domingo, 30 de dezembro de 2012

Grande Sertão: Veredas - Guimarães Rosa






GRANDE SERTÃO: VEREDAS - JOÃO GUIMARÃES ROSA

CLÁSSICO BRASILEIRO DE 1956


COMENTÁRIO:

Este é um dos livros de maior relevância da literatura brasileira. Eu digo que a nossa literatura tem Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa como momentos decisivos de nossa cultura literária em relação aos romances.

Eu o li no início dos anos dois mil, depois que entrei na USP.

Apesar de ser um marco tão importante, acredito que pouca gente entenda o seu significado real.

Após uma longa construção histórica de nossa literatura tupiniquim, um autor colocou um homem de nossa terra, comum, do povo, que não estava no circuito do poder – não era homem branco, católico, capitalista, proprietário – para falar em primeira pessoa.

O jagunço aposentado com azia e reumatismo, Riobaldo Tatarana, conta sua história a um visitante ilustre (em um certo mês de junho) e já avisa que visita na casa dele são três dias, e a partir daí fala por seiscentas páginas sobre sua vida, suas andanças, seus receios e angústias sobre Deus e o Diabo, sobre o sentimento que nutria por um jagunço companheiro - Diadorim.

É um monólogo, é um desabafo, é um apelo e um pedido de compreensão de si mesmo e da vida dura e rude do povo brasileiro.

Eu afirmo que é uma das experiências literárias mais prazerosas que um leitor possa ter. É leitura para ser feita de forma lenta e sem pressa. De preferência em voz alta. Respeitando todas as pontuações que a tornam lenta e refletida.

Cito abaixo trechos que eu considero de uso para a vida toda.


AS SABEDORIAS DO HOMEM SIMPLES DO SERTÃO

“O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte.”


APOSENTADORIA – ESTAR DE RANGE REDE
“Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular ideia. O diabo existe e não existe? (...) Viver é negócio muito perigoso...”

O DIABO NAS COISAS
“Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: ‘menino – trem do diabo’? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes. ...O diabo na rua, no meio do redemunho...”

“Arre, ele está misturado em tudo.” (o diabo)

TODO MUNDO É BOM (PRA ALGUÉM)
“O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois – e Deus, junto. Vi muitas nuvens.”

“O senhor não duvide – tem gente, neste aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta... Eh, pois, empós, o resto o senhor prove: vem o pão, vem a mão, vem o são, vem o cão.”

“Ave, vi de tudo, neste mundo! Já vi até cavalo com soluço... – o que é a coisa mais custosa que há.”

SABEDORIA
“O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.”

FIXAR EM LEI QUE O DIABO NÃO EXISTE
“Olhe: o que devia de haver, era de se reunirem-se os sábios, políticos, constituições gradas, fecharem o definitivo a noção – proclamar por uma vez, artes assembleias, que não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim, davam tranquilidade boa à gente. Por que o Governo não cuida?!”

PODIA SER PADRE, FUI SER JAGUNÇO
“Eu podia ser: padre sacerdote, se não chefe de jagunços; para outras coisas não fui parido. Mas minha velhice já principiou, errei de toda conta. E o reumatismo... Lá como quem diz: nas escorvas. Ahã.”

QUERER O BEM DEMAIS JÁ PODE SER QUERER O MAL
“Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo.”

DEUS É PACIÊNCIA
“o ruim com o ruim, terminam por as espinheiras se quebrar – Deus espera essa gastança. Moço!: Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja.”

NO SERTÃO MANDA QUEM É FORTE
“Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal...”

PRIMEIRA CITAÇÃO DE DIADORIM
“(contando sobre uma fuga durante batalha) se aquele bicho irara tinha jazido lá, então ali não tinha cobra. Tomei o lugar dele. Existia cobra nenhuma. Eu podia me largar. Eu era só mole, moleza, mas que não amortecia os trancos, dentro, do coração. Arfei. Concebi que vinham, me matavam. Nem fazia mal, me importei não. Assim, uns momentos, ao menos eu guardava a licença de prazo para me descansar. Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nele. Um João-congo cantou. Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim, mano-oh-mão, que estava na Serra do Pau-d’Arco, quase na divisa baiana, com nossa outra metade dos sô-candelários... Com meu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu ia-voava reto para ele... Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas...”

A MALDADE JÁ FOI PIOR
“Vi tanta cruez! Pena não paga contar; se vou, não esbarro. E me desgosta, três é bom de coração. Isto é, bom no trivial. Malícias maluqueiras, e perversidades, sempre tem alguma, mas escasseadas. Geração minha, verdadeira, ainda não eram assim. Ah, vai vir um tempo, em que não se usa mais matar gente... Eu, já estou velho.”

AS PESSOAS NÃO ESTÃO TERMINADAS
“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão.”

AMOR VEM DE AMOR (DIADORIM É MINHA NEBLINA)
“Queremos é trabalhar, propor sossego. De mim, pessoa, vivo para minha mulher, que tudo modo-melhor merece, e para a devoção. Bem-querer de minha mulher foi que me auxiliou, rezas dela, graças. Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também – mas Diadorim é a minha neblina...”

VENDER SUA PRÓPRIA ALMA...
“Pois. Se tem alma, e tem, ela é de Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não queira. Não é vendível. O senhor não acha? Me declare, franco, pelo. Ah, lhe agradeço. Se vê que o senhor sabe muito, em ideia firme, além de ter carta de doutor. Lhe agradeço, por tanto. Sua companhia me dá altos prazeres.”

SERTÃO É...
 “Em termos, gostava que morasse aqui, ou perto, era uma ajuda. Aqui não se tem convívio que instruir. Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso...

O LONGO MONÓLOGO DO EX-JAGUNÇO (3 DIAS)
“Eh, que se vai? Jàjá? É que não. Hoje, não. Amanhã, não. Não consinto. O senhor me desculpe, mas em empenho de minha amizade aceite: o senhor fica. Depois, quinta de-manhã-cedo, o senhor querendo ir, então vai, mesmo me deixa sentindo sua falta. Mas, hoje ou amanhã, não. Visita, aqui em casa, comigo, é por três dias!”

SAÚDE DO JAGUNÇO APOSENTADO NÃO PERMITE ACOMPANHAR A VISITA PELA REGIÃO
“Mas, então, para uma safra razoável de bizarrices, reconselho de o senhor entestar viagem mais dilatada. Não fosse meu despoder, por azías e reumatismo, aí eu ia. Eu guiava o senhor até tudo.”

SAUDADES
“O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de ideia e saudade de coração... Ah.”

DOIS JAGUNÇOS DE AMIZADE DIFERENCIADA
“Diadorim e eu, nós dois. A gente dava passeios. Com assim, a gente se diferenciava dos outros – porque jagunço não é muito de conversa continuada nem de amizades estreitas: a bem eles se misturam e desmisturam, de acaso, mas cada um é feito um por si. De nós dois juntos, ninguém nada não falava. Tinham a boa prudência. Dissesse um, caçoasse, digo – podia morrer. Se acostumavam de ver a gente parmente. Que nem mais maldavam.”

“Por mim, só, de tantas minúcias, não era o capaz de me alembrar, não sou de à parada pouca coisa; mas a saudade me alembra. Que se hoje fosse. Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. Sei como sei. Som como os sapos sorumbavam. Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das brasas. Quase que a gente não abria boca; mas era um delém que me tirava para ele – o irremediável extenso da vida.”

O ÓDIO DE DIADORIM
“E ele suspirava de ódio, como se fosse por amor; mas, no mais, não se alterava. De tão grande, o dele não podia mais ter aumento: parava sendo um ódio sossegado. Ódio com paciência; o senhor sabe?”

O GOSTAR... DIFÍCIL CONFISSÃO DE UM JAGUNÇO
“Tudo turbulindo. Esperei o que vinha dele. De um acêso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às loucas, gostasse de Diadorim, e também, recesso dum modo, a raiva incerta, por ponto de não ser possível dele gostar como queria, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a voz dele. Que mesmo, no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar todas as folhagens, e eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as muitas demais vezes, sempre.”

PORQUE DO RELATO DO JAGUNÇO AO FORASTEIRO
“O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala?”

OS APELIDOS DO DEMO
“E as ideias instruídas do senhor me fornecem paz. Principalmente a confirmação, que me deu, de que o Tal não existe; pois é não? O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Côxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos... Pois, não existe! E, se não existe, como é que se pode se contratar pacto com ele?”

SAUDADE = VELHICE
“Moço: toda saudade é uma espécie de velhice.”

ÓRFÃOS – TÃO COMUM
“Não me envergonho, por ser de escuro nascimento. Órfão de conhecença e de papeis legais, é o que a gente vê mais, nestes sertões.”

NOMES DOS LUGARES – DEVIA SER PROIBIDO MUDAR
“Todos os nomes eles vão alterando. É em senhas. São Romão todo não se chamou de primeiro Vila Risonha? O Cedro e o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro-Grande? Como é que podem remover uns nomes assim? O senhor concorda? Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado. Lá como quem diz: então alguém havia de renegar o nome de Belém – de Nosso-Senhor-Jesus-Cristo no presépio, com Nossa Senhora e São José?! Precisava de se ter mais travação.”

MEDEIRO VAZ – O QUIXOTE DO SERTÃO
“Mas vieram as guerras e os desmandos de jagunços – tudo era morte e roubo, e desrespeito carnal de mulheres e donzelas, foi impossível qualquer sossego, desde em quando aquele imundo de loucura subiu as serras e se espraiou nos gerais. Então Medeiro Vaz, ao fim de forte pensar, reconheceu o dever dele: largou tudo, se desfez do que abarcava, em terras e gados, se livrou leve como que quisesse voltar a seu só nascimento. Não tinha bocas de pessoa, não sustinha herdeiros forçados. No derradeiro, fez o fez – por suas mãos pôs fogo na distinta casa-de-fazenda, fazendão sido de pai, avô, bisavô – espiou até o voejo das cinzas; lá hoje é arvoredos. Ao que, aí foi aonde a mãe estava enterrada – um cemiteriozinho em beira do cerrado – então desmanchou cerca, espalhou as pedras: pronto, de alívios agora se testava, ninguém podia descobrir, para remexer com desonra, o lugar onde se conseguiam os ossos dos parentes. Daí, relimpo de tudo, escorrido dono de si, ele montou em ginete, com cachos d’armas, reuniu chusma de gente corajada, rapaziagem dos campos, e saiu por esse rumo em roda, para impor a justiça.”

CORAJOSO? COMO SER VALENTÃO?
“Eu estava meio dúbito. Talvez, quem tivesse mais receio daquilo que ia acontecer fosse eu mesmo. Confesso. Eu cá não madruguei em ser corajoso; isto é: coragem em mim era variável. Ah, naqueles tempos eu não sabia, hoje é que sei: que, para a gente se transformar em ruim ou em valentão, ah basta se olhar um minutinho no espelho – caprichando de fazer cara de valentia; ou cara de ruindade!”

AS RUINDADES DOS CANGACEIROS – A ETERNA VIOLÊNCIA
“as ruindades de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando, furando os olhos, cortando línguas e orelhas, não economizando as crianças pequenas, atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio vivas, na beira de estrago de sangues... Esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação de nunca se esquecer do que está reinando por debaixo. Em tanto, que muitos retombam para lá, constante que morrem... Viver é muito perigoso.”

OS GOSTARES
“Antes palavras que picaram em mim uma gastura cansada; mas a voz dele era o tanto-tanto para o embabo de meu corpo. Noite essa, astúcia que tive uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dele – os gostares...”


Bibliografia:
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Editora Nova Fronteira. 19ª edição.

2 comentários:

ze' disse...

Maravilha, obrigado. Mas você esqueceu de copiar a mais bonita de todas as citações da literatura brasileira:

"Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente - o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura."

William Mendes disse...

Olá, prezado Zé, como vai? Feliz Ano Novo!

Estava relendo a postagem e vi agora a sua contribuição. Que legal! Obrigado! Cada passagem da obra é um ensinamento de vida. Esse do Amor é mais um.

Abraços e tudo de bom!

William