quarta-feira, 2 de julho de 2008

Crítica: São Bernardo (1934) - Graciliano Ramos




Leitura do livro de Graciliano Ramos e do ensaio de Lafetá sobre o livro

Análise crítica e discussão do ensaio “O mundo à revelia”, de João Luiz Lafetá (sobre São Bernardo, de Graciliano Ramos)


Introdução

Uma das principais questões a respeito da crítica literária é definirmos qual seria sua principal função. Ao longo de sua história – do século XIX até nossos dias – ela já serviu para discutir qual o papel da literatura, serviu para debater a própria arte literária, serviu para justificar alguns autores e obras e rejeitar outros (sob a ótica do status quo), teve o importante papel de exegese, instigou grandes debates sobre a obra ser fechada em si mesma ou ter relação com o mundo exterior e seu contexto e, nos dias atuais, já é confundida como apresentadora de bons ou maus produtos para o consumidor de livros.

Acredito que um dos papéis da crítica literária seja o de facilitar a leitura de uma obra, de modo a fazer o leitor chegar o mais próximo possível daquilo que o autor procura transmitir. É evidente que a leitura, do ponto de vista de cada leitor, sempre terá algo de subjetivo. Porém, uma boa crítica literária pode ajudar sobremaneira no percurso da leitura de uma obra. Essa ajuda ao leitor pode ocorrer antes, durante ou após a leitura da obra.

Com a mercantilização capitalista da literatura contemporânea, a crítica literária ficou um pouco prejudicada, pois o que mais temos hoje são resenhas e resenhistas ao invés de críticos literários. Passou-se a confundir resenhas e indicação de livros para aquisição nas mega livrarias com análise da obra e técnicas literárias envolvidas em sua confecção.


O ensaio de Lafetá

O texto do autor é dividido em cinco partes.

1. Dois capítulos perdidos

Lafetá se desculpa da paráfrase longa (justificada pela fascinação ao estilo) e destaca a qualidade da técnica narrativa:

“o que ressalta primeiro, naturalmente, é a maneira direta de tratar o assunto. Há algo para ser dito e se vai até lá sem rodeios, há um projeto a ser cumprido e se tenta cumpri-lo de imediato” - e observa adiante:  “energia – é o que ressuma destas três primeiras páginas”.

O leitor é jogado “diretamente na ação, no meio dos fatos”.

Lafetá explica que o personagem narrador Paulo Honório surge quase por inteiro no primeiro capítulo, sem dizer explicitamente ao leitor que é “um homem empreendedor, dinâmico, dominador, obstinado, que concebe uma empresa, trata de executá-la, utiliza os outros para isso e não se desanima com os fracassos”.

Ou seja, leitor, esse é o “eu” da história: “à imagem de seu estilo, é direto e sem rodeios, concentrado sobre si mesmo e sobre seu trabalho, decidido, brusco”.

Ao contrário da opinião do narrador da história, o crítico afirma não terem sido os dois capítulos perdidos:

Sua figura dominadora e ativa está criada. Fomos já introduzidos em seu mundo... um mundo que se curva à sua vontade”.

Conclui a primeira parte do ensaio destacando a coesão da técnica narrativa “totalmente imbricados surgem, à nossa frente personagem e ação. Paulo Honório nasce de cada ato, mas cada ato nasce por sua vez de Paulo Honório... este caráter compacto e dinâmico, esta ligação íntima entre o homem e o ato (espelhada pela linguagem direta, brutal, econômica, pelo ritmo rápido dos dois capítulos), esta interação entre o ser e o fazer vão compor a construção do romance”.


2. A posse de São Bernardo

Explicando a distinção teórica entre “sumário narrativo” e “cena”, os dois modos básicos de narrar, Lafetá relaciona o uso do sumário inicial não para destacar vários eventos em um tempo vasto e sim para marcar a atitude do narrador “sem nenhuma análise psicológica, mas graças à modulação do tom narrativo, ficamos conhecendo o caráter violento e maciço do herói”.

Durante os primeiros capítulos, vemos a história do protagonista ser narrada de seu nascimento até a conquista da fazenda São Bernardo, entre os capítulos três a oito, através de maior uso de sumários, onde a velocidade do tempo narrativo é acelerada. Lafetá explica a perfeição do casamento personagem/ação:

Daí a coesão da narrativa, que une indissoluvelmente personagem e ação. Pois Paulo Honório, representante da modernidade que entra no sertão brasileiro, é o emblema complexo e contraditório do capitalismo nascente, empreendedor, cruel, que não vacila diante dos meios e se apossa do que tem pela frente, dinâmico e transformador. ‘A construção de um burguês: eis o conteúdo da primeira parte de São Bernardo’. Observou com acerto Carlos Nelson Coutinho”.

Cabe aqui uma informação importante de Antonio Candido quando diz em seu texto “Crítica e sociologia” que é preciso parcimônia para não exagerar na ideia de que a relação obra e ambiente é indispensável, como também não afirmar o contrário, de que não deve haver vínculo algum:

É o que tem ocorrido com o estudo da relação entre a obra e o seu condicionamento social, que a certa altura do século passado chegou a ser vista como chave para compreendê-la, depois foi rebaixada como falha de visão...”.

Vendo a forma como Graciliano Ramos constrói São Bernardo, é possível perceber o que explica o professor Antonio Candido, pois o contexto externo, social, se transforma em construção interna na obra, o que colabora para a economia da mesma e dá sentido na forma como o personagem-narrador apresenta a sua história:

Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno”.

Outra técnica narrativa interessante apontada pelo crítico nesta segunda parte são as marcações temporais, como cronômetro, para gerar o efeito de crueldade e frieza com que o personagem alcança seu objetivo de tomar São Bernardo e ser seu novo dono.

Esse momento decisivo no romance é contado em cena com uma forte tensão na hora da negociação entre dívida e preço final da fazenda.

Lafetá cita V. Propp para comparar a primeira parte do romance às técnicas dos contos populares onde temos os heróis com danos a resolver ou carências a suprir. Paulo Honório irá até o capítulo oito para resolver os problemas inerentes a aquisição e estabilização da fazenda São Bernardo.


3. Madalena


Começa outro núcleo do romance. A cena passa a ser dominante. Vem agora a busca de outra posse: Madalena.

A chave do novo núcleo surge de um novo desejo do protagonista: “Amanheci um dia pensando em casar”.

A observação de Lafetá sobre a técnica de trazer o algo a mais, mesmo em uma linguagem precisa e seca, é fantástica: “A comparação entre d. Marcela e Madalena liquida, para Paulo Honório, o valor da primeira... Mas, se d. Marcela foi afastada, é a vez de Madalena penetrar nas suas preocupações; o terceiro olhar (a terceira notação) mostra não apenas a observação fria do primeiro ou a aprovação tácita do segundo, mas um certo grau de envolvimento e de fascinação: ‘A loura tinha a cabecinha inclinada e as mãozinhas cerradas, lindas mãos, linda cabeça.’ O diminutivo (mãozinhas, cabecinha) não descreve apenas, imprime à descrição um certo grau de afetividade que a repetição do adjetivo (lindas, linda) vem reforçar”.

A diferença de interesse do personagem está na linguagem para referir-se às duas raparigas.

Ao final deste objetivo, impera a mesma manipulação para apossar-se das coisas. Tudo se curva às suas vontades. O que seria um ano para o casamento se converte em uma semana.


4. Dínamo emperrado


Lafetá segue explicando a subordinação dos elementos do romance à ação e ao personagem.

Cita Antonio Candido ao lembrar a força do sentimento de propriedade que perpassa pelo enredo do romance: “De fato, o sentimento de propriedade constitui um dos elementos temáticos que unificam o livro. Paulo Honório, afirma Antonio Candido, ‘é modalidade de uma força que o transcende e em função da qual vive: o sentimento de propriedade' ”.

Aqui chegamos onde gostaríamos, que é discutir o que Candido fala a respeito da relação entre texto e contexto em seu “Crítica e Sociologia”. Lafetá observa a analogia inevitável das características internas do romance com as externas contextuais.

Se alinharmos todas as características examinadas – ação, energia, objetividade, dinamismo, capacidade transformadora e sentimento de propriedade – torna-se inevitável o surgimento de uma analogia entre o herói e a burguesia como classe”.

O crítico afirma “que Paulo Honório simboliza, no interior do romance, a força modernizadora que atualiza de forma devastante o universo de São Bernardo”.

A mesma relação de precificação das coisas, das posses de Paulo Honório – São Bernardo, Margarida, Madalena – é “Uma das mais sérias consequências da produção para o mercado (característica do capitalismo) é o afastamento e a abstração de toda qualidade sensível das coisas, que é substituída na mente humana pela noção de quantidade. O valor-de-uso que toda mercadoria possui é distanciado e tornado implícito pela produção de valores-de-troca”. (Ler AQUI sobre essa questão em Marx)

Veja aqui uma cena onde o proprietário fala da aquisição e remessa de Margarida, aquela que fez a vez de sua mãe e que estava desaparecida: “Ó Gondim, já que tomou a empreitada, peça ao vigário que escreva ao padre Soares sobre a remessa da negra... É conveniente que a mulher seja remetida com cuidado, para não se estragar na viagem”.

Lafetá fala da reificação das coisas do mundo na produção capitalista (contexto) e mostra como isso está relacionado ao modo de ver o mundo do personagem Paulo Honório (interno):

O homem reificado é este aleijão que ele (protagonista) nos descreve e vemos por toda parte: o coração miúdo e uma boca enorme, dedos enormes. O sentimento de propriedade, que unifica todo o romance do qual o ciúme é apenas uma modalidade, distorce o homem desta maneira radical. A vida agreste, que o fez agreste, é a culpada por Paulo Honório não ser capaz de enxergar Madalena. A vida agreste são as lutas pela propriedade, pelo rebanho, pelas plantações de algodão e mamona, pelo poder e pelo capital. O homem agreste é aquele ser no qual se transformou Paulo Honório”.

À medida em que o protagonista defende seus interesses econômicos, aumentam os conflitos com Madalena. Ela se espanta com as atitudes dele e ele se surpreende do espanto dela.

O crítico destaca bem as três partes da história com forte marcação temporal: a compra de São Bernardo; a conquista de Madalena; o diálogo final na capela antes da morte de Madalena.


5. Narrativa e busca

Análise esplêndida fez Lafetá neste desfecho onde a perda do controle do mundo por Paulo Honório (com a morte de Madalena e a revolução) se mostra até na forma com que narra sua história.

O protagonista, ao final de sua narrativa, não manda em mais nada. Até o rumo de seus passos é decidido por suas pernas e não por ele mesmo:

E os meus passos me levavam para os quartos como se procurassem alguém”.

Como diz o crítico: “É, enfim, o mundo à revelia, fora de seu controle”.

Lafetá explica a duplicidade temporal que marca o romance: os capítulos um, dois e trinta e seis (e também o dezenove) estão no tempo da enunciação; os demais estão no tempo do enunciado (os eventos que ocorreram).

Fica evidente a diferença de velocidade e a linguagem dos tempos distintos: linguagem seca e tempo rápido no tempo do enunciado; linguagem de lamentação elegíaca e compasso lento no tempo da enunciação.

O que seria a busca? Como diz Lukács sobre o romance “é a história da busca de valores autênticos por um personagem problemático, dentro de um universo vazio e degradado, no qual desapareceu a imanência do sentido à vida”.


Bibliografia

CANDIDO, Antonio. “Crítica e Sociologia”, in: Literatura e Sociedade. Coleção grandes nomes do pensamento brasileiro. Publifolha, 2000.

RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 74ª edição. Editora Record, RJ 2002.


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Post Scriptum (14/4/19):

No fim de semana de 13 e 14 de abril, reli esta postagem, que me levou a reler o livro pela terceira vez - li entre a manhã e a noite de sábado 13. Fiz postagem a respeito do livro (ler AQUI) e reli o texto de Lafetá, estudando com atenção; e revisei esta postagem de crítica. O processo me gerou bastante reflexão.

2 comentários:

Luci Cardoso disse...

Você sintetiza muito bem a crítica de Antônio Candido e de Lafetá a obra São Bernardo.
Muito Obrigada, ajudou muito na análise que precisei elaborar para a Faculdade.

Bj.

William Mendes disse...

Olá Luci, como vai?

O intuito é poder contribuir com o pouco que sei para que juntos possamos aumentar o conhecimento de forma gratuita.

Tudo de bom!