Refeição Cultural
O Retrato II – 4º
volume
Ao ler as críticas dos personagens lá nos primórdios da
República Brasileira após a frustração do embate político para a eleição
presidencial entre o candidato situacionista, Hermes da Fonseca, e o da
oposição pela campanha civilista, Rui Barbosa, vemos comentários muito
semelhantes aos que presenciamos em 2014 nas eleições presidenciais entre a
candidatura de Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB). As críticas são
semelhantes, mas os contextos completamente diferentes. Vemos a mesma agressividade
à flor da pele, embate político marcado por certo ódio e com possibilidades
remotas de conciliação entre as partes.
DESDE SEMPRE, REPÚBLICA SEM POVO
(Rodrigo Cambará, conversando com a tia Maria Valéria,
revoltado pelo candidato dos militares ganhar a eleição do civilista Rui
Barbosa)
“- Palavra de honra. Esse país não tem jeito. Só uma
revolução.
Soergueu-se na cama, e, como se a frase anterior tivesse
sido dita por ela e não por ele, perguntou:
- Fazer uma revolução com quem? Com o povo? Mas não é
possível ir contra as classes armadas! (Na verdade não se estava dirigindo à
tia, mas aos leitores d’A Farpa.) Neste pobre país parece que nada se pode
fazer sem o concurso dos militares. Foram civis como Castilhos, Patrocínio, Bocaiuva
e outros que fizeram a república com ideias. Mas na hora de dar o golpe,
desgraçadamente recorreu-se ao Exército. O primeiro presidente foi um marechal.
E que fez ele? Dissolveu o Congresso. Agora, pra mal dos pecados, parece que
vamos ter outro soldado na presidência. Outro Fonseca! Este país está perdido. Só
uma revolução!” (pág. 299)
GAÚCHOS: ASPEREZA ESPARTANA, SEGUNDO DESCRIÇÃO DA OBRA
“(...) Pensou no pai... Como acontecia com quase todos os
homens do campo, Licurgo Cambará desprezava o conforto. Gaúchos como ele em
geral dormiam em camas duras, sentavam-se em cadeiras duras, lavavam-se com
sabão de pedra e pareciam achar indigno de macho tudo quanto fosse expressão de
arte, beleza e bom-gosto. Isso explicava a nudez e o desconforto de suas casas,
a aspereza espartana de suas vidas.” (pág. 301)
RUI BARBOSA X HERMES DA FONSECA
“Chiru e Saturnino entraram a discutir animadamente as
eleições. Nos primeiros dias de março o Correio do Povo publicara alguns
resultados parciais das cidades, que acusavam pequeno saldo de votos favorável
a Rui Barbosa. Agora, porém, vinham de todo o País telegramas desanimadores
para os civilistas: o Marechal estava vitorioso na maioria das urnas, e tudo
indicava que o candidato oposicionista se encontrava irremediavelmente
derrotado. Rui Barbosa lançara um manifesto, afirmando que as eleições haviam
sido feitas sob pressão do governo, à sombra da fraude: os hermistas subtraíam
as atas ou as falsificavam. A propalada neutralidade de Nilo Peçanha – clamava o
candidato civilista – era como as saias postas em moda na França por Mme de
Maintenon para esconder a barriga das mulheres grávidas.” (pág. 303)
O PENSAMENTO DA ELITE TACANHA SEGUE O MESMO UM SÉCULO DEPOIS
“- Mas que absurdo! – protestou Rodrigo – Para principiar:
como por em prática esse individualismo aristocrático?
- Muito simples – replicou Rubim, com sua voz de flauta. Tomou
um gole de champanha. – Nietzsche preconiza, e nisso estou plenamente de acordo
com o Mestre, a formação do Estado militar.
- Tenente! – repreendeu-o Jairo, sorrindo.
- Estamos entre amigos, coronel. Mas, como dizia, só esse
Estado militar é que poderá consolidar o domínio da casta superior, usando a
força para organizar disciplinarmente todos os recursos sociais...
- Mas será uma ditadura insuportável! – atalhou-o Rodrigo. E
tomou com fúria um largo gole de champanha, enchendo logo em seguida a taça com
vinho branco.
- isso mesmo. Uma ditadura. E insuportável, sim, para as
classes inferiores. Porque será preciso esmagar sempre todas as tentativas de
insurreição das massas.”
(COMENTÁRIO: ler esse sujeito
falando é o mesmo que ver em 2014 o que a elite e os tucanos pensam sobre
governar para poucos e o tratamento do povo como caso de polícia)
SEGUE
“Don Pepe levantou-se, avançou para o tenente de artilharia
e, erguendo a mão que segurava o copo, como se fosse atirar vinho na cara do
militar, bradou:
- Pero no hay fuerza humana que pueda detener las masas!
Rubim limitou-se a lançar para o espanhol um rápido olhar
neutro.
- O Brasil – continuou – é um país novo e informe, que só
poderá ser governado mediante uma ditadura de ferro.
Jairo estava escandalizado.
- Tenente, o senhor está se excedendo!
Rubim sorriu e encheu o cálice de vinho.
- Coronel, estou apenas dizendo o que penso.
- Deus nos livre de ter o tenente um dia na presidência da
República! – exclamou Rodrigo.
Olhou para Pepe, que começava já a dar seus passinhos para
diante e para trás, e viu nos olhos do anarquista duas bombas prestes a
explodir.
- Essa casta superior – prosseguiu Rubim, cruzando as pernas
– não deverá de maneira nenhuma preocupar-se com a educação das classes
populares. O cultivo das massas pode prejudicar os objetivos mais altos do
Estado, isto é, a formação da aristocracia...” (pág. 304/305)
ARROGÂNCIA DE PARTE DA CLASSE MÉDICA VEM DE LONGE
(FELIZMENTE HÁ EXCEÇÕES)
“Isso não vai lhe custar nada. A consulta é grátis. Os clientes
balbuciavam agradecimentos e se iam. Rodrigo então abria as janelas para deixar
entrar o ar fresco, lavava as mãos demoradamente com sabonete de Houbigant,
tirava do bolso o lenço perfumado de Royal Cyclamen e agitava-o de leve junto
do nariz. Concluía que o sacerdócio da medicina, visto através da arte e da
literatura, era algo de belo, nobre e limpo. Na realidade, porém, impunha um
tributo pesadíssimo à sensibilidade do sacerdote, principalmente ao seu olfato.
Rodrigo comovia-se até as lágrimas diante da miséria descrita em livros ou
representada em quadros; posto, porém, diante dum miserável de carne e osso – e
em geral aquela pobre gente era mais osso que carne – ficava tomado dum misto
de repugnância e impaciência. Achava impossível amar a chamada ‘humanidade
sofredora’, pois ela era feia, triste e mal-cheirante. No entanto – refletia,
quando ficava a sós no consultório com seus melhores pensamentos e intenções –
teoricamente amava os pobres e, fosse como fosse, estava fazendo alguma coisa
para minorar-lhes os sofrimentos. Não tens razão, meu caro Rubim. Podemos e devemos
elevar o nível material e espiritual das massas. Tenho grande admiração por
César, Cromwell, Napoleão, Bolívar; foram homens de prol, dotados de energia,
coragem e audácia, figuras admiradas, respeitadas e temidas. Mas para mim, meu
caro Cel. Jairo, é mais importante ser amado que respeitado e mesmo admirado. O
tipo humano ideal, o supremo paradigma, seria uma combinação de Napoleão Bonaparte
e Abraão Lincoln. O ditador perfeito, amigos, será o homem que tiver as mais
altas qualidades do soldado corso combinadas com as do lenhador de Illinois. O diabo
é que a bondade e a força são atributos que raramente ou nunca se encontram
reunidos numa mesma e única pessoa. A menos que essa pessoa seja eu – acrescentou,
um pouco por brincadeira e um pouco a sério.” (pág. 312)
MÉDICOS NÃO SABEM NADA: VÃO MAIS É NA APALPAÇÃO
(conversa entre o velho médico de Santa Fé e Rodrigo
Cambará, o novo)
“- Já fez alguma burrada?
- Acho que sim.
- isso é do programa. Não se impressione. Acontece com
todos. No final de contas os médicos não sabem nada. Nem os grandes do Rio de
Janeiro nem os figurões da Europa. Todos vão mas é no palpite, na apalpação.
- Eu sei.
- E se a gente fosse pensar no que não sabe e nas doenças
que não têm cura, acabava ficando louco. Tu pensas?
- Faço o possível pra não pensar.
- Olha, vou te dar um conselho. Não vás muito atrás de
conversa de doentes. Eles falam demais. E quanto mais falam menos a gente
entende o que é que estão sentindo.
- Já descobri isso.
- E mesmo quando não for caso de dar remédio, dê remédio,
porque o paciente desconfia do doutor que não receita muita droga. E quando
estiver diante dum caso complicado e ficar no escuro, receite uma dose pequena
de citrato de magnésia. Não faz mal pra ninguém. É só pra ganhar tempo e
estudar melhor o caso. Mas não digas nunca que não sabes. O doente pode perder
a fé... e adeus, tia Chica!
- Muito obrigado pelos conselhos, doutor.” (pág. 317)
MELHOR QUE MÉDICO, SÓ AS BENZEDEIRAS
“- E não te iludas com a clientela. No fundo essa gente
acredita mas é nessas negras velhas benzedeiras e nos curandeiros. E quando a
gente não acerta logo com o remédio pros achaques deles, procuram logo o índio
Taboca, que vem com as suas aguinhas milagrosas e suas benzeduras.
- Em caso de aperto – sorriu Rodrigo – o recurso então é
pedir uma conferência médica com o Taboca.” (pág. 318)
O DESPEITO DO DOUTOR BRANCO EM RELAÇÃO AO CURANDEIRO E AO
PEÃO
(após contar que o Taboca salvou um peão picado de cobra)
“Olhando para o peão, Rodrigo fez reflexões amargas. Taboca,
um curandeiro índio, acabara de salvar a vida do negro Antero, que no Angico
partilhara com ele, Dr. Rodrigo, o amor da chinoca Ondina. Era o desprestígio
da raça branca, da cultura e da ciência! – concluiu, sorrindo e achando tudo
aquilo muito estranho. Chers Messieurs Richet et Charcot, estais convidados a
explicar os mistérios das milagrosas aguinhas do Taboca! Porque moi, eu desisto.”
(pág. 319)
DIGESTÃO CULTURAL
Relendo esses trechos do capítulo Chantecler, do quarto
volume de O Tempo e o Vento, fiquei impressionado com a atualidade dos
debates e dos discursos ao relembrar o horror que estamos vivendo na atualidade
em nosso país, após as eleições presidenciais de 2014. O mesmo ódio, a mesma
arrogância de classe “superior” versus a “massa inculta” e coisas do gênero.
Que dizer então dos últimos trechos sobre a arrogância de
alguns médicos brancos, filhos da elite, que ao exercer a profissão, chegam a
ter nojo dos pobres “mal-cheirantes” como disse o nosso herói Dr. Rodrigo
Cambará?
Nas primeiras citações que fiz, é destaque e fica claro que
por dezenas de anos, a política e o Estado ficaram na mão das elites, que
disputavam entre si, o domínio e os bens públicos, para total apropriação do
público para uso privado pelas elites brancas seculares. Até que no século XXI
de nossa era surge um metalúrgico, oriundo das classes populares, e vindo da
região mais explorada do país, o Nordeste, e vence as eleições presidenciais e
começa a mudar o país, a contragosto das elites dominantes desde sempre.
É isso.
As coisas estão aí. É só abrir os olhos e ver. E vendo,
compreender o que está em jogo. Há que se ter lado, e o meu é o da classe
trabalhadora, é contra as elites históricas que tratam o povo como gente
inferior. Eu detesto essa tal “aristocracia”!
William
William
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