sábado, 11 de junho de 2011

Para que serve a empresa nacional? - João Sayad


Procurei esse texto em casa até encontrá-lo. O autor não é nenhuma referência no que se refere ao tipo de progressista que defendo, pois ele defende o nacional e não necessariamente o público, como eu defendo. Mas sempre gostei muito desse texto dele. Vale a pena a leitura, que agora digitei e disponibilizo aqui.

(O TEXTO É DO ANO 2000)


João Sayad

Na maior parte dos últimos 2.000 anos, o sentido de tudo era dado por Deus e tudo era feito para “a maior glória de Deus”.

É verdade que as guerras religiosas tinham motivações territoriais, comerciais e dinásticas. Mas isso era segredo, interpretação de intelectuais. Reis, cavaleiros e escudeiros lutavam e morriam “ad majorem Dei gloriam”.

Os tempos mudaram, os sentidos se modificaram, embora continuássemos sempre com pelo menos dois sentidos: o que podia ser dito e o que não podia ser dito, a intenção e o resultado.

A Revolução Francesa criou novos sentidos: liberdade, igualdade, fraternidade.

Mais tarde, os marxistas estragavam os discursos e as cerimônias oficiais afirmando que tudo era feito em nome do lucro e do capital. “Liberdade” era apenas o direito de pobres e ricos dormirem embaixo da ponte. “Povo”, outro nome para os interesses da burguesia nacional.

Nos primeiros 80 anos deste século, o sentido era dado pela autonomia dos povos, pelo desenvolvimento nacional das ex-colônias, dos países pobres, inclusive os brasileiros.

Queríamos ser donos do nosso destino, livres para determinar a nossa vida, o nosso país.

Há 20 anos que tudo isso mudou.

Assumimos um compromisso embaraçoso e até um pouco deselegante com a verdade. Agora, temos discurso único, falamos a verdade.

Desde 1980, tudo é justificado em nome do lucro. Só o lucro dá sentido a qualquer coisa.

O que era denúncia passou a ser explícito e justificável.

O que dá lucro passou a ser natural, real, espontâneo, aceitável, justo, duradouro, estável, compreensível e explicável.

O que não dá lucro é metafísico, estranho, subsidiado, temporário, instável, falso e postiço.

Converse com os mais jovens – alunos, jornalistas, empresários – e verifique. Eles foram educados assim.

Eles têm razão, é verdade. Entretanto, é um sentido estranho, que não satisfaz, não entusiasma. Uma lógica que nos leva a lugares estranhos e a falsas conclusões.

Para que serve a empresa nacional?

Se empresa serve apenas para dar lucro, lucro nacional é igual a lucro estrangeiro, sendo simplesmente lucro. Portanto, a empresa nacional serve para a mesma coisa que a empresa estrangeira.

Se empresa serve apenas para produzir bens ou serviços (automóveis ou tratamento de saúde) e se a empresa nacional produz a mesma coisa que a estrangeira, mais uma vez, conclui-se que empresa nacional não serve para nada. Perdão, serve para a mesma coisa que a estrangeira.

Se uma empresa serve para dar emprego, qual a diferença entre trabalhar na General Motors ou na Vale do Rio Doce? No Pão de Açúcar ou no Carrefour? No Bradesco ou no Santander?

Se lucro é critério único, qual a diferença entre ler a Folha, a “Folha da Time Warner” ou o “Estadão do Figaro”? Faz diferença vender o “Pravda” para o Murdoch? Assistir novela da Globo ou da Globo/NBC?

A Nasa poderia ser vendida aos franceses? A Embraer poderia comprar a Boeing? As forças armadas de cada país poderiam ser terceirizadas?

Para que serve um violinista brasileiro? Um tenor, um pizzaiolo, uma bailarina, um professor, um operário ou um juiz brasileiros? Por que precisam ser brasileiros?

Quando existe similar estrangeiro, por que usar o nacional?

Se os estrangeiros forem iguais ou melhores, podemos nos livrar de todas essas escolas, conservatórios, tribunais, teatros, pagar menos impostos e ter mais lucros.

Para que serve o governo brasileiro? Precisamos apenas de governo, não precisa ser brasileiro. Talvez outros governos sejam mais baratos. Poderia ser equatoriano ou português, desde que nos dessem um passaporte.

Vale a pena votar?

Por que ensinar português nas escolas? Se alfabetizássemos em inglês, uma língua a menos, um professor a menos e mais um consumidor pronto para usar a Internet.

Para que serve o Brasil?


João Sayad é economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney); é autor de Que País é Este? (Editora Revan).


Texto publicado na Folha de S. Paulo em 31.01.2000, na seção Opinião Econômica.

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