Primeira leitura literária do ano: José J. Veiga. |
Refeitório Cultural
"Se houve algum dia quem desejasse conhecer Vasabarros por dentro, esse desejo se desvanecera há muito tempo. Vasabarros agora era um lugar situado fora dos caminhos e das cogitações do mundo..."
Nesta primeira postagem do ano aqui no blog, busquei no autor goiano José J. Veiga a já conhecida surpresa do fantástico, do estranho, do incomum ao adentrar em suas estórias. Queria uma espécie de distância dos sentimentos tristes que tomam conta de mim e do mundo que habito, o Brasil, o maior país sul-americano, que enfrenta uma virada política espantosa após golpe de Estado em 2016.
Conheci o autor goiano naquele ano do Golpe. Li os sete primeiros livros dele em ordem cronológica, e posso dizer que sei que sua obra não é leve no sentido de ser descontraída, porque todas elas nos põem a pensar muito. Mas é literatura da melhor qualidade! Já li Os cavalinhos de Platiplanto (1959), A hora dos ruminantes (1966), A estranha máquina extraviada (1967), Sombras de reis barbudos (1972), Os pecados da tribo (1976), O professor Burrim e as quatro calamidades (1978), De jogos e festas (1980).
Quando falo que optei por começar o ano com Veiga pensando em afastar a tristeza, é porque em dezembro comecei a ler um romance que havia lido na adolescência e que senti necessidade de rever: Nada de novo no Front (1928), do alemão Erich M. Remarque, a respeito da 1ª Guerra Mundial. Pesado! E quis lê-lo novamente porque tenho leitura que o crescimento do fascismo, do ódio e da intolerância vai nos levar para a guerra. Não terminei ainda. Não quis começar o ano comentando este romance.
Peguei o livro de Veiga no sábado achando que era leitura rápida. Era nada! Acabei lendo o romance nos dois dias, intercalando a ficção com outras coisas a fazer com a família (ver animes com o filho e esposa, correr e pedalar e amenidades). Também intercalei o lazer com o trabalho exaustivo que estou fazendo de releituras e pesquisas em relação ao balanço de meu mandato na Cassi.
Amig@s leitores, Aquele mundo de Vasabarros é o nosso mundo hoje. Incrível! Pode ser o Brasil. Pode ser o Rio de Janeiro e sua grave crise institucional. Pode ser os Estados Unidos e seu presidente impensável. Pode ser qualquer lugar, qualquer empresa. Que metáfora!
Os governantes de Vasabarros são o Simpatia e a Simpateca. Os conselheiros do lugar são os senescas; temos os órgãos de investigação e repressão - os merdecas e os mijocas. Uns poucos privilegiados vivem nas partes altas das grandes construções. Nos calabouços e entranhas do lugar, além dos ratos e bichos, vivem todas as pessoas, sem direito a rir, reclamar, cantar... sem direito a qualquer coisa. Por qualquer erro ou por se pegar envolvida em algo, até sem ter culpa, a pessoa era condenada à morte sendo enfiada dentro de uma barrica.
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"A vida em Vasabarros tinha mudado muito desde a assunção do atual Simpatia. Antes ainda havia um pouco de claridade, havia uma relativa alegria nas pessoas, e um certo entusiasmo pelo que elas faziam, apesar da preocupação doentia com os regulamentos, esse um mal de todos os tempos. Mas com o novo Simpatia o arrocho aumentou, as pessoas foram perdendo os restos de alegria, de cordialidade, de confiança em si mesmas..."
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Os filhos do senhor Simpatia e da senhora Simpateca - Andreu e Mognólia, ambos no início da adolescência - começam a questionar a si mesmos e aos pais e conselheiros porque as coisas são como são, tristes, com tanta miséria para todo mundo com exceção deles da família do governante etc.
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"- Por que tem que ser assim, seu Zinibaldo? - perguntou Mognólia de repente.
- Assim como?
- Esses meninos, gente igual a mim e Andreu, viverem vigiados, castigados por qualquer brincadeira que fazem, não poderem ter um cachorrinho, um gato, um passarinho para distraí-los. Só trabalho e obediência o tempo todo. Acha direito, seu Zinibaldo?
- É a lei - disse o senesca evasivamente.
- O senhor não acha que essa lei devia cair? - perguntou Mognólia.
- Cair? Lei não cai. Está aí para ser aplicada.
- Está vendo, Mogui? Está tudo errado, mas não pode ser discutido. É a lei. A nossa lei - disse Andreu..."
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Ao correr da estória, fui vendo situações as mais absurdas possíveis e fui percebendo o quanto a ficção se mistura com a realidade. Esse diálogo acima é básico.
Eu fico me perguntando até quando o povo brasileiro vai aceitar cumprir as "leis" que os golpistas que assaltaram o poder nos impuseram - os três órgãos do poder da república sul-americana chamada Brasil (agora brazil?). A cada mês desde que o Golpe foi perpetrado a partir de abril de 2016 nos são retirados direitos, nosso patrimônio público é dilapidado e doado, nossa moral e nossa soberania são achincalhadas pela camarilha de ladrões que ocupou setores do executivo, legislativo e judiciário.
O final do romance traz mensagens interessantes para reflexão.
Ainda durante os desfechos finais, outro diálogo me chamou a atenção, porque sempre disse isso para as pessoas com quem convivo e para aquelas que represento, os trabalhadores.
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"- É. Está parecendo tapera.
- E vai ficar cada vez pior, se você não se compenetrar. Você agora é o dono. Tem que se compenetrar.
Outro silêncio longo. O céu lá em cima havia mudado de azul claro em azul escuro. Alguns pássaros já voltavam para seus ninhos na jaqueira e nos furos das paredes.
- E se a gente fugisse? Eu e você?
- Fugisse pra onde?
- Sei lá. Pra outras terras. O resto do mundo não pode ser triste como isso aqui.
- Sei não. Não conheço o resto do mundo. Mas se for melhor, não será porque os que vivem lá fizeram ele melhor?"
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Amig@s leitores, eu vejo o mundo assim. Acho que temos que fazer o que deve ser feito para mudar as coisas para melhor. A nossa vida, o nosso trabalho, a nossa comunidade, os nossos direitos, o nosso comportamento. Tudo.
Abraços a tod@s. O livro é fácil de encontrar em sebos e sites de vendas virtuais. Eu comprei assim por dez reais.
William
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