A hora da estrela – Clarice Lispector (1977)
Literatura Brasileira
Passagens do texto
ESCREVER PARA OBTER
RESPOSTAS
“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a
outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história
da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas
sei que o universo jamais começou.
Que
ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.
Enquanto
eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever (...) Pensar
é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou
escrevendo. Deus é o mundo...
NA RUA, DE RELANCE, A
PERDIÇÃO NO ROSTO DE UMA NORDESTINA
“Como é
que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheço, já que nunca o vivi?
É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de
perdição no rosto de uma moça nordestina...
“(...)
A história – determino com falso livre-arbítrio – vai ter uns sete personagens
e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M.
Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa
de originalidade. Assim é que experimentei contra os meus hábitos uma história
com começo, meio e ‘gran finale’ seguido de silêncio e de chuva caindo...
“(...)
Mas o vazio tem o valor e a semelhança do pleno. Um meio de obter é não
procurar, um meio de ter é o de não pedir e somente acreditar que o silêncio
que eu creio em mim é resposta a meu – a meu mistério...
PERGUNTAR QUEM SOU
PROVOCA NECESSIDADE
“(...)
Se tivesse a tolice de se perguntar ‘quem sou eu?’ cairia estatelada e em cheio
no chão. É que ‘quem sou eu?’ provoca necessidade. E como satisfazer a
necessidade? Quem se indaga é incompleto...
“Mas
desconfio que toda essa conversa é feita apenas para adiar a pobreza da
história, pois estou com medo. Antes de ter surgido na minha vida essa
datilógrafa, eu era um homem até mesmo um pouco contente, apesar do mau
êxito na minha literatura. As coisas estavam de algum modo tão boas que podiam
se tornar muito ruins porque o que amadurece plenamente pode apodrecer...
“É.
Parece que estou mudando de modo de escrever. Mas acontece que só escrevo o que
quero, não sou um profissional – e preciso falar dessa nordestina senão
sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela...
ESCREVO PORQUE A
FORMA FAZ O CONTEÚDO
“Por
que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes
a forma é que faz conteúdo. Escrevo portanto não por causa da nordestina
mas por motivo grave de ‘força maior’, como se diz nos requerimentos oficiais,
por ‘força de lei’...
A ETERNIDADE É ESTE
MOMENTO
“Quero
acrescentar, à guisa de informações sobre a jovem e sobre mim, que vivemos
exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de
amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas neste momento...
A LEMBRANÇA DA
INFÂNCIA É SEMPRE BOA
“Domingo
ela acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada.
O pior
momento de sua vida era neste dia ao fim da tarde: caía em meditação inquieta,
o vazio do seco domingo. Suspirava. Tinha saudade de quando era pequena –
farofa seca – e pensava que fora feliz. Na verdade por pior a infância é
sempre encantada, que susto...
UM LUXO DE MACABÉA
“E
quando acordava? Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que
pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola.
Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com
obediência o papel de ser...
NÃO SOU UM ACASO
PORQUE ESCREVO
“(...)
Pensando bem: quem não é um acaso na vida? Quanto a mim, só me livro de ser
um apenas um acaso porque escrevo, o que é um ato que é um fato...
PRAZER NA COLEÇÃO DE
ANÚNCIOS
“Mas
tinha prazeres. Nas frígidas noites, ela, toda estremecente sob o lençol de
brim, costumava ler à luz de vela os anúncios que recortava dos jornais velhos
do escritório. É que fazia coleção de anúncios...
A QUEM ACUSAR PELO
FATO DE... A MOÇA EXISTIR
“(...)
A moça é uma verdade da qual eu não queria saber. Não sei a quem acusar mas
deve haver um réu...
SÓ TINHA A GRANDE
FOME (COMEU GATO FRITO NA INFÂNCIA...)
“Esqueci
de dizer que às vezes a datilógrafa tinha enjoo para comer. Isso vinha desde
pequena quando soubera que havia comido gato frito. Assustou-se para sempre.
Perdeu o apetite, só tinha a grande fome. Parecia-lhe que havia cometido um
crime e que comera um anjo frito, as asas estalando entre os dentes. Ela
acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam...
O PRAZER DE
EXPERIMENTAR A SOLIDÃO UMA VEZ NA VIDA
“(...)
Então, no dia seguinte, quando as quatro Marias cansadas foram trabalhar, ela
teve pela primeira vez na vida uma coisa a mais preciosa: a solidão. Tinha
um quarto só para ela. Mal acreditava que usufruía o espaço. E nem uma palavra
era ouvida. Então dançou num ato de absoluta coragem, pois a tia não a
entenderia. Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se tornava:
l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente conseguida solidão, do rádio de
pilha tocando o mais alto possível, da vastidão do quarto sem as Marias...
POR QUE MACABÉA?
“- E,
se me permite, qual é mesmo a sua graça?
-
Macabéa.
- Maca,
o quê?
- Béa,
foi ela obrigada a completar.
- Me
desculpe mas até parece doença, doença de pelo.
- Eu
também acho esquisito mas minha mãe botou ele por promessa a Nossa Senhora
da Boa Morte se eu vingasse, até um ano de idade eu não era chamada porque
não tinha nome, eu preferia continuar a nunca ser chamada em vez de ter um nome
que ninguém tem mas parece que deu certo. – Parou um instante retomando o
fôlego perdido e acrescentou desanimada e com pudor: - Pois como o senhor vê
eu vinguei... pois é...
OLÍMPICO JESUS... “JESUS”
DOS QUE NÃO TÊM PAI
“-
Olímpico de Jesus Moreira Chaves, mentiu ele porque tinha como sobrenome apenas
o de Jesus, sobrenome dos que não têm pai. Fora criado por um padrasto que lhe
ensinara o modo fino de tratar pessoas para se aproveitar delas e lhe ensinara
como pegar mulher...
METALÚRGICO E
DATILÓGRAFA – UM CASAL DE CLASSE
“Olímpico
de Jesus trabalhava de operário numa metalúrgica e ela nem notou que ele não se
chamava de ‘operário’ e sim de ‘metalúrgico’. Macabéa ficava contente com a
posição social dele porque também tinha orgulho de ser datilógrafa, embora
ganhasse menos que o salário mínimo. Mas ela e Olímpico eram alguém no
mundo. ‘Metalúrgico e datilógrafa’ formavam um casal de classe...
VÍTIMAS DO MUNDO: UNS
INOCENTES, OUTROS COM A SEMENTE DO MAL
“(...)
Casariam ou não? Ainda não sei, só sei que eram de algum modo inocentes e pouca
sombra faziam no chão.
Não, menti, agora vi tudo: ele
não era inocente coisa alguma, apesar de ser uma vítima geral do mundo.
Tinha, descobri agora, dentro de si a dura semente do mal, gostava de se
vingar, este era o seu grande prazer e o que lhe dava força de vida. Mais vida
do que ela que não tinha anjo de guarda...
JÁ EM 1977, A
DESCRIÇÃO DOS “MÉDICOS BRASILEIROS” QUE, EM 2013, ENVERGONHARAM O BRASIL CONTRA
O PROGRAMA “MAIS MÉDICOS” DO GOVERNO FEDERAL (DO PT), POR CONTRATAR MÉDICOS
ESTRANGEIROS DISPOSTOS A ATENDEREM POBRES
“Esse
médico não tinha objetivo nenhum. A medicina era apenas para ganhar dinheiro e
nunca por amor à profissão nem a doentes. Era desatento e achava a pobreza uma
coisa feia. Trabalhava para os pobres detestando lidar com eles. Eles eram
para ele o rebotalho de uma sociedade muito alta à qual também ele não
pertencia. Sabia que estava desatualizado na medicina e nas novidades
clínicas mas para pobre servia. O seu sonho era ter dinheiro para fazer
exatamente o que queria: nada...
BREVE COMENTÁRIO
Reli a obra pela terceira vez. Foi o último livro de Clarice
Lispector antes de sua morte em 1977. Não conheço as outras obras da autora,
mas esta é muito intensa.
A história da moça nordestina Macabéa é algo muito real para
os brasileiros que têm mais de quarenta anos de idade e que, ainda na
adolescência nos anos oitenta, presenciaram a exploração desgraçada de uma
pequena elite branca mancomunada com as forças policiais e a estrutura da lei
de manutenção do status quo,
estrutura colonial esta que somente mudou de donos entre os séculos XVI e XXI,
mas que não se alterou em relação à exploração de pobres e miseráveis, povos
negros, índios e mestiços, bem como europeus e orientais trazidos para a
lavoura e a indústria, enfim, filhos e frutos dos explorados ou dos exploradores
com as populações exploradas (bastardos) e não detentores de propriedades e
heranças.
O povo brasileiro é uma grande conjunção de gente explorada
e que sempre esteve por sua própria conta e risco, em meio a 5% de abastados
com o controle de todo o Estado e as terras, protegidos por uma estrutura
social montada por essa pequena elite para que nada se alterasse ao longo dos
séculos.
São personagens de histórias como essa que buscam demonstrar
o que é o povo brasileiro. São Macabéa(s), Riobaldo(s) Tatarana, Policarpo(s)
Quaresma, Macunaíma(s), Quincas(s) Borba, e tantos outros brasileiros sem
terras, sem dinheiro e sem heranças, que se viraram para sobreviverem, como
meus pais e mais milhões por aí.
Pequenas histórias como esta – pequenas em volume – têm a
capacidade de (explosão) como diz a autora na voz de Rodrigo S. M.
Para completar minha imersão na história desta brasileirinha
Macabéa, vou agora assistir ao filme baseado na obra, feito em 1985...
Bibliografia
LISPECTOR, Clarice. A
hora da estrela. Editora Rocco. RJ 1999. Texto estabelecido por Marlene
Gomes Mendes (Dra. em Literatura Brasileira pela USP/Profª de Crítica Textual
da UFF)
Post Scriptum:
Postei no Facebook o seguinte comentário:
"LITERATURA: deixo como amostra o trecho abaixo de excertos que publiquei da minha 3ª leitura do livro A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Abraços...
Postei no Facebook o seguinte comentário:
"LITERATURA: deixo como amostra o trecho abaixo de excertos que publiquei da minha 3ª leitura do livro A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Abraços...
JÁ EM 1977, A DESCRIÇÃO DOS “MÉDICOS BRASILEIROS” QUE, EM 2013, ENVERGONHARAM O BRASIL CONTRA O PROGRAMA “MAIS MÉDICOS” DO GOVERNO FEDERAL (DO PT), POR CONTRATAR MÉDICOS ESTRANGEIROS DISPOSTOS A ATENDEREM POBRES
“Esse médico não tinha objetivo nenhum. A medicina era apenas para ganhar dinheiro e nunca por amor à profissão nem a doentes. Era desatento e achava a pobreza uma coisa feia. Trabalhava para os pobres detestando lidar com eles. Eles eram para ele o rebotalho de uma sociedade muito alta à qual também ele não pertencia. Sabia que estava desatualizado na medicina e nas novidades clínicas mas para pobre servia. O seu sonho era ter dinheiro para fazer exatamente o que queria: nada..."
Post Scriptum II:
Ao ler um artigo do professor Emir Sader com o título "A América não podia dar certo" (ler AQUI), postei comentário no Facebook:
"LITERATURA E NOSSOS HUMILDES LATINO-AMERICANOS: quando vejo nossos famosos personagens como, por exemplo, Macabéa de Clarice Lispector, retratando aquele Brasil colonizado e aquela América feita pra não dar certo nestes cinco séculos, vejo o quanto nossos países e nossos irmãos avançaram com governos mais progressistas e populares. LEITORES E AMIG@S, PENSEM NO BRASIL E AMÉRICA QUE QUEREMOS NA HORA DAS ELEIÇÕES E NAS ESCOLHAS DE QUE LADO FICAR..."
Ao ler um artigo do professor Emir Sader com o título "A América não podia dar certo" (ler AQUI), postei comentário no Facebook:
"LITERATURA E NOSSOS HUMILDES LATINO-AMERICANOS: quando vejo nossos famosos personagens como, por exemplo, Macabéa de Clarice Lispector, retratando aquele Brasil colonizado e aquela América feita pra não dar certo nestes cinco séculos, vejo o quanto nossos países e nossos irmãos avançaram com governos mais progressistas e populares. LEITORES E AMIG@S, PENSEM NO BRASIL E AMÉRICA QUE QUEREMOS NA HORA DAS ELEIÇÕES E NAS ESCOLHAS DE QUE LADO FICAR..."
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