O elo que não se pode romper
Em dois tempos, o olhar de José Saramago sobre a Declaração, que exige "urgente cumprimento"
Estadão - 14 de dezembro de 2008 0h 35
Discurso pronunciado no banquete de encerramento da entrega do Nobel ao escritor, em Estocolmo, 10 de dezembro de 1998
Majestade, Alteza Real, senhoras e senhores:
Cumpriram-se hoje exactamente cinquenta** anos sobre a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não têm faltado, felizmente, comemorações à efeméride. Sabendo-se, porém, com que rapidez a atenção se fatiga quando as circunstâncias lhe impõem que se aplique ao exame de questões sérias, não é arriscado prever que o interesse público por esta comece a diminuir a partir de amanhã. Claro que nada tenho contra actos comemorativos, eu próprio contribuí para eles, modestamente, com algumas palavras. E uma vez que a data o pede e a ocasião não o desaconselha, permita-se-me que pronuncie aqui umas quantas palavras mais.
Como declaração de princípios que é, a Declaração Universal dos Direitos Humanos não cria obrigações legais aos Estados, salvo se as respectivas Constituições estabelecem que os direitos fundamentais e as liberdades nelas reconhecidos serão interpretados de acordo com a declaração. Todos sabemos, porém, que esse reconhecimento formal pode acabar por ser desvirtuado ou mesmo denegado na acção política, na gestão económica e na realidade social. A Declaração Universal é geralmente considerada pelos poderes económicos e pelos poderes políticos, mesmo quando presumem de democráticos, como um documento cuja importância não vai muito além do grau de boa consciência que lhes proporcione.
Nesses cinquenta anos não parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que, moralmente, quando não por força da lei, estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade que é capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso próprio semelhante.
Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, seja porque não sabem, seja porque não podem, seja porque não querem. Ou porque não lho permitem os que efectivamente governam, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a uma casca sem conteúdo o que ainda restava de ideal de democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Foi-nos proposta uma Declaração Universal dos Direitos Humanos, e com isso julgámos ter tudo, sem repararmos que nenhuns direitos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem, o primeiro dos quais será exigir que esses direitos sejam não só reconhecidos, mas também respeitados e satisfeitos. Não é de esperar que os governos façam nos próximos cinquenta anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor.
Não estão esquecidos os agradecimentos. Em Frankfurt, onde estava no dia 8 de outubro, as primeiras palavras que disse foram para agradecer à Academia Sueca a atribuição do Prémio Nobel de Literatura. Agradeci igualmente aos meus editores, aos meus tradutores e aos meus leitores. A todos volto a agradecer. E agora quero também agradecer aos escritores portugueses e de língua portuguesa, aos do passado e aos de agora: é por eles que as nossas literaturas existem, eu sou apenas mais um que a eles se veio juntar. Disse naquele dia que não nasci para isto, mas isto foi-me dado. Bem hajam, portanto.
10 de dezembro de 2008
Com a reflexão abaixo, Saramago manifestou-se em relação ao 60º aniversário da Declaração, na semana passada. Ao fim de considerações não muito otimistas, reforça a importância de que os países endossem e persigam o que nela está estabelecido.
Por toda a parte, num último e talvez desesperado intento para travar a ameaça, milhões de pessoas decidiram descer à rua em março de 2003 a fim de protestar contra a iminente invasão do Iraque. Não lhes serviu de nada. Cinco anos passaram já e o estado de guerra continua, prevendo-se agora, resta saber com que fundamento, que os ocupantes norte-americanos se retirarão do país em 2011. Vencidas, de alguma maneira humilhadas, essas pessoas, milhões, repito, regressaram às suas casas sob o peso da mais desoladora das frustrações. De uma delas, quase em lágrimas, ouvi então esta ansiosa pergunta: "E agora, que fazemos, que podemos nós fazer?" Quase sem ter de pensar, respondi-lhe: "Queres uma causa? Tens aí os direitos humanos". A sugestão foi recebida sem entusiasmo, quase com indiferença, o que não me surpreendeu, dado que a questão dos direitos humanos é geralmente entendida como algo remoto, fora do alcance, uma outra espécie de utopia, inacessível como quase todas. Na verdade, não me consta que a minha lacrimosa interlocutora haja seguido o conselho?
Há dez anos, em Estocolmo, precisamente no dia 10 de dezembro de 1998, quando em todo mundo se estavam celebrando os cinquenta anos sobre a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, chamei a atenção dos mil e duzentos convidados que participavam no banquete de encerramento dos actos solenes relacionados com a atribuição do Prémio Nobel, para a situação em que os ditos direitos se encontravam, ignorados na prática pelos governos, desprezados grosseiramente pelos poderes económicos e financeiros soberanos, perante a apatia geral de uma sociedade, que, no fundo da sua consciência, talvez já não acredite, se alguma vez teve essa ilusão, no cumprimento ao menos satisfatório dos preceitos consignados naquele documento.
A situação não melhorou ao longo destes anos, podemos até dizer que se agravou seriamente, ao ponto de já nos parecerem despropositadas, em todos os sentidos, quaisquer manifestações públicas ao redor da efeméride. O mundo não daria pela falta se a Declaração fosse dada amanhã como nula e inexistente. O seu desaparecimento físico viria apenas confirmar a realidade objectiva da ineficácia de um texto cheio de boas intenções, reduzidas hoje a zero pela inoperância das entidades políticas responsáveis, a começar pelos governos e a terminar nas próprias Nações Unidas.
E, contudo, a nós, cidadãos comuns, não nos resta outra atitude que defender por todos os meios a Declaração Universal dos Direitos Humanos e exigir em todos os foros o seu urgente cumprimento, sob pena, persistindo a passividade colectiva, de vir a perder-se a própria noção de direito em matéria tão importante como a plena realização da pessoa. É necessário que se torne em evidência e em intrumento de acção política este simples axioma: "É certo que sem a democracia não poderia haver direitos humanos, mas também não é menos certo que sem direitos humanos não poderá haver democracia". Sim, leram bem, sem direitos humanos não haverá democracia digna desse nome. Portanto, lutar pelos direitos humanos é, em última análise, lutar pela democracia.
*José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, é autor entre outros livros de Ensaio sobre a Cegueira e A Viagem do Elefante (ambos pela Companhia das Letras)
**Foi mantida nos textos acima a grafia original de Saramago
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