMBRO que a proposta chegou à reunião da Executiva com a melhor das intenções. A liderança que a trouxe havia feito um grande esforço para construir a unidade com as mais diversas forças atuantes no movimento, incluindo a oposição, e se a proposta fosse endossada por aquele fórum e pela diretoria do Sindicato começaríamos a campanha salarial dos bancários em 2005, em tese, com menos embates entre as forças do movimento e mais focados no embate com os banqueiros. Mesmo não sendo mais diretor executivo porque decidimos no nosso coletivo político que eu iria desempenhar outro papel a partir de 2005, estava naquela reunião porque era representante de São Paulo na Comissão de Empresa dos Funcionários do BB (CEBB ou COE) e o sindicato tinha definido que as representações em instâncias de outros graus - federação, confederação e central - participariam das reuniões da Executiva. A proposta em pauta era definir por indicação das forças políticas os delegados e delegadas de nossa base para os encontros regionais e nacionais - BB, Caixa e Conferência Nacional. Apesar de ter um certo sentido a construção de unidade proposta, pedi a palavra e apontei algumas questões que deveriam ser levadas em consideração em relação àquela proposta de início de campanha salarial. A mais importante delas era o fato de que não haveria assembleia geral para início do processo de campanha da categoria. No movimento, existem diversas formas de definição de delegação para encontros, conferências, congressos e demais fóruns coletivos, mas o mais tradicional e representativo ainda é a assembleia de base. Meu questionamento causou um certo mal-estar e a reunião ficou bastante tensa a partir daquele momento. Cada dirigente apresentava seus argumentos a favor da proposta. Insisti que não começar a campanha salarial com assembleia de base poderia comprometer todo o processo e macular nossa história cutista. A reunião foi interrompida. O tema voltou um ou dois dias depois. Vocês podem imaginar a "correria" que foi. O prazo foi suficiente para boas reflexões e conversas com mais lideranças do movimento. Acredito que todos aprendemos com aquele processo. A decisão foi realizar assembleia. A direção e os funcionários do Sindicato fizeram a convocação da base com um excelente debate político e a campanha começou e terminou de forma muito positiva. Uma posição contrária, e respeitada, em meio às demais valeu a pena. Se o processo na época fosse o simples "vamos votar e contar os votos" tudo poderia ter sido diferente, com perdas a todos. Naquele dia, fiz o papel do jurado nº 8, o senhor Davis (Henry Fonda), no clássico "Doze homens e uma sentença", de 1957.
- ME LEMBRO que a gestora responsável pela área que cuidava da organização das conferências de saúde da Cassi, área que fazia a relação com as unidades administrativas e com as CliniCassi, veio me dizer meio sem jeito que a coordenação do Conselho de Usuários daquele Estado onde haveria conferência mandou me dizer que não era preciso que eu fosse ao encontro. Depois soube que não era pra eu ir lá. Ser gestor eleito da maior autogestão do país não seria algo simples, tínhamos noção clara do desafio que enfrentávamos. Ainda mais porque eu havia aceito a missão de participar do processo eleitoral consciente que, se fosse eleito, teria que manter minha postura em relação aos princípios, concepções e práticas sindicais que aprendi como dirigente do maior sindicato de bancários do país e da nossa confederação. Eu nunca abri mão de fazer trabalho de base e estar próximo aos representados. Disse para nossa gestora que a agenda estava mantida e eu estaria na conferência conforme planejado. Chegando ao estado, fiz tudo que estava previsto, visitar órgãos do banco, fazer reunião com o Conselho de Usuários e fazer minha palestra na conferência. Não fui destratado em momento algum, as provocações políticas foram aquelas às quais estávamos acostumados. Eu tenho muito respeito ao processo político porque a política é a melhor alternativa para a solução de conflitos nas sociedades humanas. O inverso da política é a violência e a guerra, é a intolerância e o desejo de extermínio do outro. Neste caso específico, eu voltei ao Estado outras vezes e, felizmente, conseguimos criar uma relação de muito respeito com as lideranças de outros campos políticos, relação que chega a me emocionar. É possível superar diferenças com humildade e convicção naquilo que acreditamos.
- ME LEMBRO que quando assumi o Complexo São João do Banco do Brasil senti aquele frio na espinha porque sabia da história daquele local, a famosa Agência Centro (018). No Sindicato, tínhamos algumas estratégias de trabalho de base por parte da diretoria e dos funcionários políticos. Politicamente, nos organizávamos por regionais e por coletivos de bancos. Nosso coletivo do BB foi uma verdadeira escola política para mim. Após a campanha salarial de 2003, acabei sendo escolhido para fazer parte da Diretoria Executiva do Sindicato, sem pasta inicialmente e depois fui para a Organização. Ao deixar de ser o responsável político pelas questões do BB nas regionais Oeste e Osasco, entendemos que era importante que eu mantivesse o trabalho de base que vinha fazendo, mesmo estando na Executiva. Definimos que eu seria responsável pelo São João, que era ao lado do Edifício Martinelli, sede do Sindicato. Evidente que seria difícil conciliar os trabalhos da Executiva e o trabalho de base num local gigante com 22 dependências à época e quase dois mil funcionários. Com as estratégias que aprendi de OLT nas regionais anteriores, fui a campo. Caderneta na mão, firmeza e humildade para ouvir os bancários, e começamos o trabalho de base, andar por andar. Foi uma das experiências sindicais que mais me exigiram formação política porque havia muitos colegas de forças políticas distintas, ou seja, havia uma forte oposição à corrente majoritária da direção do Sindicato, a Articulação Sindical/CUT. Como eu mapeava tudo, me lembro que eram perto de uns 40 militantes de oposição, parte mais radicalizada, parte com mais diálogo. Tratei logo de organizar uma militância de no mínimo uns 40 colegas que apoiavam o nosso trabalho no local. Foram tempos nos quais os bancários se acostumaram a participar de muitas reuniões com posições diferentes, história do movimento, definições de táticas e estratégias para lutar por nossos direitos. Eu acho que nunca estudei tanto em minha vida (quer dizer, depois estudei do mesmo tanto na direção da Cassi). Ao voltar da base, já tratava de estudar mais ainda os temas que discutíamos e lia e escrevia e pesquisava e conversava com os dirigentes mais experientes etc. O debate ser bem feito no São João era fundamental para qualquer definição política do movimento porque a proximidade com o Auditório Azul no Martinelli e com a quadra dos bancários na Tabatinguera fazia com que a maior parte de uma reunião de base fosse oriunda de complexos como o São João. Ainda me lembro de dezenas de colegas do período, da oposição e próximos a nós. Muitos são amigos até hoje. Eu sou muito grato ao fato de ter havido tanto pensamento e posição política diferente no local onde eu era responsável. Me fez crescer como dirigente e como ser humano. Acredito que fizemos um trabalho honesto e ético naquele complexo do BB. Ganhamos assembleias importantes no período, com debates respeitosos entre os diferentes. Não ir para o TST em 2004 foi uma das assembleias marcantes em minha vida. Havíamos feito intensamente esse debate com as bases no BB, dos prejuízos que isso nos causaria. A decisão foi apertada e a contagem foi por urnas. Mais de mil votantes. Ganhamos por cerca de 100 votos. Praticamente o único sindicato no país que votou contra a ida ao TST naquele período de longa greve de um mês. Enfim, a democracia e a política são fundamentais em nossas vidas. Eu sempre dizia nas reuniões que os bancários não deveriam votar nos colegas por serem seus conhecidos; deveriam votar nas propostas e nas consequências delas. Vejam o que deu parte grande de nossos colegas da ativa e aposentados votarem no inumano que chegou ao poder por fraudes em 2018. O voto sempre terá consequências.
- ME LEMBRO de algumas posições políticas que tive e que foram derrotadas no movimento sindical. Entendo que isso faz parte da política e da democracia. Uma vez, houve uma assembleia específica do Banco do Brasil na base de nosso Sindicato para decidir sobre as regras da PLR. A direção do banco e a direção do movimento estão sempre disputando suas teses e suas preferências em relação às formas de distribuição dos recursos apartados para o pagamento de lucros e resultados. A direção do banco tem preferência por alocar mais recursos para o topo da pirâmide, os gestores e setores de confiança deles; a direção do movimento busca equalizar o máximo possível a distribuição dos recursos para o conjunto dos trabalhadores, sem excluir ninguém, por entender que todos contribuíram para a produção daquele resultado. Para vocês terem uma ideia do que estamos falando, antes de 2003, do governo do PT e da assinatura de Acordo de PLR com a confederação da CUT, a direção do banco distribuiu recursos a título de PLR por diversos semestres entre 1998 e 2002 excluindo dependências de receber, não pagando nada para milhares de bancários e a diferença entre o que se pagava para os altos executivos e os escriturários era absurda. Só com a greve de 2003 é que os funcionários do BB passaram a receber PLR com regras contratadas com a CNB/CUT, sem excluir ninguém e com regras claras a todos. Ia contando sobre uma assembleia de PLR em que fiz a defesa de rejeição da proposta e a maioria foi favorável a ela. A direção do banco sempre teve birra com funcionários mais antigos de casa. Toda negociação e propostas patronais sempre queriam favorecer gente nova e deixar de lado os mais antigos. Foi assim que estourou a greve de 2003, quando a direção propôs índice de 6,6% mais duas letras de antiguidade, prejudicando os colegas das letras E11 e E12, que teriam reajustes menores. O banco propôs que a regra de PLR seria não pagar os escriturários e caixas na parte relativa aos salários de acordo com o que cada um ganhava. Propôs pagar a média da função (E6), pois não queria pagar mais aos caixas e escriturários antigos (sabemos que esse segmento sempre foi vanguarda do movimento). A estratégia tinha uma lógica, puxar para o lado do banco os funcionários novos. Ao fim das negociações, eu não concordei com isso. Meus companheiros da direção ficaram divididos, mas acabei ficando sozinho porque existe uma lógica pragmática em final de negociações coletivas. Eu entendo isso. Pedi licença aos companheiros para me posicionar contrário, porque a questão me incomodava muito. Na assembleia fiz a fala explicando que isso era uma disputa ideológica por parte da direção do banco e que deveríamos forçar mais para retirar esse detalhe do item de porcentagem do salário (individual ou a média E6). Outra pessoa defendeu que era pegar ou largar, não me lembro se dirigente ou bancário de base. A assembleia aprovou a proposta de PLR. A vida seguiu. Mas não tenho o que reclamar. Ao longo dos anos, nós melhoramos muito a PLR do BB para os bancários e eu tive participação importante nisso, em sempre puxar parte substancial do montante apartado para a base da pirâmide, para as funções básicas e médias de carreira.
São muitas lembranças que temos sobre a importância de permitir o debate de ideias nas definições políticas no movimento sindical e político, nas mais diversas instâncias da sociedade humana.
Hoje, vivemos um dos piores momentos da história da luta de classes no Brasil. O mal chegou ao poder e estamos sendo destruídos, tudo, os direitos civis, sociais e políticos.
Temos que construir unidade nas representações da classe trabalhadora para enfrentarmos as representações daqueles que estão no poder e representam a classe patronal, representam os donos de todos os meios de produção e que avançam para uma exploração cada vez maior da imensa maioria do povo.
William
Post Scriptum:
Capítulo 1, ler aqui.
Capítulo 2, ler aqui.
Capítulo 3, ler aqui.
terça-feira, 19 de maio de 2020
190520 (d.C.) - Diário e reflexões
Refeição Cultural
"Ontem
Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas.
De como este banco
não reteve forma,
cor ou lembrança.
Nem esta árvore
balança o galho
que balançava.
Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado
não no ar, em mim,
que por minha vez,
escrevo, dissipo."
(A Rosa do Povo, 1945, CDA)
Hoje é dia 19 do mês de maio posterior à pandemia do novo coronavírus (ano 1?). Essa invenção de calendário é um treco interessante por parte dos homo sapiens. As definições são sempre arbitrárias. Nos dias que correm aqui no Ocidente, temos em vigor o calendário gregoriano, que substituiu o juliano. Estamos no ano de 2.020. Pelo calendário do judaísmo, estamos no ano 5.780.
Calendário é um invento tão arbitrário que poderíamos estar no ano 5 bilhões e alguma coisa, já que o planeta Terra tem essa idade e vem fazendo seus movimentos de rotação e translação e dando voltas na órbita do Sol durante esses bilhões de anos aí. Hoje poderia ser dia 19 de maio do ano da graça do Big Bang de 5.000.000.001, o 1 ficaria por conta da nova realidade humana após a Covid-19 (arbitrário também, mas... e daí?).
Neste momento em que escrevo, estão contabilizados 321.999 mortos pelo vírus Covid-19, que já contagiou 4.876.906 humanos. De cerca de 200 países do mundo, o que eu vivo é praticamente o único no qual o governo central, presidido por um monstro inumano, atua de forma inversa no combate à pandemia mundial em relação ao que preconiza a OMS: o isolamento social e a quarentena para evitar a velocidade de contaminação das pessoas, o colapso dos sistemas de saúde e a morte de multidões de vítimas sem atendimento médico.
Vivo num país jabuticaba, com um povo mais bárbaro que os outros. Os monstros no poder pretendem praticar uma forma de eugenia, eliminando pela pandemia multidões de pobres e idosos e parte das vítimas são tão ignorantes e bárbaras que são manipuladas pelos sistemas de ideologia vigentes na atualidade: líderes de religiões com grande facilidade de retórica e sistemas de comunicação que permitem acesso irrestrito a cada indivíduo o tempo integral de sua vida, redes sociais.
Mudando de assunto, afinal de contas, se seguir descrevendo essas desgraças, minha pressão arterial subirá mais ainda e meu corpo vai acelerar a destruição interna dos órgãos que me fazem existir...
----------------------
Abri a postagem com um poema de Drummond: "Ontem".
Antes gostava de motos, ouvia muito mais música que hoje, queria ir a lugares e fazer um monte de coisas. Fiz a vida seguir adiante perseguindo objetivos inventados justamente para seguir caminhando, mesmo sabendo que não há caminhos e que somos nós que fazemos as trilhas, as veredas, as jornadas. O caminho é mais importante do que o fim dele, os sábios apontam isso faz tempo.
Neste momento de minha vida, tá tudo esquisito. Na minha e na de milhões de pessoas. Tá difícil definir objetivos a perseguir, definir metas que façam valer a pena o existir diário. Se o existir não for uma jornada, uma vereda que leve a pessoa a algum lugar, tudo perde o sentido, a motivação. Isso não é uma contradição com o que disse no parágrafo anterior. Se o topo do Himalaia é o sonho, fazer as montanhas brasileiras poderia ser uma realidade de caminhos felizes: Monte Roraima, Pico da Neblina, Pico da Bandeira, Pedra da Mina.
Se eu olhar para trás, verei claramente que num momento defini que queria isso ou aquilo, que iria fazer isso ou aquilo, e tudo passou a fazer sentido, as dificuldades eram apenas etapas difíceis do caminho. Amassar barata na cara em barracos que morei, quebrar concreto e mexer com encanamento com fezes dos outros, furar latas de palmito podre, sofrer e chorar por uma humilhação ou outra, uma frustração, uma perda... enfim, quando se tem metas traçadas, e firmeza de propósito, a gente aguenta o peso do mundo duro.
Acho que está faltando algo que me faça aguentar suportar a existência do mal, suportar que parte de meus familiares e gente que eu conheço são bárbaros apoiadores do bolsonarismo, suportar as fragilidades que temos por sermos animais humanos, frágeis como uma flor que desabrocha ao Sol ou como um filhote indefeso que acaba de nascer. Somos tão frágeis que uma bosta de um vírus põe em risco nossa espécie e pode nos matar em dois ou três dias.
Passei a vida inventando objetivos e perseguindo eles para fazer valer a pena estar vivo neste mundo duro. Durante umas duas décadas, foram objetivos pessoais que me moveram. Durante outras duas décadas, foram objetivos coletivos. Minha vida de representação da classe trabalhadora é mais conhecida de meus amigos atuais. Foram anos de dedicação, ética sindical e lutas solidárias.
Paraquedismo, me enfiar em cavernas, me pendurar em cachoeiras, ter uma Sete Galo (Honda 750 four), acampar, pegar estrada, fazer projetos de grandes viagens (que não fiz), ter uma casa própria; sonhos inventados que faziam os dias valerem a pena como uma jornada, a vida que era vida no dia a dia. Esses foram meus tempos antes do movimento sindical.
A vida tinha uma lógica que fazia a gente suportar as coisas. Quando você conseguia uma boa moto, lá na frente você se via tendo uma Harley Davidson. Se já conhecia paisagens legais de meu mundo, algumas que fossem, ainda tinham muitas aqui e acolá para conhecer. Eu sonhava com o Himalaia, o Grand Canyon. Sonhava fazer mil quilômetros no Caminho de Santiago de Compostela.
"Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado
não no ar, em mim,
que por minha vez,
escrevo, dissipo."
Engraçado. As coisas já haviam mudado antes da Covid-19. Eu mudei. A gente muda o tempo todo. Somos hoje o resultado de ontem, como disse o professor Antonio Candido.
Ontem, já não via mais sentido ter uma Harley Davidson. Me questionava se pegava a estrada ou não para fazer o Caminho de Santiago. O Grand Canyon se tornou algo indigesto pelo ser que sou hoje. O Himalaia, na minha condição atual aos 51, é algo tão distante... mesmo outra montanha, pois eu era apaixonado por montanhas, natureza, rios, lagos, matas.
Que temos pro momento? Minha pressão descontrolada... Sensações estranhas nas entranhas que podem ser qualquer coisa, até tristeza, chateação... Ter moto e um cretino passar por cima da gente por estar olhando celular...
Estou nas leituras, mas às vezes sinto que é um ritual de autoengano. Não acho que vou encontrar paz em leitura alguma. Mas sigo lendo com disciplina. Vamos procurando até onde for possível.
William
Um leitor
Hoje é dia 19 do mês de maio posterior à pandemia do novo coronavírus (ano 1?). Essa invenção de calendário é um treco interessante por parte dos homo sapiens. As definições são sempre arbitrárias. Nos dias que correm aqui no Ocidente, temos em vigor o calendário gregoriano, que substituiu o juliano. Estamos no ano de 2.020. Pelo calendário do judaísmo, estamos no ano 5.780.
Calendário é um invento tão arbitrário que poderíamos estar no ano 5 bilhões e alguma coisa, já que o planeta Terra tem essa idade e vem fazendo seus movimentos de rotação e translação e dando voltas na órbita do Sol durante esses bilhões de anos aí. Hoje poderia ser dia 19 de maio do ano da graça do Big Bang de 5.000.000.001, o 1 ficaria por conta da nova realidade humana após a Covid-19 (arbitrário também, mas... e daí?).
Neste momento em que escrevo, estão contabilizados 321.999 mortos pelo vírus Covid-19, que já contagiou 4.876.906 humanos. De cerca de 200 países do mundo, o que eu vivo é praticamente o único no qual o governo central, presidido por um monstro inumano, atua de forma inversa no combate à pandemia mundial em relação ao que preconiza a OMS: o isolamento social e a quarentena para evitar a velocidade de contaminação das pessoas, o colapso dos sistemas de saúde e a morte de multidões de vítimas sem atendimento médico.
Vivo num país jabuticaba, com um povo mais bárbaro que os outros. Os monstros no poder pretendem praticar uma forma de eugenia, eliminando pela pandemia multidões de pobres e idosos e parte das vítimas são tão ignorantes e bárbaras que são manipuladas pelos sistemas de ideologia vigentes na atualidade: líderes de religiões com grande facilidade de retórica e sistemas de comunicação que permitem acesso irrestrito a cada indivíduo o tempo integral de sua vida, redes sociais.
Mudando de assunto, afinal de contas, se seguir descrevendo essas desgraças, minha pressão arterial subirá mais ainda e meu corpo vai acelerar a destruição interna dos órgãos que me fazem existir...
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Abri a postagem com um poema de Drummond: "Ontem".
Antes gostava de motos, ouvia muito mais música que hoje, queria ir a lugares e fazer um monte de coisas. Fiz a vida seguir adiante perseguindo objetivos inventados justamente para seguir caminhando, mesmo sabendo que não há caminhos e que somos nós que fazemos as trilhas, as veredas, as jornadas. O caminho é mais importante do que o fim dele, os sábios apontam isso faz tempo.
Neste momento de minha vida, tá tudo esquisito. Na minha e na de milhões de pessoas. Tá difícil definir objetivos a perseguir, definir metas que façam valer a pena o existir diário. Se o existir não for uma jornada, uma vereda que leve a pessoa a algum lugar, tudo perde o sentido, a motivação. Isso não é uma contradição com o que disse no parágrafo anterior. Se o topo do Himalaia é o sonho, fazer as montanhas brasileiras poderia ser uma realidade de caminhos felizes: Monte Roraima, Pico da Neblina, Pico da Bandeira, Pedra da Mina.
Se eu olhar para trás, verei claramente que num momento defini que queria isso ou aquilo, que iria fazer isso ou aquilo, e tudo passou a fazer sentido, as dificuldades eram apenas etapas difíceis do caminho. Amassar barata na cara em barracos que morei, quebrar concreto e mexer com encanamento com fezes dos outros, furar latas de palmito podre, sofrer e chorar por uma humilhação ou outra, uma frustração, uma perda... enfim, quando se tem metas traçadas, e firmeza de propósito, a gente aguenta o peso do mundo duro.
Acho que está faltando algo que me faça aguentar suportar a existência do mal, suportar que parte de meus familiares e gente que eu conheço são bárbaros apoiadores do bolsonarismo, suportar as fragilidades que temos por sermos animais humanos, frágeis como uma flor que desabrocha ao Sol ou como um filhote indefeso que acaba de nascer. Somos tão frágeis que uma bosta de um vírus põe em risco nossa espécie e pode nos matar em dois ou três dias.
Passei a vida inventando objetivos e perseguindo eles para fazer valer a pena estar vivo neste mundo duro. Durante umas duas décadas, foram objetivos pessoais que me moveram. Durante outras duas décadas, foram objetivos coletivos. Minha vida de representação da classe trabalhadora é mais conhecida de meus amigos atuais. Foram anos de dedicação, ética sindical e lutas solidárias.
Paraquedismo, me enfiar em cavernas, me pendurar em cachoeiras, ter uma Sete Galo (Honda 750 four), acampar, pegar estrada, fazer projetos de grandes viagens (que não fiz), ter uma casa própria; sonhos inventados que faziam os dias valerem a pena como uma jornada, a vida que era vida no dia a dia. Esses foram meus tempos antes do movimento sindical.
A vida tinha uma lógica que fazia a gente suportar as coisas. Quando você conseguia uma boa moto, lá na frente você se via tendo uma Harley Davidson. Se já conhecia paisagens legais de meu mundo, algumas que fossem, ainda tinham muitas aqui e acolá para conhecer. Eu sonhava com o Himalaia, o Grand Canyon. Sonhava fazer mil quilômetros no Caminho de Santiago de Compostela.
"Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado
não no ar, em mim,
que por minha vez,
escrevo, dissipo."
Engraçado. As coisas já haviam mudado antes da Covid-19. Eu mudei. A gente muda o tempo todo. Somos hoje o resultado de ontem, como disse o professor Antonio Candido.
Ontem, já não via mais sentido ter uma Harley Davidson. Me questionava se pegava a estrada ou não para fazer o Caminho de Santiago. O Grand Canyon se tornou algo indigesto pelo ser que sou hoje. O Himalaia, na minha condição atual aos 51, é algo tão distante... mesmo outra montanha, pois eu era apaixonado por montanhas, natureza, rios, lagos, matas.
Que temos pro momento? Minha pressão descontrolada... Sensações estranhas nas entranhas que podem ser qualquer coisa, até tristeza, chateação... Ter moto e um cretino passar por cima da gente por estar olhando celular...
Estou nas leituras, mas às vezes sinto que é um ritual de autoengano. Não acho que vou encontrar paz em leitura alguma. Mas sigo lendo com disciplina. Vamos procurando até onde for possível.
William
Um leitor
sábado, 16 de maio de 2020
Decamerão (Boccaccio) em tempos de pandemia
Refeição Cultural
"A peste, em Florença, não teve o mesmo comportamento que no Oriente. Neste, quando o sangue saía pelo nariz, fosse de quem fosse, era sinal evidente de morte inevitável. Em Florença, apareciam no começo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou na axila, algumas inchações. Algumas destas cresciam como maçãs; outras, como um ovo; cresciam umas mais, outras menos; chamava-as o populacho de bubões. Dessas duas referidas partes do corpo logo o tal tumor mortal passava a repontar e a surgir por toda parte. Em seguida, o aspecto da doença começou a alterar-se; começou a colocar manchas de cor negra ou lívidas nos enfermos. Tais manchas estavam nos braços, nas coxas e em outros lugares do corpo. Em algumas pessoas, as manchas apareciam grandes e esparsas; em outras, eram pequenas e abundantes. E do mesmo modo como, a princípio, o bubão fora e ainda era indício inevitável de morte futura, também as manchas passaram a ser mortais, depois, para os que as tinham instaladas." (p.16)
Hoje li a 45ª novela ou narrativa do Decamerão, de Boccaccio. Faz 45 dias que me propus a ler uma estória por dia durante a quarentena que estamos vivendo por causa da pandemia mundial do novo coronavírus (Covid-19). Essa peste está matando neste momento mais de 800 pessoas por dia no Brasil. Já são mais de 200 mil infectados e mais de 15 mil mortos. Para piorar o quadro, a subnotificação no país é tão absurda que estima-se que os números podem ser muito maiores. No mundo são mais de 4,6 milhões de infectados e 310 mil mortos.
Boccaccio escreveu este clássico entre os anos de 1348 e 1353, no auge da Peste Negra na Europa. O mundo era muito diferente daquele que conhecemos hoje. Quer dizer... naquela época, achava-se que a Terra era plana... pensava-se que as doenças eram castigo de Deus... considerava-se que as mulheres não tinham os mesmos direitos que os homens... as leis estabeleciam que a escravidão e exploração humana era algo normal e aceitável... enfim, coisas impensáveis no século 21.
Uma das características do escritor é a ironia. Boccaccio era muito irônico e essa ferramenta estilística é de difícil compreensão ainda nos dias de hoje. Ao lermos as narrativas chegamos a ficar com raiva pela forma como as mulheres são tratadas e é preciso lembrar do quanto o escritor é irônico para compreender que até a forma como ele descreve a condição feminina é uma ironia e uma crítica à sociedade em que vivia.
Enfim, se os deuses me permitirem viver os próximos 55 dias, e afastarem de mim qualquer peste que me impeça de respirar, de comer e defecar, de enxergar, dormir e acordar, terei eu completado a leitura de mais um dos grandes e volumosos clássicos da literatura mundial.
Outras postagens sobre o Decamerão no blog podem ser acessadas aqui.
William
Um leitor
Bibliografia:
BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. Imortais da Literatura Universal, Nova Cultural, São Paulo, 1996.
160520 (d.C.) - Diário e reflexões
Hoje é sábado, 16 de maio de 2020, pós-Covid-19. Osasco, SP.
Neste momento (14h30), o mundo registra 4,58 milhões de infectados pelo novo coronavírus, sendo 309.184 vítimas fatais. O país mais atingido é os Estados Unidos, com 1,45 milhão de infectados e 87.841 mortos. O Brasil é o sexto mais atingido, mas vai passar a Itália e a Espanha nos próximos dias. Aqui no país jabuticaba, onde o inumano no poder atua contra o combate à pandemia, e somos o país que menos testa no mundo entre os grandes, já temos 222.877 infectados e 15.046 mortos.
Fico pensando se merecemos tudo o que acontece aqui, afinal de contas, descobrimos que somos mais bárbaros do que jamais poderíamos imaginar um dia. Parece que, a cada dia, mais humanos ao nosso redor demonstram pensarem igualzinho ao monstro que foi colocado no poder. Talvez mereçamos tudo... merecemos, sim.
Apesar de todos os cuidados que temos tomado, as recomendações de higienização, isolamento, quarentena, máscara na cara igual os tuaregues no deserto, álcool gel pra lá, álcool gel pra cá, sabão aqui, sabão acolá, esse inferno todo no qual a vida se transformou, eu sinto que algo dentro de mim está em sintonia com o mundo exterior. O mundo definha. Eu definho. Tem horas que eu penso o seguinte: que se dane!
Quando há luta, lutas, há esperança, algum tipo de esperança. Estou sem esperança. E não sou mais como fui no passado. Eu não ligava pra vida, meu egoísmo não me permitia sequer pensar no sofrimento das pessoas que nos consideravam. Sou menos egoísta hoje, diria que sou, afinal de contas, só faço o que tem que ser feito porque penso que temos alguma serventia para o mundo exterior ao animal que somos.
No entanto, apesar de me alimentar direito, de fazer um esforço grande em praticar alguma atividade física aeróbica para baixar um pouco a pressão arterial e reduzir o colesterol ruim no sangue (em tempos de pandemia que proíbe sair sem máscara na rua), apesar disso, algo me corrói por dentro. Como me conheço há cinco décadas, acredito que o principal fator gerador seja a tristeza que nos abateu após o golpe de Estado, após o mal se instalar no nosso mundo com adesão das pessoas ao nosso redor.
Por que registro esses diários? Deve ser vaidade. O animal humano é assim. Sigo fazendo o possível, leio em busca de prazer e descoberta, atuo como provedor dos meus entes queridos, não faço nada que seja condenável. Faço meu papel de ator social que tem visão de mundo a partir do espectro da esquerda.
Seguimos. Sigamos.
William
Um leitor
terça-feira, 12 de maio de 2020
Leitura: A carruagem dos espelhos (2019) - Sandro Sedrez dos Reis
Refeição Cultural
"- Mesmo que isso doa, ninguém deveria acusar o espelho de ingratidão. Ao contrário, é por estar muito agradecido que ele não poderia agir de outra forma, senão nos mostrando o que temos feito de nossas vidas. Até porque não é pelas coisas terem saído diferente do pretendido que elas não valem. O que não vale é querer prender o mundo e nós mesmos em uma imagem congelada. Isso cabe à fotografia. E serve para lembrar. O espelho precisa mostrar as verdades de nossa vida em movimento. E serve pra ensinar, alertar e, às vezes, fazer-nos tomar decisões." (p. 211)
A leitura do livro A carruagem dos espelhos, do amigo e colega da comunidade Banco do Brasil, é um ato de prazer. A leitura é leve, as personagens são gente como a gente, as estórias são como as nossas histórias de vida.
O início do livro traz narrativas deliciosas como a do garoto Alessandro e a professora Dona Dalva ("A queda"). Algumas nos emocionam muito como as estórias de Mayumi em "Voo cego" e de Aurora em "Quebra-cabeça". Os contos todos são muito bons. Nos envolvem bastante.
A novela, então, é uma surpresa muito agradável. Uma trama que não nos deixa parar de ler do início ao fim. Durante a leitura, pude descansar meu coração apertado e amargurado pelo contato permanente com a desgraça lá fora, num mundo com pandemias várias, a da Covid-19, a da ignorância bárbara bolsonarista que infectou o nosso país, a do necrocapitalismo que destrói vidas e o mundo.
Descansei coração e mente durante a leitura das narrativas que Sandro nos presenteou com A carruagem dos espelhos. Recomendo a leitura! É uma terapia de prazer pela leitura e uma oportunidade de algumas viagens ficcionais em tempos de quarentena e recolhimento.
William
Um leitor
REIS, Sandro Sedrez dos. A carruagem dos espelhos. São Paulo: Recanto das Letras, 2019.
domingo, 10 de maio de 2020
100520 (d.C.) - Diário e reflexões
Domingo de luar, Dia das Mães, Osasco, país jabuticaba, novo dia depois da pandemia do vírus Covid-19.
Vencemos mais um dia. Vamos para mais um amanhã. Tantas coisas que fazer ainda. Tantas coisas possíveis. Tantas coisas que eram possíveis até pouco tempo atrás. Tantas coisas que talvez não sejam mais possíveis para mim. Vai saber como será a semana neste mundo novo.
Neste momento de fim de noite de domingo das mães, o quadro estatístico sobre infectados e mortos pelo novo coronavírus aponta que estão infectados 4,1 milhões de pessoas no mundo e morreram até agora 282,7 mil seres humanos. No país jabuticaba, temos oficialmente 162,7 mil infectados e 11.123 vítimas fatais. Mas aqui é um dos países que menos realizam testes para identificar infectados, e os números podem ser muito maiores. O monstro que meus concidadãos elegeram em 2018 comemorou os números andando de Jet Ski. Aqui é assim...
Eu decidi estudar a Língua Japonesa neste ano porque gosto da cultura japonesa e porque o desafio poderia exercitar meu cérebro e auxiliá-lo a funcionar bem após meio século de vida. Estava indo muito bem através de um curso pago na internet e de uma matéria presencial em minha graduação em Letras na USP. Aí veio a quarentena, a parada do mundo. O isolamento social se somou à tristeza com a destruição do meu mundo pela ascensão do mal ao poder por golpe e por adesão de parte do povo que eu amava. Bateu um desânimo perigoso para o meu viver. O corpo por dentro está morrendo, sinto isso em meu abdômen. É triste e não é porque quero.
Como a vida seguiu nesta semana, e segue a partir de amanhã, a gente segue fazendo coisas que são possíveis. Eu sempre tive sonhos de cultura e conhecimento. Queria ser um erudito, um sábio, um intelectual. Admiro muito pessoas com grande acúmulo de conhecimento. Admiro mais ainda quando essas pessoas usam o conhecimento para o bem coletivo.
Esse desejo de saber me fez começar projetos de leituras e nunca terminar quase nada, pois começava um livro, pegava outro, começava mais um, pegava outro e assim ia.
Pensando em parar com isso, dei uma rápida olhada na estante e identifiquei vários livros que poderia retomar e ganhar aquela experiência de leitura.
Tudo está estranho, sem sentido, sem razão lógica e sem prazer a esta altura de minha vida. É lógico que isso é um processo psicológico, somos humanos. Estou tentando me agarrar numa tese que ouvia de alguns professores que diziam sobre clássicos da literatura mundial que era sempre melhor lê-los que não lê-los.
E sempre tem os livros novos também, alguns humanos continuam produzindo coisas interessantes de se ler.
Foi assim que li algumas centenas de páginas nesses dias. Terminei um livro de romance ao ler mais de cem páginas de uma vez. Agora estou terminando outro do mesmo jeito, acabo amanhã.
Tem cada livro referencial que estou no meio... Hobsbawn, Galeano, Dostoiévisk, Hobbes, Jessé Souza, Gorbachev, Marx, Mandela, José Dirceu... (pensa dezenas e dezenas de leituras inacabadas).
Chega de registros por hoje. Vamos ver o que a vida nos reserva para a semana.
William
Um leitor