Machado de Assis, 1905, por Henrique Bernardelli. |
(as palavras ou trechos sublinhados são marcações do blog, por curiosidade ou por terem chamado a atenção)
Chamou-se um médico.
Havia justamente na vizinhança um médico, formado de pouco, e recente morador na localidade. Era o Dr. Avelar, sujeito de boa presença, assaz elegante e médico feliz. Veio o Dr. Avelar na manhã seguinte, pouco depois das oito horas. Examinou a doente e reconheceu que a moléstia não passava de uma constipação grave. Teve entretanto a prudência de não dizer o que era, como aquele médico da anedota do bicho no ouvido, anedota que o povo conta, e que eu contaria também, se me sobrasse papel.
O Dr. Avelar limitou-se a torcer o nariz quando examinou a enferma, e a receitar dois ou três remédios, dos quais só um era útil; o resto figurava no fundo do quadro.
D. Paula tomou os remédios como quem não queria deixar a vida. Havia razão. Apenas dois anos fora casada, e contava apenas vinte e quatro anos. Havia já treze meses que lhe morria o marido. Apenas entrara no pórtico do matrimônio.
A esta circunstância é justo acrescentar mais duas; era bonita e tinha alguma coisa de seu. Três razões para agarrar-se à vida como o náufrago a uma tábua de salvação.
Uma única razão haveria para que ela aborrecesse o mundo: era se tivesse realmente saudades do marido. Mas não tinha. O casamento fora um arranjo de família e dele próprio; Paula aceitou o arranjo sem murmurar. Honrou o casamento, mas não deu ao marido nem estima nem amor. Viúva dois anos depois, e ainda moça, é claro que a vida para ela começava apenas. A ideia de morrer seria para ela não só a maior de todas as calamidades, mas também a mais desastrada de todas as tolices.
Não quis morrer nem caso era de morte.
Os remédios foram tomados pontualmente; o médico mostrou-se assíduo; dentro de poucos dias, três a quatro, estava restabelecida a interessante enferma.
De todo?
Não.
Quando o médico voltou no quinto dia, achou-a sentada na sala, envolvida em grande roupão, com os pés numa almofada, o rosto extremamente pálido, e muito mais ainda por causa da pouca luz.
O estado era natural em que se levantava da cama; mas a viuvinha alegou ainda umas dores de cabeça, a que o médico chamou nevralgia, e uns temores, que foram classificados no capítulo dos nervos.
— Serão graves moléstias? perguntou ela.
— Oh! não, minha senhora, respondeu Avelar, são achaques aborrecidos, mas não graves, e geralmente próprios de doentes formosas.
Paula sorriu com um ar tão triste que fazia duvidar do prazer com que ouviu estas palavras do médico.
— Dá-me porém remédios, não? perguntou ela.
— Sem dúvida.
Avelar receitou efetivamente alguma coisa e prometeu voltar no dia seguinte.
A tia era surda, como sabemos, não ouvia nada da conversa entre os dois. Mas não era tola; começou a reparar que a filha ficava mais doente quando se aproximava a chegada do médico. Além disso nutria dúvidas sérias acerca da aplicação exata dos remédios. O certo é porém que Paula, tão amiga de bailes e passeios, parecia realmente doente porque não saía de casa.
Notou igualmente a tia que, pouco antes da hora do médico, a sobrinha fazia uma aplicação mais copiosa de pó-de-arroz. Paula era morena; ficava muito branca. A meia luz da sala, os xales, o ar mórbido tornavam-lhe a palidez extremamente verossímil.
A tia não parou nesse ponto; foi ainda além. Não era médico o Avelar? Naturalmente devia saber se realmente estava enferma a viúva. Interrogando o médico, asseverou que a viúva estava muito mal, e prescreveu-lhe o mais absoluto repouso.
Tal era a situação da enferma e do facultativo.
Um dia em que este entrou achou-a folheando um livro. Estava com a palidez de costume e o mesmo ar abatido.
— Como vai a minha doente? disse familiarmente o Dr. Avelar.
— Mal.
— Mal?
— Horrorosamente mal... Que lhe parece o pulso?
Avelar examinou-lhe o pulso.
— Regular, disse ele. A tez está um tanto pálida, mas os olhos parecem bons... Houve algum ataque?
— Não; mas sinto-me desfalecida.
— Deu o passeio que lhe aconselhei?
— Não tive ânimo.
— Fez mal. Não passeou e está lendo...
— Um livro inocente.
— Inocente?
O médico pegou no livro e examinou-lhe a lombada.
— Um livro diabólico! disse ele atirando-o para cima da mesa.
— Por quê?
— Livro de poeta, livro para namorados, minha senhora, que é uma casta de doentes terríveis. Não se curam eles; ou raramente se curam; mas há pior, que é adoecerem os sãos. Peço-lhe licença para confiscar o livro.
— Uma distração! murmurou Paula com uma doçura capaz de vencer um tirano.
Mas o médico mostrou-se firme.
— Uma perversão, minha senhora! Em ficando boa pode ler se quiser todos os poetas do século; antes, não.
Paula ouviu esta palavra com singular, mas disfarçada alegria.
— Parece-lhe então que estou muito doente? disse ela.
— Muito, não digo; Tem ainda um resto de abalo que só pode desaparecer com o tempo e um regímen severo.
— Severo demais.
— Mas necessário...
— Duas coisas lastimo sobre todas.
— Quais?
— A pimenta e o café.
— Oh!
— É o que lhe digo. Não tomar café nem pimenta é o limite da paciência humana. Quinze dias mais deste regímen ou desobedeço ou expiro.
— Nesse caso, expire, disse Avelar sorrindo.
— Acha melhor?
— Acho igualmente mau. O remorso, porém, será meu só, enquanto que se V. Ex.ª desobedecer terá os seus últimos instantes amargurados por um tardio arrependimento. Melhor é morrer vítima que culpada.
— Melhor é não morrer nem culpada nem vítima.
— Nesse caso não tome pimenta nem café.
A leitora que acaba de ler esta conversa, admirar-se-ia muito se visse a nossa doente nesse mesmo dia ao jantar: teve pimenta à farta e bebeu excelente café no fim. Não admira porque era o seu costume. A tia admirava-se com razão de uma doença que consentia tais liberdades; a sobrinha não se explicava cabalmente a este respeito.
Choviam convites de jantares e bailes. A viuvinha recusava-os todos por causa do seu mau estado de saúde.
Foi uma verdadeira calamidade.
Entraram a chover as visitas e bilhetes. Muitas pessoas achavam que a doença devia ser interna, muito interna, profundamente interna, visto que lhe não apareciam sinais no rosto. Os nervos (eternos caluniados!) foram a explicação que geralmente se deu à singular moléstia da moça.
Três meses correram assim, sem que a doença de Paula cedesse uma linha aos esforços do médico. Os esforços do médico não podiam ser maiores; de dois em dois dias uma receita. Se a doente se esquecia do seu estado e estava a falar e a corar como quem tinha saúde, o médico era o primeiro a lembrar-lhe o perigo, e ela obedecia logo entregando-se à mais prudente inação.
Às vezes zangava-se.
— Todos os senhores são uns bárbaros, dizia ela.
— Uns bárbaros... necessários, respondia Avelar sorrindo.
E acrescentava:
— Eu não direi o que são as doentes.
— Diga sempre.
— Não digo.
— Caprichosas?
— Mais.
— Rebeldes?
— Menos.
— Impertinentes?
— Sim. Algumas são impertinentes e amáveis.
— Como eu.
— Naturalmente.
— Já o esperava, dizia a viúva Lemos sorrindo. Sabe por que razão lhe perdoo tudo? É porque é médico. Um médico tem carta branca para gracejar conosco; isso mesmo nos dá saúde.
Neste ponto levantou-se.
— Parece-me até que já estou melhor.
— Parece e está... quero dizer, está muito mal.
— Muito mal?
— Não, muito mal, não; não está boa...
— Meteu-me um susto!
Seria realmente zombar do leitor o explicar-lhe que a doente e o médico estavam a pender um para o outro; que a doente sofria tanto como o Corcovado, e que o médico conhecia cabalmente a sua perfeita saúde. Gostavam um do outro sem se atreverem a dizer a verdade, simplesmente pelo receio de se enganarem. O meio de se falarem todos os dias era aquele.
Mas gostavam eles já antes da fatal constipação do baile? Não. Até então ignoravam a existência um do outro. A doença favoreceu o encontro; o encontro do coração; o coração favorecia desde logo o casamento, se tivessem caminhado em linha reta, em vez dos rodeios em que andavam.
Quando Paula ficou boa da constipação adoeceu do coração; não tendo outro recurso fingiu-se doente. O médico, que pela sua parte desejava isso mesmo exagerou ainda as invenções da suposta enferma.
A tia, sendo surda, assistia inutilmente aos diálogos da doente com o médico. Um dia escreveu a este pedindo-lhe que apressasse a cura da sobrinha. Avelar desconfiou da carta a princípio. Seria uma despedida? Podia ser pelo menos uma desconfiança. Respondeu que a moléstia de D. Paula era, aparentemente insignificante, mas podia tornar-se grave sem um regímen severo, que ele lhe recomendava sempre.
A situação, entretanto, prolongava-se. A doente estava cansada da doença, e o médico da medicina. Ambos eles começaram a desconfiar que não eram mal aceitos. O negócio entretanto não caminhava muito.
Um dia Avelar entrou triste em casa da viúva.
— Jesus! exclamou sorrindo a viúva; ninguém dirá que é o médico. Parece o doente.
— Doente de lástima, disse Avelar abanando a cabeça; por outros termos, é a lástima que me dá este ar enfermo.
— Lástima de quê?
— De V.Ex.ª.
— De mim?
— É verdade.
A moça riu-se consigo mesma; todavia esperou a explicação.
Houve um silêncio.
No fim dele:
— Sabe, disse o médico, sabe que está muito mal?
— Eu?
Avelar fez um gesto afirmativo.
— Já o sabia, suspirou a doente.
— Não digo que tudo esteja perdido, continuou o médico, mas nada se perde em prevenir.
— Então...
— Coragem!
— Fale.
— Mande chamar o padre.
— Aconselha-me a confissão?
— É indispensável.
— Perderam-se todas as esperanças?
— Todas. Confissão... e banhos.
A viúva soltou uma risada.
— E banhos?
— Banhos de igreja.
Outra risada.
— Aconselha-me então o casamento.
— Justo.
— Imagino que está gracejando.
— Estou falando muito sério. O remédio não é novo nem desprezível. Todas as semanas lá vão muitos enfermos, e dão-se bem alguns deles. É um específico inventado desde muitos séculos e que provavelmente só acabará no último dia do mundo. Pela minha parte nada mais tenho que fazer.
Quando a viuvinha menos esperava, Avelar levantou-se e saiu. Falava sério ou gracejava? Dois dias se passaram sem que o médico voltasse. A doente estava triste; a tia aflita; houve ideia de mandar chamar outro médico. Recusou-a a doente.
— Então só um médico acertou com a tua moléstia?
— Talvez.
No fim de três dias recebeu a viúva Lemos uma carta do médico.
Abriu-a.
Dizia assim:
É absolutamente impossível esconder por mais tempo o que sinto por V. Ex.ª. Amo-a.
Sua moléstia precisa de uma última receita, verdadeiro remédio para quem ama, — sim, porque V. Ex.ª também me ama. Que razão obrigaria a negá-lo?
Se sua resposta for afirmativa haverá mais dois entes felizes neste mundo.
Se negativa...
Adeus!
A carta foi lida com explosão de entusiasmo; o médico foi chamado a toda a pressa, para receber e dar saúde. Casaram-se os dois daí a quarenta dias.
Tal é a história da Última Receita.
FIM
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Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1875. Conto reunido por Machado em livro posteriormente. Na minha Obras Completas, da Editora Globo, 1997, está no volume Escritos Avulsos I.
COMENTÁRIO BREVE
"A viúva Lemos adoecera; uns dizem que dos nervos, outros que de saudades do marido. Fosse o que fosse, a verdade é que adoecera, em certa noite de setembro, ao regressar de um baile. Morava então no Andaraí, em companhia de uma tia surda e devota. A doença não parecia coisa de cuidado; todavia era necessário fazer alguma coisa. Que coisa seria? Na opinião da tia um cozimento de altéia e um rosário a não sei que santo do céu eram remédios infalíveis. D. Paula (a viúva) não contestava a eficácia dos remédios da tia, mas opinava por um médico.
Chamou-se um médico.
Havia justamente na vizinhança um médico, formado de pouco, e recente morador na localidade. Era o dr. Avelar, sujeito de boa presença, assaz elegante e médico feliz. Veio o dr. Avelar na manhã seguinte, pouco depois das oito horas. Examinou a doente e reconheceu que a moléstia não passava de uma constipação grave. Teve entretanto a prudência de não dizer o que era, como aquele médico da anedota do bicho no ouvido, anedota que o povo conta, e que eu contaria também, se me sobrasse papel."
Contozinho tão básico e previsível que basta a leitura dos 3 primeiros parágrafos para que o leitor atento (ou leitora, como o narrador sempre diz) já seja capaz de descobrir o enredo e o final da história.
No entanto, quem conta a estória é Machado, então não é um "contozinho" como eu mesmo disse no parágrafo acima. O escritor não deixa de apresentar características básicas da sociedade em que vivia.
Através desse conto é possível ver a profissão dos médicos em ação, no bom e no mal sentido; os nomes dos males que acometiam as pessoas naquela época; a crítica aos costumes etc.
É isso! Na minha opinião, cada narrativa de Machado de Assis traz prazer e esse é um dos maiores benefícios da leitura.
William
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