Francesco Petrarca (Altichiero da Zefio, Wikipedia) |
Agostinho: Essa maneira de ler é agora bastante comum; há uma tal multidão de homens letrados... Mas se tivesse rabiscado algumas notas no lugar adequado, poderias facilmente deleitar-te com o fruto de tua leitura.
Francesco: A que tipo de notas fazes referência?
Agostinho: Sempre que leres um livro e encontrares frases maravilhosas que te instiguem ou deleitem teu coração, não confies apenas no poder de tua inteligência, mas força-te a aprendê-las de cor e torná-las familiares meditando sobre elas, de tal forma que ao surgir um caso urgente de aflição terás sempre o remédio pronto, como se estivesse escrito em tua mente. Quando encontrares quaisquer trechos que te pareçam úteis, faz uma marca forte neles, que poderá servir de visto em tua memória, pois de outra forma eles poderão voar para longe.
O que Agostinho (na imaginação de Petrarca) sugere é uma nova maneira de ler: nem usando o livro como um apoio para o pensamento, nem confiando nele como se confiaria na autoridade de um sábio, mas tomando dele uma ideia, uma frase, uma imagem, ligando-a a outra selecionada de um texto distante preservado na memória, amarrando o conjunto com reflexões próprias - produzindo, na verdade, um texto novo de autoria do leitor. Na introdução de De viris illustribus, Petrarca observou que esse livro deveria servir ao leitor como 'uma espécie de memória artificial' de textos 'dispersos' e 'raros' que ele não apenas coletara, mas, o que é mais importante, nos quais dera uma ordem e um método. Para seus leitores do século XIV, a reivindicação de Petrarca era espantosa, pois a autoridade de um texto era auto-estabelecida, enquanto a tarefa do leitor era a de um observador de fora. Um par de séculos depois, a forma de ler de Petrarca, pessoal, recriadora, interpretadora, cotejadora, iria se tornar o método à luz do que chama de 'verdade divina': um sentido que o leitor deve possuir, com o qual deve ser abençoado, para escolher e interpretar seu caminho através das tentações da página. Mesmo as intenções do autor, quando presumidas, não têm nenhum valor no julgamento de um texto. Este, sugere Petrarca, deve ser feito mediante as lembranças que se tenha de outras leituras, para as quais dar e receber, de separar e juntar, o leitor não deve exceder as fronteiras éticas da verdade - quaisquer que sejam elas, ditadas pela consciência do leitor (pelo senso comum, diríamos). Em uma de suas muita cartas, Petrarca escreveu: 'A leitura raramente evita o perigo, exceto se a luz da verdade divina iluminar o leitor, ensinando o que procurar e o que evitar'. Essa luz (para usar a imagem de Petrarca) ilumina de modo diferente a todos nós, e também varia nos diversos estágios de nossa vida. Jamais voltamos ao mesmo livro e nem à mesma página, porque na luz vária nós mudamos e o livro muda, e nossas lembranças ficam claras e vagas e de novo claras, e jamais sabemos exatamente o que aprendemos e esquecemos, e o que lembramos. O que é certo é que o ato de ler, que resgata tantas vozes do passado, preserva-as às vezes muito adiante no futuro, onde talvez possamos usá-las de forma corajosa e inesperada." (pág. 81-83, do capítulo O livro da memória)
COMENTÁRIO
"mas tomando dele uma ideia, uma frase, uma imagem, ligando-a a outra selecionada de um texto distante preservado na memória, amarrando o conjunto com reflexões próprias - produzindo, na verdade, um texto novo de autoria do leitor"
Este blog, desde sua criação faz já alguns anos, tem um pouco disto que Agostinho sugeriria à Petrarca: eu vou lendo, lendo, vendo filmes, observando a vida, e vou anotando trechos ou situações e fazendo novos textos e reflexões a partir deles.
Conversando com meu sobrinho em Uberlândia neste fim de semana, fiquei encantado com o jeito que ele próprio está encantado com as aulas de filosofia e com as possibilidades que ele viu na biblioteca da UFU. Ali tem o mundo e ele me lembrou a sensação que eu sentia quando entrava na biblioteca da FFLCH na USP. Se eu pudesse, viveria ali, lendo, refletindo e escrevendo.
Graças aos governos Lula e Dilma, jovens pobres e de origem afrodescendente como meus sobrinhos estão nas universidades públicas do Brasil tendo oportunidades de estudar e acessar todo o conhecimento disponível no mundo.
Bibliografia:
MANGUEL, Alberto. Uma História da Leitura. Companhia Das Letras. Edição 1999, 4a reimpressão.
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