(Foto: Nguyen Huy Kham/Reuters) |
Viagem ao país do “socialismo de mercado”
Por: Bernardo Kucinski
Publicado em 20/07/2010
Eu e minha mulher somos de gerações que viveram cada minuto da Guerra do Vietnã (1959-1975), uma das mais sangrentas de todos os tempos. Por isso, nossa visita de 18 dias a esse país, e também ao Camboja – vizinho do sudeste asiático também atingido por conflitos decorrentes da Guerra Fria – teve um sentido muito especial. Eu, um pouco mais velho, ainda lembro o cerco de Dien Bien Phu, comandado pelo general Giap, que forçou os franceses à rendição. Milhares de soldados emergiram de repente das florestas próximas, a pé e de bicicleta, surpreendendo e subjugando a prepotência francesa.
Essa imagem dos homens pequeninos, magrelas e quase invisíveis vencendo a soldadesca ocidental hiperequipada – primeiro os franceses, depois os americanos – acompanhou toda a guerra em que foram despejados 8 milhões de toneladas de bombas e 72 milhões de litros de desfolhantes químicos, matando 3 milhões de vietnamitas e queimando um milhão de hectares de mata nativa. Os B-52 americanos despejaram no Vietnã três vezes mais bombas do que em toda a Segunda Guerra Mundial.
Foi também a guerra mais criticamente coberta pelo jornalismo ocidental. No Museu de Guerra que visitamos em Saigon, hoje chamada Cidade de Ho Chi Min, uma exposição homenageia 134 fotógrafos de 11 nacionalidades que morreram na cobertura do confronto ou foram levados à loucura pelas atrocidades que testemunharam. Ali estava a foto emblemática dessa guerra, a da criança nua correndo desesperada depois de atingida pelas bombas incendiárias de Napalm.
O país hoje é um formigueiro em atividade, onde todos correm para recuperar o tempo perdido. A renda per capita ainda é muito baixa, US$ 700 por ano, um décimo da nossa. O salário mínimo também é um décimo do nosso: US$ 30. Embora todos os preços sejam baixos, esses valores dão uma ideia do tipo de vida, ainda austera, que levam os vietnamitas.
A guerra consumiu gerações inteiras. A maioria esmagadora da população hoje é de jovens, o que talvez explique o predomínio da motocicleta como meio de transporte. Quase não há transporte coletivo e são poucos os carros. Enxames de motos dominam as ruas. A moto mais barata vem da China e custa US$ 300, diz nosso guia, senhor Tchin. Equivale a dez meses de salário mínimo. Em Cidade de Ho Chi Minh há 4 milhões de motos para 2 milhões de famílias. O veículo está para o corpo do vietnamita como o celular está para os nossos sentidos. “Sem ela você não existe”, diz Tchin. Num parque de Hanói vi uma cena emblemática: duas motos “namorando”. Isso mesmo, estavam estacionadas, uma encostada na outra, um pouco atrás de seus respectivos donos, recostados na grama.
Dono do destino
O regime político é de partido único, o Partido Comunista do Vietnã, fundado em 1922. Falamos tanto em China e em Cuba, e esquecemos que esse pequeno e populoso país – de 86 milhões de habitantes – também deve ser analisado como uma experiência de “socialismo real”. A soviética colapsou, a chinesa caminha rapidamente para o capitalismo total. E a vietnamita? Uma grande diferença entre o Partido Comunista do Vietnã e os demais é o fato de ele ter proposto e conduzido desde o início uma guerra de libertação nacional, não uma revolução social. Depois da expulsão dos americanos e da unificação do país, adotaram o modelo de economia planificada, com metas quantitativas de produção. Mas logo o abandonaram, assustados pelo colapso da União Soviética e sua própria estagnação econômica.
Desde 1987 os dirigentes vietnamitas chamam sua experiência de “socialismo de mercado”. Deixam ao mercado a determinação de preços e emulam a competição e o esforço pessoal de cada um, mas não deixam que o mercado mande no destino do país. Esse destino, diz vagamente o partido, ainda é o socialismo.
A experiência parece agradar à população, embora alguns aspectos a assustem. Por exemplo, discrepâncias entre serviços médicos públicos e privados, fato que nós brasileiros conhecemos bem. A produção cresce 7% ao ano em média, com indústria e serviços superando em valor a agricultura, uma medida de modernização. Em toda a parte se veem novas escolas e hospitais. Estradas modernas cortam o Delta do Mekong (onde o rio desemboca no mar). No campo, uma reforma agrária deu a cada família 360 metros quadrados por pessoa – numa família de quatro, são 1.440 metros quadrados para plantar o arroz. O Vietnã é um dos maiores exportadores mundiais desse grão.
Apesar de proliferação de bandeiras vermelhas e faixas alusivas à guerra, nada no cotidiano lembra um regime comunista, como o imaginamos, ou qualquer regime movido por uma ideologia ou um sentido de missão ou redenção histórica. Esse contraste foi o que mais me impressionou. No topo, uma estrutura de Estado, comandada por partido único, fortemente marcada pela ideologia, fraseologia e procedimentos típicos da abordagem marxista, como se vê pelos documentos oficiais.
Na base, uma economia capitalista parecida com qualquer outra, com empresas de todos os tipos, inclusive estrangeiras, comércio totalmente privado, povo laborioso que não dá a menor pelota para a ideologia, voltado à necessidade de vencer na vida, educar os filhos o melhor possível.
Ninguém liga se você é do Partido Comunista ou não, isso não é assunto no cotidiano. Não precisa ser membro do partido para ter emprego, diz o nosso guia. Para ser professor precisa? Não, mas para ser diretor de escola precisa. Ou seja, o partido funciona como uma espécie de qualificação. Faz no Estado vietnamita o papel que faz o diploma de curso superior nos concursos públicos do nosso sistema. Com a diferença, entre outras, de que com a qualificação vem o controle. Para fazer carreira no serviço público, virar um dirigente, precisa ser do partido. No partido se dão as discussões, as decisões e se cobra a obediência.
Sem medo
Nas ruas, o ambiente é de liberdade. Não se nota medo de falar, medo de vigilância, controles do ir e vir. Nada disso. Nadinha. Os jornais denunciam corrupção nas licitações de obras públicas. Uma comissão especial vai estudar como reduzir a corrupção. Falam da exploração do trabalho infantil. Uma campanha vai tentar acabar com isso. Parece Brasil.
Um regime benigno, quando comparado aos vizinhos Camboja e Laos, nos quais ainda se veem mendigos nas ruas e o analfabetismo chega a 50%. Tenta melhorar a vida de todos. A educação básica é obrigatória. Doze anos de escola, tempo integral, oito horas por dia. O analfabetismo caiu de 70% para 3%. Por toda a parte há bandos de estudantes. Quem não mandar filho para a escola fica com a ficha suja na prefeitura. Pode até ter dificuldade na hora de procurar emprego. Aí sim, tem um controle estrito, mas é algo mais parecido, digamos, com o do nosso Bolsa Família, ou o sistema japonês de controle comunitário.
O ensino básico não é totalmente gratuito porque os pais precisam pagar pelo material gasto no ensino: giz, papel e tudo o mais. Também é costume dar uma gratificação ao professor para compensar os salários, que são muito baixos. Tudo isso custa pouco, lembra a nossa antiga “caixinha escolar”. As famílias podem pagar sem sacrifício, mas a prática tem a função importante de atribuir valor ao que o Estado provê. Essa foi a grande revolução econômica introduzida pelo PC do Vietnã, a partir do seu 6º Congresso, em 1987. Trabalhar com o conceito de valor. Acabar com os preços artificiais, fixados burocraticamente e sem relação com os custos.
Os comunistas vietnamitas, ao contrário de muita gente que se diz de esquerda no Brasil, concluíram que a revolução tecnológica iniciada nos anos 70, em especial a instauração de graus elevados de competição em escala global, obrigam todas as economias a trabalhar com o conceito de valor e abandonar o princípio do igualitarismo na remuneração do trabalho, pelo qual todos ganhavam o mesmo, fossem mais preparados ou menos preparados, mais dedicados ou mais acomodados. O que parece amarrar tudo isso, segundo alguns documentos do partido, é a existência de um projeto nacional, de que tudo o que se faz tem de estar subordinado a objetivos nacionais e sociais, por sua vez modificados ou retificados a cada número de anos.
Essa viagem também me fez recordar o Brasil da era JK. A corrida para recuperar o tempo perdido lembra os 50 anos em 5 de Juscelino. As novas estradas, a relativa pobreza daquela época, ao mesmo tempo o burburinho do crescimento. Até a paisagem do Vietnã lembra o Brasil dos anos 1950. Há cajueiros por toda a parte, mangueiras, abacateiros e bananeiras. A grande diferença está na estrutura das vilas e pequenas cidades vietnamitas, todas erguidas ao longo das estradas. Na frente, os pequenos prédios da largura de uma porta de loja, ao fundo os campos de arroz. De repente surge um prédio público, quase sempre novo em folha, uma escola, um hospital, um quartel, num estilo francês colonial leve, com dois ou três pavimentos, pintado na cor amarelo ocre, como a lembrar que um dia aquelas terras foram território colonial francês.
Guerra quente
A batalha da cidade de Dien Bien Phu, no então Vietnã do Norte, marcou a primeira grande derrota de poderosas tropas ocidentais contra as modestas mas disciplinadas forças vietnamitas. A batalha vencida pelos asiáticos em 1954 representou o fim da colonização francesa na Indochina.
A Guerra do Vietnã, deflagrada cinco anos depois, já não era anticolonização. Foi o segundo grande conflito (depois da Guerra da Coreia, 1950-1955) detonado pela Guerra Fria, que durante metade do século 20 opôs o mundo capitalista liderado pelos Estados Unidos ao bloco socialista liderado pela ex-União Soviética.
A partir de 1959, o confronto envolveu diretamente Vietnã do Norte (comunista) e do Sul (capitalista). A partir de 1964, os Estados Unidos enviaram tropas e armamentos para campos de batalha que se estendiam, além dos dois países, por Laos e Camboja.
Os vietcongues e suas táticas de guerrilha, tendo a selva como aliada, deram canseira aos invasores. No final da década de 1960, o fracasso da intervenção norte-americana estava exposto.
Em 1968, os norte-vietnamitas invadiram o Sul e tomaram a embaixada americana. A reação dos EUA desencadeou o período mais sangrento da guerra. O mundo assistia pela TV às atrocidades das batalhas. Cresceu a resistência mundial à intervenção, inclusive dentro dos EUA. Sem apoio, o governo americano aceitou em 1973 um acordo de cessar-fogo. Dois anos depois retirou de vez suas tropas. Em 1976 foi criada a República Socialista do Vietnã, unificando Norte e Sul.
Fonte: Revista do Brasil - Edição 49 - Julho de 2010
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