Refeição Cultural
"Quanto ao comunismo, lorota. Não pega. Descansem: entre nós não pega. O povo tem religião, o povo é católico."
Ao reler postagens no meu blog, dei com uma sobre uma crítica literária de João Luiz Lafetá sobre a obra-prima de Graciliano Ramos, São Bernardo, publicado em 1934. A crítica está na edição que tenho do livro, da Editora Record, Rio de Janeiro, 2002. (ler AQUI)
Amig@s, da leitura da postagem com a crítica fui à leitura da obra. Peguei o livro na estante na manhã de sábado e só parei quando terminei a leitura à noite.
Impressionante! Fui vendo na figura do personagem principal, Paulo Honório, narrador da sua história no romance, a figura representativa de parte significativa do povo brasileiro, que teimamos em não reconhecer, em não aceitar.
Paulo Honório é a parcela do povo brasileiro que votou nesta coisa execrável que representa o bolsonarismo, o coronelismo, a casa grande, a burguesia vira-lata desta ex-colônia de exploração. Aliás, colônia novamente.
Paulo Honório é a parcela do povo que votou em Paula, vencedora da edição 19 do Big Brother Brasil (BBB), das Organizações Globo. 61% dos telespectadores votaram em uma pessoa com ideias racistas, com postura de intolerância à alteridade, segundo disseram os analistas da imprensa.
O contexto ficcional de São Bernardo e de Paulo Honório é o nosso mundo real Brasil que teimamos por um tempo - os pequenos intervalos de "democracia" - em não aceitar como nossa característica, que teimamos em disfarçar como se fôssemos povo cordial. Não somos! Nunca fomos! (somos passivos e não-reativos, moles; mas não somos cordiais, bonzinhos)
Nós mesmos, esse povo que não reage ao mandonismo, ao poder da casa grande, que somos manipulados e que defendemos os donos do poder, somos perfeitamente representados pelos personagens empregados de Paulo Honório. Os mansos, os cornos, os puxa-sacos, os açoitados. Os que se deitam juntos. Os que vão embora quando podem.
Eu fiquei surpreso com a obra, ao lê-la no Brasil pós golpe de 2016, pós prisão política do presidente Lula, pós destruição da economia do país pela Lava Jato, pós eleição de Jair Bolsonaro. Minha nossa, que retrato do Brasil! (e o livro foi feito há quase um século!)
Essa é uma característica das grandes obras de ficção. Quando são boas, são universais, são atemporais. Nos encontramos nelas quando lemos.
Desejo pelo menos que o final da obra São Bernardo aconteça por essas bandas do brasil-colônia também. Afinal, quem sabe o amanhã seja diferente e traga alguma esperança para o lado de cá da casa grande, onde está a massa miserável.
Apresento a seguir, uma seleção que considero representativa da ficção, e representativa da vida real, apesar de ser impossível à linguagem reproduzir a realidade, conforme aprendemos na linguística.
William
um leitor
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Uma narrativa seca, rude. |
São Bernardo - Graciliano Ramos
Quem narra a história?
"Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta e nove quilos e completei cinquenta anos pelo São Pedro. A idade, o peso, as sobrancelhas cerradas e grisalhas, este rosto vermelho e cabeludo têm-me rendido muita consideração. Quando me faltavam estas qualidades, a consideração era menor."
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"O que estou é velho. Cinquenta anos pelo São Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada."
Narrar, descrever, contar algo é sempre uma escolha, um recorte de interesses, um ponto de vista, uma construção de cenário
"Tenciono contar a minha história. Difícil. Talvez deixe de mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis. Também pode ser que, habituado a tratar com matutos, não confie suficientemente na compreensão dos leitores e repita passagens insignificantes. De resto isto vai arranjado sem nenhuma ordem, como se vê. Não importa. Na opinião dos caboclos que me servem, todo caminho dá na venda."
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"As pessoas que me lerem terão, pois, a bondade de traduzir isto em linguagem literária, se quiserem. Se não quiserem, pouco se perde. Não pretendo bancar escritor..."
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"Essa conversa, é claro, não saiu de cabo a rabo como está no papel. Houve suspensões, repetições, mal-entendidos, incongruências, naturais quando a gente fala sem pensar que aquilo vai ser lido. Reproduzo o que julgo interessante. Suprimi diversas passagens, modifiquei outras..."
Cultivar a ilusão (ideologia)
"- A gente se acostuma com o que vê. E eu desde que me entendo, vejo eleitores e as urnas. Às vezes suprimem os eleitores e as urnas: bastam livros. Mas é bom um cidadão pensar que tem influência no governo, embora não tenha nenhuma. Lá na fazenda o trabalhador mais desgraçado está convencido de que, se deixar a peroba, o serviço emperra. Eu cultivo a ilusão. E todos se interessam."
Brasil, uma terra possuída, de gente possuída, tudo é propriedade, coisa, bicho
O coronelismo na política, desde sempre:
"Que diabo diria ele contra mim na folha? Não sendo funcionário público, as minhas relações com o partido limitavam-se a aliciar eleitores, entregar-lhes a chapa oficial e contribuir para música e foguetes nas recepções do governador."
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Negociando um casamento:
"Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma ideia que veio sem que nenhum rabo-de-saia a provocasse. Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito, difícil de governar.
A que eu conhecia era a Rosa do Marciano, muito ordinária. Havia conhecido também a Germana e outras dessa laia. Por elas eu julgava todas. Não me sentia, pois, inclinado para nenhuma: o que eu sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de S. Bernardo."
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"- Quanto a mim, acho que em questões de sentimento é indispensável haver reciprocidade. (diz Madalena)
- Qual reciprocidade! Pieguice. Se o casal for bom, os filhos saem bons; se for ruim, os filhos não prestam. A vontade dos pais não tira nem põe. Conheço o meu manual de zootecnia."
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Ao espancar seu empregado Marciano:
"Julguei que ela se aborrecesse por outro motivo, pois aquilo era uma frivolidade.
- Ninharia, filha. Está você aí se afogando em pouca água. Essa gente faz o que se manda, mas não vai sem pancada. E Marciano não é propriamente um homem.
- Por que?
- Eu sei lá. Foi vontade de Deus. É um molambo.
- Claro. Você vive a humilhá-lo.
- Protesto! exclamei alterando-me. Quando o conheci, já ele era molambo.
- Provavelmente porque sempre foi tratado a pontapés.
- Qual nada! É molambo porque nasceu molambo..."
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Ao desprezar a história de vida da professora Madalena, em relação à sua propriedade S. Bernardo:
"- Acha pouco? É porque você não sabe o esforço que isso custou. Maior que o seu para obter S. Bernardo. E o que é certo é que d. Glória não me troca por S. Bernardo.
Vaidade. Professorinhas de primeiras letras a escola normal fabricava às dúzias. Uma propriedade como S. Bernardo era diferente."
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De como olham o mundo a partir da casa grande:
"Ali pelos cafus desci as escadas, bastante satisfeito. Apesar de ser indivíduo medianamente impressionável, convenci-me de que este mundo não é mau. Quinze metros acima do solo, experimentamos a vaga sensação de ter crescido quinze metros. E quando, assim agigantados, vemos rebanhos numerosos a nossos pés, plantações estirando-se por terras largas, tudo nosso, e avistamos a fumaça que se eleva de casas nossas, onde vive gente que nos teme, respeita e talvez até nos ame, porque depende de nós, uma grande serenidade nos envolve. Sentimo-nos bons, sentimo-nos fortes..."
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A forma de mercadoria com que trata a senhora de quase cem anos que o criou, quando ele mandou buscá-la para acomodá-la na fazenda:
"- Ó Gondim, já que tomou a empreitada, peça ao vigário que escreva ao padre Soares sobre a remessa da negra. Acho que acompanho vocês, vou falar a padre Silvestre. É conveniente que a mulher seja remetida com cuidado, para não se estragar na viagem."
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Ao contar aos leitores, que tem relações sexuais com a esposa de um de seus capatazes:
"O Marciano conheceria as minhas relações com a Rosa? Não conhecia. Tive sempre o cuidado de mandá-lo à cidade, a compras, oportunamente. E talvez não quisesse conhecer. Também se podia admitir que fosse dotado de pouca penetração."
A insuperável cultura do preconceito de ontem e de hoje
Alguns exemplos:
"(...) abrequei a Germana, cabritinha sarará danadamente assanhada, e arrochei-lhe um beliscão retorcido na popa da bunda. Ela ficou-se mijando de gosto..."
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"De repente conheci que estava querendo bem à pequena. Precisamente o contrário da mulher que andava imaginando - mas agradava-me, com os diabos. Miudinha, fraquinha. D. Marcela era bichão. Uma peitaria, um pé-de-rabo, um toitiço."
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"Realmente, uma criatura branca, bem lavada, bem vestida, bem engomada, bem aprendida, não ia encostar-se àqueles brutos escuros, sujos, fedorentos a pituim."
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"Mulher não vai com carrapato porque não sabe qual é o macho."
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"- Ó Gondim, já que tomou a empreitada, peça ao vigário que escreva ao padre Soares sobre a remessa da negra."
A religião, o papel da religião neste mundo da exploração... (não confundir fé com religião)
"A verdade é que não me preocupo muito com o outro mundo. Admito Deus, pagador celeste dos meus trabalhadores, mal remunerados cá na terra, e admito o diabo, futuro carrasco do ladrão que me furtou uma vaca de raça. Tenho portanto um pouco de religião, embora julgue que, em parte, ela é dispensável num homem. Mas mulher sem religião é horrível."
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"- Aí padre Silvestre tem razão, concordou Gondim. A religião é um freio."
Comunismo, sempre o papel do comunismo na boca do proprietário, do padre, do poder instituído
"Sim senhor! Conluiada com o Padilha e tentando afastar os empregados sérios do bom caminho. Sim senhor, comunista! Eu construindo e ela desmanchando."
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"Comunista, materialista. Bonito casamento!"
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"- Nada disso, asseverou padre Silvestre. Essas doutrinas exóticas não se adaptam entre nós. O comunismo é a miséria, a desorganização da sociedade, a fome."
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"- Eu não. Estou quieto, no meu canto. Agora achar que o governo é mau, eu acho. Que há urgências de reforma, há. Quanto ao comunismo, lorota, não pega. Descansem: entre nós não pega. O povo tem religião, o povo é católico."
As referências ao filho, propriedade que não gosta
O filho desprezado pelo narrador, nem sequer teve seu nome revelado na história. Nas poucas vezes em que foi citado, foi mais uma coisa como todas as outras de propriedade dele.
"Madalena estava prenhe, e eu pegava nela como em louça fina. Ultimamente dizia-me coisas desagradáveis, que eu fingia não compreender. Via a barriga crescer-lhe..."
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"O pequeno berrava como bezerro desmamado. Não me contive: voltei e gritei para d. Glória e Madalena:
- Vão ver aquele infeliz. Isso tem jeito?"
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"E o pequeno continuava a arrastar-se, caindo, chorando, feio como os pecados. As perninhas e os bracinhos eram finos que faziam dó. Gritava dia e noite, gritava como um condenado, e a ama vivia meio doida de sono. Às vezes ficava roxo de berrar, e receei que estivesse morrendo quando padre Silvestre lhe molhou a cabeça na pia. Com a dentição encheu-se de tumores, cobriram-no de esparadrapos: direitinho uma rês casteada..."
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"Bocejava. Cada bocejo de quebrar queixo. Vida estúpida! É certo que havia o pequeno, mas eu não gostava dele. Tão franzino, tão amarelo!"
Bibliografia:
Ramos, Graciliano. São Bernardo. 74ª edição. Editora Record, Rio de Janeiro, 2002.
Um comentário:
Olá prezado ABC, como vai? Espero que esteja bem!
Que bom que gostou. Escrever é um de meus gostos na vida. Dá um trabalhão fazer um texto assim, mas quando algumas pessoas leem e veem proveito, já valeu a pena.
Abraços e fica bem!
William
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