Batalha das forcas caudinas. Exército sumnita humilha romanos. Machado usa a expressão no romance em momento chave. Foto: Wikipedia. |
Linha reta e linha curva – Machado de Assis
CONTOS DE MACHADO DE ASSIS, 1865 (10)
Publicado originalmente em Jornal das Famílias
1865
I
Era em Petrópolis,
no ano de 186... Já se vê que a minha história não data de longe. É tomada dos
anais contemporâneos e dos costumes atuais. Talvez algum dos leitores conheça
até as personagens que vão figurar neste pequeno quadro. Não será raro que,
encontrando uma delas amanhã, Azevedo, por exemplo, um dos meus leitores
exclame:
— Ah! cá vi
uma história em que se falou de ti. Não te tratou mal o autor. Mas a semelhança
era tamanha, houve tão pouco cuidado em disfarçar a fisionomia, que eu, à
proporção que voltava a página, dizia comigo: É o Azevedo, não há dúvida.
Feliz Azevedo! À
hora em que começa essa narrativa é ele um marido feliz inteiramente feliz.
Casado de fresco, possuindo por mulher a mais formosa dama da sociedade, e a
melhor alma que ainda se encarnou ao sol da América, dono de algumas
propriedades bem situadas e perfeitamente rendosas, acatado, querido, descansado,
tal é o nosso Azevedo, a quem por cúmulo de ventura coroam os mais belos vinte
e seis anos.
Deu-lhe a fortuna
um emprego suave: não fazer nada. Possui um diploma de bacharel em
direito; mas esse diploma nunca lhe serviu; existe guardado no fundo da lata
clássica em que o trouxe da faculdade de São Paulo. De quando em quando Azevedo
faz uma visita ao diploma, aliás ganho legitimamente, mas é para não se ver
mais senão daí a longo tempo. Não é um diploma, é uma relíquia.
Quando Azevedo saiu
da faculdade de São Paulo e voltou para a fazenda da província de Minas Gerais,
tinha um projeto: ir à Europa. No fim de alguns meses o pai
consentiu na viagem, e Azevedo preparou-se para realizá-la. Chegou à corte no
propósito firme de tomar lugar no primeiro paquete que saísse; mas nem tudo
depende da vontade do homem. Azevedo foi a um baile antes de partir; aí
estava armada uma rede em que ele devia ser colhido. Que rede! Vinte anos, uma
figura delicada, esbelta, franzina, uma dessas figuras vaporosas que parecem desfazer-se
ao primeiro raio do sol. Azevedo não foi senhor de si: apaixonou-se; daí a um
mês casou-se, e daí a oito dias partiu para Petrópolis.
Que casa encerraria
aquele casal tão belo, tão amante e tão feliz? Não podia ser mais própria a
casa escolhida; era um edifício leve, delgado, elegante, mais de recreio que de
morada; um verdadeiro ninho para aquelas duas pombas fugitivas.
A nossa história
começa exatamente três meses depois da ida para Petrópolis. Azevedo e a
mulher amavam-se ainda como no primeiro dia. O amor tomava então uma força
maior e nova; é que... devo dizê-lo, ó casais de três meses? é que apontava no
horizonte o primeiro filho. Também a terra e o céu se alegram quando aponta no
horizonte o primeiro raio do sol. A figura não vem aqui por simples ornato de
estilo; é uma dedução lógica: a mulher de Azevedo chamava-se Adelaide.*
Era, pois, em
Petrópolis, numa tarde de dezembro do ano de 186... Azevedo e Adelaide
estavam no jardim que ficava em frente da casa onde ocultavam a sua felicidade.
Azevedo lia alto; Adelaide ouvia-o ler, mas como se ouve um eco do coração,
tanto a voz do marido e as palavras da obra correspondiam ao sentimento
interior da moça.
No fim de algum
tempo Azevedo deteve-se e perguntou:
— Queres que
paremos aqui?
— Como quiseres,
disse Adelaide.
— É melhor,
disse Azevedo fechando o livro. As coisas boas não se gozam de uma assentada.
Guardemos um pouco para a noite. Demais, era já tempo que eu passasse do idílio
escrito para o idílio vivo. Deixa-me olhar para ti.
Adelaide olhou para
ele e disse:
— Parece que
começamos a lua-de-mel.
— Parece e é,
acrescentou Azevedo; e se o casamento não fosse eternamente isto, o que poderia
ser? A ligação de duas existências para meditar discretamente na melhor maneira
de comer o maxixe e o repolho? Ora, pelo amor de Deus! Eu penso que o casamento
deve ser um namoro eterno. Não pensas como eu?
— Sinto, disse
Adelaide.
— Sentes, é
quanto basta.
— Mas que as
mulheres sintam é natural; os homens...
— Os homens,
são homens.
— O que nas
mulheres é sentimento, nos homens é pieguice; desde pequena me dizem isto.
— Enganam-te
desde pequena, disse Azevedo rindo.
— Antes isso!
— É a verdade.
E desconfia sempre dos que mais falam, sejam homens ou mulheres. Tens perto um
exemplo. A Emília fala muito da sua isenção. Quantas vezes se casou? Até aqui
duas, e está nos vinte e cinco anos. Era melhor calar-se mais e casar-se menos.
— Mas nela é
brincadeira, disse Adelaide.
— Pois não. O
que não é brincadeira é que os três meses do nosso casamento parecem-me três minutos...
— Três meses!
exclamou Adelaide.
— Como foge o
tempo! disse Azevedo.
— Dirás sempre
o mesmo? perguntou Adelaide com um gesto de incredulidade.
Azevedo abraçou-a e
perguntou:
— Duvidas?
— Receio. É
tão bom ser feliz!
— Sê-lo-ás
sempre e do mesmo modo. De outro não entendo eu.
Neste momento
ouviram os dois uma voz que partia da porta do jardim.
— O que é que
não entendes? dizia essa voz.
Olharam.
À porta do jardim
estava um homem alto, bem parecido, trajando com elegância, luvas cor de palha,
chicotinho na mão.
Azevedo pareceu ao
princípio não conhecê-lo. Adelaide olhava para um e para outro sem compreender
nada. Tudo isto, porém, não passou de um minuto; no fim dele Azevedo exclamou:
— É o Tito!
Entra, Tito!
Tito entrou
galhardamente no jardim; abraçou Azevedo e fez um cumprimento gracioso a
Adelaide.
— É minha
mulher, disse Azevedo apresentando Adelaide ao recém-chegado.
— Já o
suspeitava, respondeu Tito; e aproveito a ocasião para dar-te os meus parabéns.
— Recebeste a
nossa carta de participação?
— Em
Valparaíso.
— Anda
sentar-te e conta-me a tua viagem.
— Isso é
longo, disse Tito sentando-se. O que te posso contar é que desembarquei ontem
no Rio. Tratei de indagar a tua morada. Disseram-me que estavas temporariamente
em Petrópolis. Descansei, mas logo hoje tomei a barca da Prainha aqui estou. Eu
já suspeitava que com o teu espírito de poeta irias esconder tua felicidade em
algum recanto do mundo. Com efeito, isto é verdadeiramente uma nesga do
paraíso. Jardim, caramanchões, uma casa leve e elegante, um livro. Bravo! Marília
de Dirceu... É completo! Tityre, tu patulae. Caio no meio de um
idílio. Pastorinha, onde está o cajado?
Adelaide ri às
gargalhadas.
Tito continua:
— Ri mesmo
como uma pastorinha alegre. E tu, Teócrito, que fazes? Deixas correr os
dias como as águas do Paraíba? Feliz criatura! —
Sempre o mesmo!
disse Azevedo.
— O mesmo
doido? Acha que ele tem razão, minha senhora?
— Acho, se o
não ofendo...
— Qual
ofender! Se eu até me honro com isso; sou um doido inofensivo, isso é verdade.
Mas é que realmente são felizes como poucos. Há quantos meses se casaram?
— Três meses
fazem domingo, respondeu Adelaide.
— Disse há
pouco que me pareciam três minutos, acrescentou Azevedo.
Tito olhou para
ambos e disse sorrindo:
— Três meses,
três minutos! Eis toda a verdade da vida. Se os pusessem sobre uma grelha, como
São Lourenço, cinco minutos eram cinco meses. E ainda se fala em tempo! Há
lá tempo! O tempo está nas nossas impressões. Há meses para os infelizes e
minutos para os venturosos!
— Mas que
ventura! exclama Azevedo.
— Completa,
não? Imagino! Marido de um serafim, nas graças e no coração, não reparei que
estava aqui... mas não precisa corar!... Disto me há de ouvir vinte vezes por
dia; o que penso, digo. Como não te hão de invejar os nossos amigos!
— Isso não
sei.
— Pudera!
Encafuado neste desvão do mundo, de nada podes saber. E fazes bem. Isto de ser
feliz à vista de todos é repartir a felicidade. Ora, para respeitar o princípio
devo ir-me já embora...
Dizendo isto, Tito
levantou-se.
— Deixa-te
disso: fica conosco.
— Os
verdadeiros amigos também são a felicidade, disse Adelaide.
— Ah!
— É até bom
que aprendas em nossa escola a ciência do casamento, acrescentou Azevedo.
— Para quê?
perguntou Tito meneando o chicotinho.
— Para te
casares.
— Hum!... fez
Tito.
— Não
pretende? perguntou Adelaide.
— Estás ainda
o mesmo que em outro tempo?
— O
mesmíssimo, respondeu Tito.
Adelaide fez um
gesto de curiosidade e perguntou:
— Tem horror
ao casamento?
— Não tenho
vocação, respondeu Tito. É puramente um caso de vocação. Quem a não tiver não
se meta nisso, que é perder o tempo e o sossego. Desde muito tempo estou
convencido disto.
— Ainda te não
bateu a hora.
— Nem bate,
disse Tito.
— Mas, se bem
me lembro, disse Azevedo oferecendo-lhe um charuto, houve um dia em que fugiste
às teorias do costume: andavas então apaixonado...
— Apaixonado,
é engano. Houve um dia em que a Providência trouxe uma confirmação aos meus
instintos solitários. Meti-me a pretender uma senhora...
— É verdade:
foi um caso engraçado.
— Como foi o
caso? perguntou Adelaide.
— O Tito viu
em um baile uma rapariga. No dia seguinte apresenta-se em casa dela, e, sem
mais nem menos, pede-lhe a mão. Ela responde... que te respondeu?
— Respondeu
por escrito que eu era um tolo e me deixasse daquilo. Não disse positivamente
tolo, mas vinha a dar na mesma. É preciso confessar que semelhante resposta não
era própria. Voltei atrás e nunca mais amei.
— Mas amou
naquela ocasião? perguntou Adelaide.
— Não sei se
era amor, respondeu Tito, era uma coisa... Mas note, isto foi há uns bons cinco
anos. Daí para cá ninguém mais me fez bater o coração.
— Pior para
ti.
— Eu sei!
disse Tito levantando os ombros. Se não tenho os gozos íntimos do amor, não
tenho nem os dissabores, nem os desenganos. É já uma grande fortuna!
— No
verdadeiro amor não há nada disso, disse sentenciosamente a mulher de Azevedo.
— Não há?
Deixemos o assunto; eu podia fazer um discurso a propósito, mas prefiro...
— Ficar
conosco, Azevedo atalhou-o. Está sabido.
— Não tenho
essa intenção.
— Mas tenho
eu. Hás de ficar.
— Mas se eu já
mandei o criado tomar alojamento no Hotel de Bragança...
— Pois manda
contra-ordem. Fica comigo.
— Insisto em
não perturbar a tua paz.
— Deixa-te
disso.
— Fique! disse
Adelaide.
— Ficarei.
— E amanhã,
continuou Adelaide, depois de ter descansado, há de nos dizer qual é o segredo
da isenção de que tanto se ufana.
— Não há
segredo, disse Tito. O que há é isto. Entre um amor que se oferece e... uma
partida de voltarete, não hesito, atiro-me ao voltarete. A propósito, Ernesto,
sabes que encontrei no Chile um famoso parceiro de voltarete? Fez a casca mais
temerária que tenho visto... sabe o que é uma casca, minha senhora?
— Não,
respondeu Adelaide.
— Pois eu lhe
explico.
Azevedo olhou para
fora e disse:
— Aí chega a
D. Emília.
Com efeito à porta
do jardim parava uma senhora dando o braço a um velho de cinquenta anos.
D. Emília era uma
moça a que se pode chamar uma bela mulher; era alta na estatura e altiva de
caráter. O amor que pudesse infundir seria por imposição. De suas maneiras e
das suas graças inspirava um não sei que de rainha que dava vontade de levá-la
a um trono.
Trajava com
elegância e simplicidade. Ela tinha essa elegância natural que é outra
elegância diversa da elegância dos enfeites, a propósito da qual já tive
ocasião de escrever esta máxima: “Que há pessoas elegantes, e pessoas
enfeitadas”.
Olhos negros e
rasgados, cheios de luz e de grandeza, cabelos castanhos e abundantes, nariz
reto como o de Safo, boca vermelha e breve, faces de cetim, colo e
braços como os das estátuas, tais eram os traços da beleza de Emília.
Quanto ao velho que
lhe dava o braço, era, como disse, um homem de cinquenta anos. Era o que se
chama em português chão e rude — um velho gaiteiro. Pintado, espartilhado,
via-se nele uma como que ruína do passado reconstruída por mãos modernas, de
modo a ter esse aspecto bastardo que não é nem a austeridade da velhice, nem a
frescura da mocidade. Não havia dúvida de que o velho devia ter sido um belo
rapaz em seus tempos; mas presentemente, se algumas conquistas tivesse feito,
só podia contentar-se com a lembrança delas.
Quando Emília
entrou no jardim todos se achavam de pé. A recém-chegada apertou a mão a
Azevedo e foi beijar Adelaide. Ia sentar-se na cadeira que Azevedo lhe
oferecera quando reparou em Tito que se achava a um lado.
Os dois
cumprimentaram-se, mas com ar diferente. Tito parecia tranquilo e friamente
polido; mas Emília, depois de cumprimentá-lo, conservou os olhos fitos nele,
como que avocando uma memória do passado.
Feitas as
apresentações necessárias, e a Diogo Franco (é o nome do velho braceiro), todos
tomaram assentos.
A primeira que
falou foi Emília:
— Ainda hoje
não vinha se não fosse a obsequiosidade do sr. Diogo.
Adelaide olhou para
o velho e disse:
— O sr. Diogo
é uma maravilha.
Diogo empertigou-se
e murmurou com certo tom de modéstia:
— Nem tanto,
nem tanto.
— É, é, disse
Emília. Não é talvez uma, porém duas maravilhas. Ah! sabes que me vai fazer um
presente?
— Um presente!
exclamou Azevedo.
— É verdade,
continuou Emília, um presente que mandou vir da Europa e lá dos confins;
recordações das suas viagens de adolescente...
Diogo estava
radiante.
— É uma
insignificância, disse ele olhando ternamente para Emília.
— Mas o que é?
perguntou Adelaide.
— É...
adivinhem? É um urso branco!
— Um urso branco!
— Deveras?
— Está para
chegar, mas só ontem é que me deu notícia dele. Que amável lembrança!
— Um urso!
exclamou ainda Azevedo.
Tito inclinou-se ao
ouvido do amigo, e disse em voz baixa:
— Com ele
fazem dois.
Diogo jubiloso pelo
efeito que causava a notícia do presente, mas iludido no caráter desse efeito
disse:
— Não vale a
pena. É um urso que eu mandei vir; é verdade que eu pedi dos mais belos. Não
sabem o que é um urso branco. Imaginem que é todo branco.
— Ah! disse
Tito.
— É um animal
admirável! tornou Diogo.
— Acho que
sim, disse Tito. Ora imagina tu o que não será um urso branco que é todo
branco. Que faz este sujeito? perguntou ele em seguida a Azevedo.
— Namora a
Emília; tem cinquenta contos.
— E ela?
— Não faz caso
dele.
— Diz ela?
— E é verdade.
Enquanto os dois
trocavam estas palavras, Diogo brincava com os sinetes do relógio e as duas
senhoras conversavam. Depois das últimas palavras entre Azevedo e Tito, Emília
voltou-se para o marido de Adelaide e perguntou:
— Dá-se isto,
sr. Azevedo? Então faz-se anos nesta casa e não me convidam?
— Mas a chuva?
disse Adelaide.
— Ingrata! Bem
sabes que não há chuva em casos tais.
— Demais,
acrescentou Azevedo, fez-se a festa tão à capucha.
— Fosse como
fosse, eu sou de casa.
— Aí vens tu
com os teus epigramas, disse Azevedo.
— Ah! isso é
mau, sr. Tito!
— Tito?
perguntou Emília a Adelaide em voz baixa.
— Sim.
— D. Emília
não sabe ainda quem é o nosso amigo Tito, disse Azevedo. Eu até tenho medo de
dizê-lo.
— Então é
muito feio o que tem para dizer?
— Talvez,
disse Tito com indiferença.
— Muito feio!
exclamou Adelaide.
— O que é
então? perguntou Emília.
— É um homem
incapaz de amar, continuou Adelaide. Não pode haver maior indiferença para o amor...
Em resumo, prefere a um amor... o quê? um voltarete.
— Disse-te
isso? perguntou Emília.
— E repito,
disse Tito. Mas note bem, não por elas, é por mim. Acredito que todas as
mulheres sejam credoras da minha adoração; mas eu é que sou feito de modo que
nada mais lhes posso conceder do que uma estima desinteressada.
Emília olhou para o
moço e disse:
— Se não é
vaidade, é doença.
— Há de me
perdoar, mas eu creio que não é doença, nem vaidade. É natureza: uns aborrecem
as laranjas, outros aborrecem os amores; agora se o aborrecimento vem por causa
das cascas, não sei; o que é certo é que é assim.
— É ferino!
disse Emília olhando para Adelaide.
— Ferino, eu?
disse Tito levantando-se. Sou uma seda, uma dama, um milagre de brandura...
Dói-me, deveras, que eu não possa estar na linha dos outros homens, e não seja,
como todos, propenso a receber as impressões amorosas, mas que quer? a culpa
não é minha.
— Anda lá,
disse Azevedo, o tempo te há de mudar.
— Mas quando?
Tenho vinte e nove anos feitos.
— Já vinte e
nove? perguntou Emília.
— Completei-os
pela Páscoa.
— Não parece.
— São os seus
bons olhos.
A conversa
continuou por este modo, até que se anunciou o jantar. Emília e Diogo tinham
jantado, ficaram apenas para fazer companhia ao casal Azevedo e a Tito, que declarou
desde o princípio estar caindo de fome.
A conversa durante
o jantar versou sobre coisas indiferentes.
Quando se servia o
café apareceu à porta um criado do hotel em que morava Diogo; trazia uma carta
para este, com indicação no sobrescrito de que era urgente. Diogo recebeu a
carta, leu-a e pareceu mudar de cor. Todavia continuou a tomar parte na
conversa geral. Aquela circunstância, porém, deu lugar a que Adelaide
perguntasse a Emília:
— Quando te
deixará este eterno namorado?
— Eu sei cá!
respondeu Emília. Mas afinal de contas, não é mau homem. Tem aquela mania de me
dizer no fim de todas as semanas que nutre por mim uma ardente paixão.
— Enfim, se
não passa de declaração semanal...
— Não passa.
Tem a vantagem de ser um braceiro infalível para a rua e um realejo menos mau
dentro de casa. Já me contou umas cinquenta vezes as batalhas amorosas em que
entrou. Todo o seu desejo é acompanhar-me a uma viagem à roda do globo. Quando
me fala nisto, se é à noite, e é quase sempre à noite, mando vir o chá, excelente
meio de aplacar-lhe os ardores amorosos. Gosta do chá que se péla. Gosta tanto
como de mim! Mas aquela do urso branco? E se realmente mandou vir um urso?
— Aceita.
— Pois eu hei
de sustentar um urso? Não me faltava mais nada!
Adelaide sorriu-se
e disse:
— Quer me
parecer que acabas por te apaixonar...
— Por quem?
Pelo urso?
— Não, pelo
Diogo.
Neste momento
achavam-se as duas perto de uma janela. Tito conversava no sofá com Azevedo.
Diogo refletia profundamente, estendido numa poltrona.
Emília tinha os
olhos em Tito. Depois de um silêncio, disse ela para Adelaide:
— Que achas ao
tal amigo do teu marido? Parece um presumido. Nunca se apaixonou! É crível?
— Talvez seja
verdade.
— Não
acredito. Pareces criança! Diz aquilo dos dentes para fora...
— É verdade
que não tenho maior conhecimento dele...
— Quanto a
mim, pareceu-me não ser estranha aquela cara... mas não me lembro!
— Parece ser
sincero... mas dizer aquilo é já atrevimento.
— Está
claro...
— De que te
ris?
— Lembra-me um
do mesmo gênero que este, disse Emília. Foi já há tempos. Andava sempre a
gabar-se da sua isenção. Dizia que todas as mulheres eram para ele vasos da
China: admirava-as e nada mais. Coitado! Caiu em menos de um mês. Adelaide,
vi-o beijar-me a ponta dos sapatos... depois do que desprezei-o.
— Que fizeste?
— Ah! não sei
o que fiz. Santa Astúcia foi quem operou o milagre. Vinguei o sexo e abati um
orgulhoso.
— Bem feito.
— Não era
menos do que este. Mas falemos de coisas sérias... Recebi as folhas francesas
de modas...
— Que há de
novo?
— Muita coisa.
Amanhã tas mandarei. Repara em um novo corte de mangas. É lindíssimo.
Já mandei encomendas para a corte. Em artigos de passeios há fartura e do
melhor.
— Para mim
quase que é inútil mandar.
— Por quê?
— Quase nunca
saio de casa.
— Nem ao menos
irás jantar comigo no dia de ano-bom!
— Oh! com toda
a certeza!
— Pois vai...
Ah! irá o homem? O sr. Tito?
— Se estiver
cá... e quiseres...
— Pois que vá,
não faz mal... saberei contê-lo... Creio que não será sempre tão... incivil.
Nem sei como podes ficar com esse sangue-frio! A mim faz-me mal aos nervos!
— É-me
indiferente.
— Mas a
injúria ao sexo... não te indigna?
— Pouco.
— És feliz.
— Que queres
que eu faça a um homem que diz aquilo? Se não fosse casada era possível que me
indignasse mais. Se fosse livre era provável que lhe fizesse o que fizeste ao
outro. Mas eu não posso cuidar dessas coisas...
— Nem ouvindo
a preferência do voltarete? Pôr-nos abaixo da dama de copas! E o ar com que ele
diz aquilo! Que calma, que indiferença!
— É mau! é
mau!
— Merecia
castigo...
— Merecia.
Queres tu castigá-lo?
Emília fez um gesto
de desdém e disse:
— Não vale a
pena.
— Mas tu
castigaste o outro.
— Sim... mas
não vale a pena.
— Dissimulada!
— Por que
dizes isso?
— Porque já te
vejo meia tentada a uma nova vingança...
— Eu? Ora
qual!
— Que tem? Não
é crime...
— Não é,
decerto; mas... veremos.
— Ah! serás
capaz?
— Capaz? disse
Emília com um gesto de orgulho ofendido.
— Beijar-te-á
ele a ponta do sapato?
Emília ficou
silenciosa por alguns momentos; depois apontando com o leque para a botina que
lhe calçava o pé, disse:
— E hão de ser
estes.
Emília e Adelaide
se dirigiram para o lado em que se achavam os homens. Tito, que parecia
conversar intimamente com Azevedo, interrompeu a conversa para dar atenção às
senhoras. Diogo continuava mergulhado na sua meditação.
— Então o que
é isso, sr. Diogo? perguntou Tito. Está meditando?
— Ah! perdão,
estava distraído!
— Coitado!
disse Tito baixo a Azevedo.
Depois, voltando-se
para as senhoras:
— Não as
incomoda o charuto?
— Não senhor,
disse Emília.
— Então, posso
continuar a fumar?
— Pode, disse
Adelaide.
— É um mau
vício, mas é o meu único vício. Quando fumo parece que aspiro a eternidade.
Enlevo-me todo e mudo de ser. Divina invenção!
— Dizem que é
excelente para os desgostos amorosos, disse Emília com intenção.
— Isso não
sei. Mas não é só isto. Depois da invenção do fumo não há solidão possível. É a
melhor companhia deste mando. Demais, o charuto é um verdadeiro Memento homo: convertendo-se
pouco a pouco em cinzas, vai lembrando ao homem o fim real e infalível de todas
as coisas: é o aviso filosófico, é a sentença fúnebre que nos acompanha em toda
a parte. Já é um grande progresso... Mas estou eu a aborrecer com uma
dissertação tão pesada. Hão de desculpar... que foi descuido. Ora, a falar a
verdade, eu já vou desconfiando; Vossa Excelência olha com olhos tão
singulares...
Emília, a quem era
dirigida a palavra, respondeu:
— Não sei se
são singulares, mas são os meus.
— Penso que
não são os do costume. Está talvez Vossa Excelência a dizer consigo que eu sou
um esquisito, um singular, um...
— Um vaidoso,
é verdade.
— Sétimo
mandamento: não levantar falsos testemunhos.
— Falsos, diz
o mandamento.
— Não me dirá
em que sou eu vaidoso?
— Ah! a isso
não respondo eu.
— Por que não
quer?
— Porque...
não sei. É uma coisa que se sente, mas que se não pode descobrir. Respira-lhe a
vaidade em tudo: no olhar, na palavra, no gesto... mas não se atina com a
verdadeira origem de tal doença.
— É pena. Eu
tinha grande prazer em ouvir da sua boca o diagnóstico da minha doença. Em
compensação pode ouvir da minha o diagnóstico da sua... A sua doença é... Digo?
— Pode dizer.
— É um
despeitozinho.
— Deveras?
— Vamos ver
isso, disse Azevedo rindo-se.
Tito continuou:
— Despeito
pelo que eu disse há pouco.
— Puro engano!
disse Emília rindo-se.
— É com toda a
certeza. Mas é tudo gratuito. Eu não tenho culpa de coisa alguma. A natureza é
que me fez assim.
— Só a
natureza?
— E um tanto
de estudo. Ora vou expor-lhe as minhas razões. Veja se posso amar ou pretender: primeiro,
não sou bonito...
— Oh!... disse
Emília.
— Agradeço o
protesto, mas continuo na mesma opinião: não sou bonito, não sou...
— Oh!... disse
Adelaide.
— Segundo: não
sou curioso, e o amor, se o reduzirmos às suas verdadeiras proporções, não
passa de uma curiosidade; terceiro: não sou paciente, e nas conquistas amorosas
a paciência é a principal virtude; quarto, finalmente: não sou idiota, porque,
se com todos estes defeitos pretendesse amar, mostraria a maior falta de razão.
Aqui está o que eu sou por natural e por indústria.
— Emília,
parece que é sincero.
— Acreditas?
— Sincero como
a verdade, disse Tito.
— Em último
caso, seja ou não seja sincero, que tenho eu com isso?
— Eu creio que
nada, disse Tito.
II
No dia seguinte
àquele em que se passaram as cenas descritas no capítulo anterior, entendeu o
céu que devia regar com as suas lágrimas o solo da formosa Petrópolis.
Tito, que destinava
esse dia a ver toda a cidade, foi obrigado a conservar-se em casa. Era um amigo
que não incomodava, porque quando era demais sabia escapar-se discretamente, e
quando o não era, tornava-se o mais delicioso dos companheiros.
Tito sabia juntar
muita jovialidade a muita delicadeza; sabia fazer rir sem saltar fora das
conveniências. Acrescia que, voltando de uma longa e pitoresca viagem, trazia as
algibeiras da memória (deixem passar a frase) cheias de vivas
reminiscências. Tinha feito uma viagem de poeta e não peralvilho. Soube ver e sabia
contar. Estas duas qualidades, indispensáveis ao viajante, por desgraça são as
mais raras. A maioria das pessoas que viajam nem sabem ver, nem sabem contar.
Tito tinha andado
por todas as repúblicas do mar Pacífico, tinha vivido no México e em alguns
estados americanos. Tinha depois ido à Europa no paquete da linha de Nova York.
Viu Londres e Paris. Foi à Espanha, onde viveu a vida de Almaviva, dando
serenatas às janelas das Rosinas de hoje. Trouxe de lá alguns leques e
mantilhas. Passou à Itália e levantou o espírito à altura das recordações da
arte clássica. Viu a sombra de Dante nas ruas de Florença; viu as almas dos doges
pairando saudosas sobre as águas viúvas do mar Adriático; a terra
de Rafael, de Virgílio e Miguel Ângelo foi para ele uma fonte
viva de recordações do passado e de impressões para o futuro. Foi à Grécia,
onde soube evocar o espírito das gerações extintas que deram ao gênio da arte e
da poesia um fulgor que atravessou as sombras dos séculos.
Viajou ainda mais o
nosso herói, e tudo viu com olhos de quem sabe ver e tudo contava com alma de
quem sabe contar. Azevedo e Adelaide passavam horas esquecidas.
— Do amor,
dizia ele, eu só sei que é uma palavra de quatro letras, um tanto eufônica, é
verdade, mas núncia de lutas e desgraças. Os bons amores são cheios de
felicidade, porque têm a virtude de não alçarem olhos para as estrelas do céu;
contentam-se com ceias à meia-noite e alguns passeios a cavalo ou por mar.
Esta era a
linguagem constante de Tito. Exprimia ela a verdade, ou era uma linguagem de
convenção? Todos acreditavam que a verdade estava na primeira hipótese, até
porque essa era de acordo com o espírito jovial e folgazão de Tito.
No primeiro dia da
residência de Tito em Petrópolis, a chuva, como disse acima, impediu que os
diversos personagens desta história se encontrassem. Cada qual ficou na sua
casa. Mas o dia imediato foi mais benigno; Tito aproveitou o bom tempo para ir
ver a risonha cidade da serra. Azevedo e Adelaide quiseram acompanhá-lo;
mandaram aparelhar três ginetes próprios para o ligeiro passeio.
Na volta foram
visitar Emília. Durou poucos minutos a visita. A bela viúva recebeu-os com
graça e cortesia de princesa. Era a primeira vez que Tito lá ia; e fosse por isso,
ou por outra circunstância, foi ele quem mereceu as principais atenções da dona
da casa.
Diogo, que então
fazia a sua centésima declaração de amor a Emília, e a quem Emília acabava de
oferecer uma chávena de chá, não viu com bons olhos a demasiada atenção que o
viajante merecia da dama dos seus pensamentos. Essa, e talvez outras
circunstâncias, faziam com que o velho Adônis assistisse à conversação com
a cara fechada.
À despedida Emília
ofereceu a casa a Tito, com a declaração de que teria a mesma satisfação em
recebê-lo muitas vezes. Tito aceitou cavalheiramente o
oferecimento; feito o que, saíram todos.
Cinco dias depois
desta visita Emília foi à casa de Adelaide. Tito não estava presente; andava a
passeio. Azevedo tinha saído para um negócio, mas voltou daí a alguns minutos.
Quando, depois de uma hora de conversa, Emília já de pé preparava-se para
voltar à casa, entrou Tito.
— Ia sair
quando entrou, disse Emília. Parece que nos contrariamos em tudo.
— Não é por
minha vontade, respondeu Tito; pelo contrário, meu desejo é não contrariar
pessoa alguma, e portanto não contrariar Vossa Excelência.
— Não parece.
— Por que?
Emília sorriu e
disse com uma inflexão de censura:
— Sabe que me
daria prazer se utilizasse do oferecimento de minha casa; ainda se não
utilizou. Foi esquecimento?
— Foi.
— É muito
amável...
— Sou muito
franco. Eu sei que Vossa Excelência preferia uma delicada mentira; mas eu não
conheço nada mais delicado que a verdade.
Emília sorriu.
Nesse momento
entrou Diogo.
— Ia sair, D.
Emília? perguntou ele.
— Esperava o
seu braço.
— Aqui o tem.
Emília despediu-se
de Azevedo e de Adelaide. Quanto a Tito, no momento em que ele curvava-se
respeitosamente, Emília disse-lhe com a maior placidez da alma:
— Há alguém
tão delicado como a verdade: é o sr. Diogo. Espero dizer o mesmo...
— De mim?
interrompeu Tito. Amanhã mesmo.
Emília saiu pelo
braço de Diogo.
No dia seguinte,
com efeito, Tito foi à casa de Emília. Ela o esperava com certa impaciência.
Como não soubesse a hora em que ele devia apresentar-se lá, a bela viúva
esperou-o a todos os momentos, desde manhã. Só ao cair da tarde é que Tito
dignou-se aparecer.
Emília morava com
uma tia velha. Era uma boa senhora, amiga da sobrinha, e inteiramente escrava
da sua vontade. Isto quer dizer que não havia em Emília o menor receio que a
boa tia não assignasse de antemão.
Na sala em que Tito
foi recebido não estava ninguém. Ele teve portanto tempo de sobra para
examiná-la à vontade. Era uma sala pequena, mas mobiliada e adornada com gosto.
Móveis leves, elegantes e ricos; quatro finíssimas estatuetas, copiadas
de Pradier, um piano de Érard, tudo
disposto e arranjado com vida.
Tito gastou o
primeiro quarto de hora no exame da sala e dos objetos que a enchiam. Esse
exame devia influir muito no estudo que ele quisesse fazer do espírito da moça.
Dize-me como moras, dir-te-ei quem és.
Mas o primeiro
quarto de hora correu sem que aparecesse viva alma, nem que se ouvisse rumor de
natureza alguma. Tito começou a impacientar-se. Já sabemos que espírito brusco
era ele, apesar da suprema delicadeza que todos lhe reconheciam. Parece, porém,
que a sua rudeza, quase sempre exercida contra Emília, era antes estudada que
natural. O que é certo é que no fim de meia hora, aborrecido pela demora, Tito
murmurou consigo:
— Quer tomar
desforra!
E tomando o chapéu
que havia posto numa cadeira ia dirigindo-se para a porta quando ouviu um
farfalhar de sedas. Voltou a cabeça; Emília entrava.
— Fugia?
— É verdade.
— Perdoe a
demora.
— Não há que
perdoar; não podia vir, era natural que fosse por algum motivo sério. Quanto a
mim não tenho igualmente de que pedir perdão. Esperei, estava cansado, voltaria
em outra ocasião. Tudo isto é natural.
Emília ofereceu uma
cadeira a Tito e sentou-se num sofá.
— Realmente,
disse ela acomodando o balão, o sr. Tito é um homem original.
— É a minha
glória. Não imagina como eu aborreço as cópias. Fazer o que muita gente faz,
que mérito há nisso? Não nasci para esses trabalhos de imitação.
— Já uma coisa
fez como muita gente.
— Qual foi?
— Prometeu-me
ontem esta visita e veio cumprir a promessa.
— Ah! minha
senhora, não lance isto à conta das minhas virtudes. Podia não vir; vim; não
foi vontade, foi... acaso.
— Em todo
caso, agradeço-lhe.
— É o meio de
me fechar a sua porta.
— Por quê?
— Porque eu
não me dou com esses agradecimentos: nem creio mesmo que eles possam
acrescentar nada à minha admiração pela pessoa de Vossa Excelência. Fui visitar
muitas vezes as estátuas dos museus da Europa, mas se elas se lembrassem de me
agradecer um dia, dou-lhe a minha palavra que não voltava lá.
A estas palavras
seguiu-se um silêncio de alguns segundos.
Emília foi quem
falou primeiro.
— Há muito
tempo que se dá com o marido de Adelaide?
— Desde
criança, respondeu Tito.
— Ah! foi
criança?
— Ainda hoje
sou.
— É exatamente
o tempo das minhas relações com Adelaide. Nunca me arrependi.
— Nem eu.
— Houve um
tempo, prosseguiu Emília, em que estivemos separadas; mas isso não trouxe mudança
alguma às nossas relações. Foi no tempo do meu primeiro casamento.
— Ah! foi
casada duas vezes?
— Em dois
anos.
— Porque meu
marido morreu, disse Emília rindo-se.
— Mas eu
pergunto outra coisa. Por que se fez viúva, mesmo depois da morte de seu
primeiro marido? Creio que poderia continuar casada.
— De que modo?
perguntou Emília com espanto.
— Ficando
mulher do finado. Se o amor acaba na sepultura acho que não vale a pena de
procurá-lo neste mundo.
— Realmente o
sr. Tito é um espírito fora do comum.
— Um tanto.
— É preciso
que o seja para desconhecer que a nossa vida não importa essas exigências da
eterna fidelidade. E demais, pode-se conservar a lembrança dos que morrem sem
renunciar às condições da nossa existência. Agora é que eu lhe pergunto por que
me olha com olhos tão singulares?...
— Não sei se
são singulares, mas são os meus.
— Então, acha
que eu cometi uma bigamia?
— Eu não acho
nada. Ora, deixe-me dizer-lhe a última razão da minha incapacidade para os
amores.
— Sou toda
ouvidos.
— Eu não creio
na fidelidade.
— Em absoluto?
— Em absoluto.
— Muito
obrigada.
— Ah! eu sei
que isto não é delicado; mas em primeiro lugar, eu tenho a coragem das minhas
opiniões, e em segundo foi Vossa Excelência quem me provocou. É infelizmente
verdade, eu não creio nos amores leais e eternos. Quero fazê-la minha
confidente. Houve um dia em que eu tentei amar; concentrei todas as forças
vivas do meu coração; dispus-me a reunir o meu orgulho e a minha ilusão na
cabeça do objeto amado. Que lição mestra! O objeto amado, depois de me
alimentar as esperanças, casou-se com outro que não era nem mais bonito, nem
mais amante.
— Que prova
isso? perguntou a viúva.
— Prova que me
aconteceu o que pode acontecer e acontece diariamente aos outros.
— Ora...
— Há de me
perdoar, mas eu creio que é uma coisa já metida na massa do sangue.
— Não diga
isso. É certo que pode acontecer casos desses; mas serão
todos assim? Não admite uma exceção? Aprofunde mais os corações alheios se
quiser encontrar a verdade... e há de encontrar.
— Qual! disse
Tito abaixando a cabeça e batendo com a bengala na ponta do pé.
— Posso
afirmá-lo, disse Emília.
— Duvido.
— Tenho pena
de uma criatura assim, continuou a viúva. Não conhecer o amor é não conhecer a
vida! Há nada igual à união de duas almas que se adoram? Desde que o amor entra
no coração, tudo se transforma, tudo muda, a noite parece dia, a dor
assemelha-se ao prazer... Se não conhece nada disto, pode morrer, porque é o
mais infeliz dos homens.
— Tenho lido
isso nos livros, mas ainda não me convenci...
— Já reparou
na minha sala?
— Já vi alguma
coisa.
— Reparou
naquela gravura?
Tito olhou para a
gravura que a viúva lhe indicava.
— Se me não
engano, disse ele, aquilo é o Amor domando as feras.
— Veja e
convença-se.
— Com a
opinião do desenhista? perguntou Tito. Não é possível. Tenho visto gravuras
vivas. Tendo servido de alvo a muitas setas; crivam-me todo, mas eu tenho a
fortaleza de São Sebastião; afronto, não me curvo.
— Que orgulho!
— O que pode
fazer dobrar uma altivez destas? A beleza? Nem Cleópatra. A castidade?
Nem Susana. Resuma, se quiser, todas as qualidades em uma só criatura, e
eu não mudarei... É isto e nada mais.
Emília levantou-se
e dirigiu-se para o piano.
— Não aborrece
a música? perguntou ela abrindo o piano.
— Adoro-a,
respondeu o moço sem se mover; agora, quanto aos executantes só gosto dos bons.
Os maus dá-me ímpetos de enforcá-los.
Emília executou ao
piano os prelúdios de uma sinfonia. Tito ouvia-a com a mais profunda atenção.
Realmente a bela viúva tocava divinamente.
— Então, disse
ela levantando-se, devo ser enforcada?
— Deve ser
coroada. Toca perfeitamente.
— Outro ponto
em que não é original. Toda a gente me diz isso.
— Ah! eu
também não nego a luz do sol.
Neste momento
entrou na sala a tia de Emília. Esta apresentou-lhe Tito. A conversa tomou
então um tom pessoal e reservado; durou pouco, aliás porque Tito, travando
repentinamente do chapéu, declarou que tinha que fazer.
— Até quando?
— Até sempre.
Despediu-se e saiu.
Emília ainda o
acompanhou com os olhos por algum tempo, da janela da casa. Mas Tito, como se o
caso não fosse com ele, seguiu sem olhar para trás.
Mas, exatamente no
momento em que Emília voltava para dentro, Tito encontrava o velho Diogo.
Diogo ia na direção
da casa da viúva. Tinha um ar pensativo. Tão distraído ia que chegou quase a
esbarrar com Tito.
— Onde vai tão
distraído? perguntou Tito.
— Ah! é o
senhor? Vem da casa de D. Emília?
— Venho.
— Eu para lá
vou. Coitada! há de estar muito impaciente com a minha demora.
— Não está,
não senhor, respondeu Tito com o maior sangue-frio.
Diogo lançou-lhe um
olhar de despeito.
A isso seguiu-se um
silêncio de alguns minutos, durante o qual Diogo brincava com a corrente do
relógio, e Tito lançava ao ar novelos de fumaça de um primoroso havana. Um
desses novelos foi desenrolar-se na cara de Diogo. O velho tossiu e disse a
Tito:
— Apre lá, sr.
Tito! É demais!
— O que, meu
caro senhor? perguntou o rapaz.
— Até a
fumaça!
— Foi sem
reparar. Mas eu não compreendo as suas palavras...
— Eu me faço
explicar, disse o velho tomando um ar risonho. Dê-me o seu braço...
— Pois não!
E os dois seguiram
conversando como dois amigos velhos.
— Estou pronto
a ouvir a sua explicação.
— Lá vai. Sabe
o que eu quero? É que seja franco. Não ignora que eu suspiro aos pés da viúva.
Peço-lhe que não discuta o fato, admita-o simplesmente. Até aqui tudo ia
caminhando bem, quando o senhor chegou a Petrópolis.
— Mas...
— Ouça-me
silenciosamente. Chegou o senhor a Petrópolis, e sem que eu lhe tivesse feito
mal algum, entendeu de si para si que me havia de tirar do lance. Desde então
começou a corte...
— Meu caro sr.
Diogo, tudo isso é uma fantasia. Eu não faço a corte a D. Emília, nem pretendo
fazer-lha. Vê-me acaso frequentar a casa dela?
— Acaba de
sair de lá.
— É a primeira
vez que a visito.
— Quem sabe?
— Demais,
ainda ontem não ouviu em casa de Azevedo as expressões com que ela se despediu
de mim? Não são de mulher que...
— Ah! isso não
prova nada. As mulheres, e sobretudo aquela, nem sempre dizem o que sentem...
— Então acha que
aquela sente alguma coisa por mim?...
— Se não fosse
isso, não lhe falaria.
— Ah! ora eis
aí uma novidade.
— Suspeito
apenas. Ela só me fala do senhor; indaga-me vinte vezes por dia de sua pessoa,
dos seus hábitos, do seu passado e das suas opiniões... Eu, como há de
acreditar, respondo a tudo que não sei, mas vou criando um ódio ao senhor, do
qual não me poderá jamais criminar.
— É culpa
minha se ela gosta de mim? Ora, vá descansado, sr. Diogo. Nem ela gosta de mim,
nem eu gosto dela. Trabalhe desassombradamente e seja feliz.
— Feliz! se eu
pudesse ser! Mas não... não creio; a felicidade não se fez para mim. Olhe, sr.
Tito, amo aquela mulher como se pode amar a vida. Um olhar dela vale mais para
mim que um ano de glórias e de felicidade. É por ela que eu tenho deixado os
meus negócios à toa. Não viu outro dia que uma carta me chegou às mãos, cuja
leitura me fez entristecer? Perdi uma causa. Tudo por quê? por ela!
— Mas, ela não
lhe dá esperanças?
— Eu sei o que
é aquela moça! Ora trata-me de modo que eu vou ao sétimo céu; ora é tal a sua
indiferença que me atira ao inferno. Hoje um sorriso, amanhã um gesto de
desdém. Ralha-me de não visitá-la; vou visitá-la, ocupa-se tanto de mim como de
Ganimedes; Ganimedes é o nome de um cãozinho felpudo que eu
lhe dei. Importa-se tanto comigo como com o cachorro... É de propósito. É um
enigma aquela moça.
— Pois não
serei eu quem o decifre, sr. Diogo. Desejo-lhe muita felicidade. Adeus.
E os dois
separaram-se. Diogo seguiu para a casa de Emília, Tito para a casa de Azevedo.
Tito acabava de
saber que a viúva pensava nele; todavia, isso não lhe dera o menor abalo. Por
quê? É o que saberemos mais adiante. O que é preciso dizer desde já, é que as
mesmas suspeitas despertadas no espírito de Diogo, tivera a mulher de Azevedo.
A intimidade de Emília dava lugar a uma franca interrogação e a uma confissão
franca. Adelaide, no dia seguinte àquele em que se passou a cena que referi
acima, disse a Emília o que pensava.
A resposta da viúva
foi uma risada.
— Não te
compreendo, disse a mulher de Azevedo.
— É simples,
disse a viúva. Julgas-me capaz de apaixonar-me pelo amigo de teu marido?
Enganas-te. Não, eu não o amo. Somente, como te disse no dia em que o vi aqui
pela primeira vez, empenho-me em tê-lo a meus pés. Se bem me recordo foste tu
mesma quem me deu conselho. Aceitei-o. Hei de vingar o nosso sexo. É um pouco
de vaidade minha, embora; mas eu creio que aquilo que nenhuma fez, fá-lo-ei eu.
— Ah!
cruelzinha! É isso?
— Nem mais,
nem menos.
— Achas
possível?
— Por que não?
— Reflete que
a derrota será dupla...
— Será, mas
não há de haver.
Esta conversa foi
interrompida por Azevedo. Um sinal de Emília fez calar Adelaide. Ficou
convencionado que nem mesmo Azevedo saberia de coisa alguma. E, com efeito,
Adelaide nada comunicou a seu marido.
III
Tinham-se passado
oito dias depois do que acabo de narrar.
Tito, como o temos
visto até aqui, estava no terreno do primeiro dia. Passeava, lia, conversava e
parecia inteiramente alheio aos planos que se tramavam em roda dele. Durante
esse tempo foi apenas duas vezes à casa de Emília, uma com a família de
Azevedo, outra com Diogo. Nestas visitas era sempre o mesmo, frio, indiferente,
impassível. Não havia olhar, por mais sedutor e significativo, que o abalasse;
nem a ideia de que andava no pensamento da viúva era capaz de animá-lo.
— Por que, ao
menos, se não é capaz de amar, não procura entreter um desses namoros de sala,
que tanto lisonjeiam a vaidade dos homens?
Esta pergunta era
feita por Emília a si mesma, sob a impressão da estranheza que lhe causava a
indiferença do rapaz. Ela não compreendia que Tito pudesse conservar-se de gelo diante dos
seus encantos. Mas infelizmente era assim.
Cansada de
trabalhar em vão, a viúva determinou dar um golpe mais decisivo. Encaminhou a
conversa para as doçuras do casamento e lamentou o estado de sua viuvez. O
casal Azevedo era para ela o tipo da perfeita felicidade conjugal.
Apresentava-o aos olhos de Tito como um incentivo para quem queria ser
venturoso na terra. Nada, nem a tese, nem a hipótese, nada moveu a frieza de
Tito.
Emília jogava um
jogo perigoso. Era preciso decidir entre os seus desejos de vingar o sexo e as
conveniências da sua posição; mas ela era de um caráter imperioso; respeitava
muito os princípios de sua moral severa, mas não acatava do mesmo modo as
conveniências de que a sociedade cercava essa moral. A vaidade impunha no
espírito dela, com força prodigiosa. Assim que a bela viúva foi usando todos os
meios que era lícito empregar para fazer apaixonar Tito.
Mas, apaixonado
ele, o que faria ela? A pergunta é ociosa; desde que ela o tivesse aos pés,
trataria de conservá-lo aí fazendo parelha ao velho Diogo. Era o melhor troféu
que uma beleza altiva pode ambicionar.
Uma manhã, oito
dias depois das cenas referidas no capítulo anterior, apareceu Diogo em casa de
Azevedo. Tinham aí acabado de almoçar; Azevedo subira para o gabinete, a fim de
aviar alguma correspondência para a corte; Adelaide achava-se na sala do
pavimento térreo.
Diogo entrou com
uma cara contristada, como nunca se lhe vira. Adelaide correu para ele.
— Que é isso?
perguntou ela.
— Ah! minha
senhora... sou o mais infeliz dos homens!
— Por quê?
Venha sentar-se...
Diogo sentou-se, ou
antes deixou-se cair na cadeira que Adelaide lhe ofereceu. Esta tomou lugar ao
pé dele, animou-o a contar as suas mágoas.
— Então que
há?
— Duas
desgraças, respondeu ele. A primeira em forma de sentença. Perdi mais uma
demanda. É uma desgraça isto, mas não é nada...
— Pois há
maior?...
— Há. A
segunda desgraça foi em forma de carta.
— De carta?
perguntou Adelaide.
— De carta.
Veja isto.
Diogo tirou da
carteira uma cartinha cor-de-rosa, cheirando a essência de magnólia.
Adelaide leu a
carta para si.
Quando ela acabou,
perguntou-lhe o velho:
— Que me diz a
isto?
— Não
compreendo, respondeu Adelaide.
— Esta carta é
dela.
— Sim, e
depois?
— É para ele.
— Ele quem?
— Ele! o
diabo! o meu rival! o Tito!
— Ah!
— Dizer-lhe o
que senti quando apanhei esta carta, é impossível. Nunca tremi na minha vida!
Mas quando li isto, não sei que vertigem se apoderou de mim. Ando tonto! A cada
passo como que desmaio... Ah!
— Ânimo! disse
Adelaide.
— É isto mesmo
que eu vinha buscar... é uma consolação, uma animação. Soube que estava aqui e
estimei achá-la só... Ah! quanto sinto que o estimável seu marido esteja
vivo... porque a melhor consolação era aceitar Vossa Excelência um coração tão
mal compreendido.
— Felizmente
ele está vivo.
Diogo soltou um
suspiro e disse:
— Felizmente!
E depois de um
silêncio continuou:
— Tive duas
ideas: uma foi o desprezo; mas desprezá-los é pô-los em maior liberdade e
ralar-me de dor e de vergonha; a segunda foi o duelo... é melhor... eu mato...
ou...
— Deixe-se
disso.
— É
indispensável que um de nós seja riscado do número dos vivos.
— Pode ser
engano...
— Mas não é
engano, é certeza.
— Certeza de
quê?
Diogo abriu o
bilhete e disse:
— Ora, ouça:
Se ainda não me compreendeu é bem curto de penetração. Tire a máscara e
eu me explicarei. Esta noite tomo chá sozinha. O importuno Diogo não me
incomodará com as suas tolices. Dê-me a felicidade de vê-lo e admirá-lo.
Emília.
— Mas que é
isto?
— Que é isto?
Ah! se fosse mais do que isto já eu estava morto! Pude pilhar a carta, e a tal
entrevista não se deu...
— Quando foi
escrita a carta?
— Ontem.
— Tranquilize-se.
É capaz de guardar um segredo? O que lhe vou dizer é grave. Mas só a sua
aflição me faz falar. Posso afirmar-lhe que esta carta é uma pura caçoada.
Trata-se de vingar o nosso sexo ultrajado; trata-se de fazer com que Tito se
apaixone... nada mais.
Diogo estremeceu de
alegria.
— Sim?
perguntou ele.
— É pura verdade.
Mas veja lá, isto é segredo. Se lho descobri foi por vê-lo aflito. Não nos
comprometa.
— Isso é
sério? insistiu Diogo.
— Como quer
que lho diga?
— Ah! que peso
me tirou! Pode estar certa de que o segredo caiu num poço. Oh! muito me hei de
rir... muito me hei de rir... Que boa inspiração tive em vir falar-lhe!
Diga-me, posso dizer a D. Emília que sei tudo?
— Não!
— É então
melhor que não me dê por achado...
— Sim.
— Muito bem!
Dizendo estas
palavras o velho Diogo esfregava as mãos e piscava os olhos. Estava radiante.
Quê! ver o suposto rival sendo vítima dos laços da viúva! Que glória! que
felicidade!
Nisto estava quando
à porta do interior apareceu Tito. Acabava de levantar-se da cama.
— Bom dia, D.
Adelaide, disse ele dirigindo-se para a mulher de Azevedo.
Depois sentando-se
e voltando a cara para Diogo:
— Bom dia,
disse. Está hoje alegre... Tirou a sorte grande?
— A sorte
grande? perguntou Diogo. Tirei... tirei...
— Dormiu bem?
perguntou Adelaide a Tito.
— Como um
justo que sou. Tive sonhos cor-de-rosa: sonhei com o sr. Diogo.
— Ah! sonhou
comigo? murmurou entre dentes o velho namorado. Coitado! tenho pena dele!
— Mas onde
está Azevedo? perguntou Tito a Adelaide.
— Anda de
passeio.
— Já?
— Pois então.
Onze horas.
— Onze horas!
É verdade, acordei muito tarde. Tinha duas visitas para fazer: uma a D.
Emília...
— Ah! disse
Diogo.
— De que se
espanta, meu caro?
— De nada! de
nada!
— Bom; vou
mandar pôr o seu almoço, disse Adelaide.
Os dois ficaram
sós. Tito acendeu um cigarro de palha; Diogo afetava grande distração, mas
olhava sorrateiramente para o moço. Este, apenas soltou duas fumaças, voltou-se
para o velho e disse:
— Como vão os
seus amores?
— Que amores?
— Os seus, a
Emília... Já lhe fez compreender toda a imensidade da paixão que o devora?
— Qual...
Preciso de algumas lições... Se mas quisesse dar?...
— Eu? Está
sonhando!
— Ah! eu sei
que o senhor é forte... É modesto, mas é forte... e até fortíssimo! Ora, eu sou
realmente um aprendiz... Tive há pouco a ideia de desafiá-lo.
— A mim?
— É verdade,
mas foi uma loucura de que me arrependi...
— Além de que
não é uso em nosso país...
— Em toda a
parte é uso vingar a honra.
— Bravo, D.
Quixote!
— Ora, eu
acreditava-me ofendido na honra.
— Por mim?
— Mas emendei
a mão; reparei que era antes eu quem ofendia pretendendo lutar com um mestre,
eu simples aprendiz?...
— Mestre de
quê?
— Dos amores!
Oh! eu sei que é mestre...
— Deixe-se
disso... eu não sou nada... o sr. Diogo, sim; o senhor vale um urso, vale mesmo
dois. Como havia de eu... Ora! Aposto que teve ciúmes?
— Exatamente.
— Mas era
preciso não me conhecer; não sabe das minhas ideias?
— Homem, às
vezes é pior.
— Pior, como?
— As mulheres
não deixam uma afronta sem castigo... As suas ideias são afrontosas... Qual
será o castigo? Paro aqui... paro aqui...
— Onde vai?
— Vou sair.
Adeus. Não se lembre mais da minha desastrada ideia do duelo...
— Que está
acabado... Ah! o senhor escapou de boa!
— De quê?
— De morrer.
Eu enfiava-lhe a espada por esse abdome... com um gosto... com um gosto só
comparável ao que tenho de abraçá-lo vivo e são!
Diogo riu-se com um
riso amarelo.
— Obrigado,
obrigado. Até logo!
— Venha cá,
onde vai? Não se despede de D. Adelaide?
— Eu já volto,
disse Diogo travando do chapéu e saindo precipitadamente.
Tito ainda o
acompanhou com os olhos.
“Este sujeito”,
disse o moço consigo quando se viu só, “não tem nada de original. Aquela
opinião a respeito das mulheres não é dele... Melhor... já se conspira; é o que
me convém. Hás de vir! hás de vir!”
Um criado alemão
veio anunciar a Tito que o almoço estava preparado. Tito ia entrando
quando assomou à porta a figura de Azevedo.
— Ora, graças
a Deus! O meu amigo não se levanta com o sol. Estás com olhos de quem acaba de
dormir.
— É verdade, e
vou almoçar.
Dirigiram-se os
dois para dentro, onde a mesa estava posta à espera de Tito.
— Almoças
outra vez? perguntou Tito.
— Não.
— Pois então
vais ver como se come.
Tito sentou-se à
mesa; Azevedo estirou-se num sofá.
— Onde foste?
perguntou Tito.
— Fui
passear... Compreendi que é preciso ver e admirar o que é indiferente, para
apreciar e ver aquilo que faz a felicidade íntima do coração.
— Ah! sim? Bem
vês que até a felicidade por igual fatiga! Afinal sempre a razão do meu lado.
— Talvez.
Apesar de tudo, quer-me parecer que já intentas entrar na família dos casados.
— Eu?
— Tu, sim.
— Por quê?
— Mas, dize, é
ou não verdade?
— Qual,
verdade!
— O que sei, é
que uma destas tardes em que adormeceste lendo, não sei que livro, ouvi-te
pronunciar em sonhos, com a maior ternura, o nome de Emília.
— Deveras?
perguntou Tito mastigando.
— É exato.
Concluí que se sonhavas com ela é que a tinhas no pensamento, e se a tinhas no
pensamento é que a amavas.
— Concluíste
mal.
— Mal?
— Concluíste
como um marido de cinco meses. Que prova um sonho? Não prova nada! Pareces
velha supersticiosa...
— Mas enfim,
alguma coisa há por força... Serás capaz de me dizeres o que é?
— Homem, podia
dizer-te alguma coisa se não fosses casado...
— Que tem que
eu seja casado?
— Tem tudo.
Seria indiscreto sem querer e até sem saber. À noite, entre um beijo e um
bocejo, o marido e a mulher abrem um para o outro a bolsa das confidências. Sem
pensares, podes deitar tudo a perder.
— Não digas
isso. Vamos lá. Há novidade?
— Não há nada.
— Confirmas as
minhas suspeitas. Gostas da Emília.
— Ódio não lhe
tenho, é verdade.
— Gostas. E
ela merece. É uma boa senhora, de não vulgar beleza, possuindo as melhores
qualidades. Talvez preferisses que não fosse viúva?...
— Sim; é
natural que se embale dez vezes por dia na lembrança dos dois maridos que já
exportou para o outro mundo... à espera de exportar o terceiro...
— Não é
dessas...
— Afianças?
— Quase que
posso afiançar.
— Ah! meu
amigo, disse Tito levantando-se da mesa e indo acender um charuto, toma o
conselho de um tolo: nunca afiances nada, principalmente em tais assuntos.
Entre a prudência discreta, e a cega confiança não é lícito duvidar, a escolha
está decidida nos próprios termos da primeira. O que podes tu afiançar a
respeito de Emília? Não a conheces melhor do que eu. Há quinze dias que nos
conhecemos, e eu já lhe leio no interior; estou longe de atribuir-lhe maus
sentimentos, mas tenho a certeza de que não possui as raríssimas qualidades que
são necessárias à exceção. Que sabes tu?
— Realmente,
eu não sei nada.
“Não sabes
nada!” disse Tito consigo.
— Falo pelas
minhas impressões. Parecia-me que um casamento entre vocês ambos não vinha fora
de propósito.
— Se me falas
outra vez em casamento, saio.
— Pois só a
palavra?
— A palavra, a
ideia, tudo.
— Entretanto,
admiras e aplaudes o meu casamento...
— Ah! eu aplaudo
nos outros muitas coisas de que não sou capaz de usar. Depende da vocação...
Adelaide apareceu à
porta da sala de jantar. A conversa cessou entre os dois rapazes.
— Trago-lhe
uma notícia.
— Que notícia?
perguntaram-lhe os dois.
— Recebi um
bilhete de Emília... Pede-nos que vamos lá amanhã, porque...
— Por quê?
perguntou Azevedo.
— Talvez
dentro de oito dias se retire para a cidade.
— Ah! disse
Tito com a maior indiferença deste mundo.
— Apronta as
tuas malas, disse Azevedo a Tito.
— Por quê?
— Não segues
os passos da deusa?
— Não zombes,
cruel amigo! Quando não...
— Anda lá...
Adelaide sorriu
ouvindo estas palavras.
Daí a meia hora
Tito subiu para o gabinete em que Azevedo tinha os livros. Ia, dizia, ler
as Confissões de Santo Agostinho.
— Que
repentina viagem é esta? perguntou Azevedo à sua mulher.
— Tens muito
empenho em saber?
— Tenho.
— Pois bem.
Olha que é segredo. Eu não sei positivamente, mas creio que é uma estratégia.
— Estratégia?
Não entendo.
— Eu te digo.
Trata-se de prender o Tito.
— Prender?
— Estás hoje
tão bronco! Prender pelos laços do amor...
— Ah!
— Emília
julgou que deve fazê-lo. É só para brincar. No dia em que ele se declarar
vencido fica ela vingada do que ele disse contra o sexo.
— Não está
mal... E tu entras nesta estratégia...
— Como
conselheira.
— Trama-se
então contra um amigo, um alter ego.
— Tá, tá, tá.
Cala a boca. Não vás fazer abortar o plano.
Azevedo riu-se a
bandeiras despregadas. No fundo achava engraçada a punição premeditada ao pobre
Tito.
A visita que Tito
disse ter de fazer à viúva naquele dia, não se realizou.
Diogo, que apenas
saíra da casa de Azevedo, ciente das intenções da viúva, fora para casa desta
esperar o rapaz, embalde lá esteve durante o dia, embalde jantou, embalde
aborreceu a tarde inteira tanto a Emília como à tia. Tito não apareceu.
Mas, à noite, à
hora em que Diogo, já vexado de tanta demora na casa da moça, tratava de sair,
anunciou-se a chegada de Tito.
Emília estremeceu;
mas esse movimento escapou a Diogo.
Tito entrou na sala
onde se achavam Emília, a tia, e Diogo.
— Não contava
com a sua visita, disse a viúva.
— Eu sou
assim; apareço quando não me esperam. Sou como a morte e a sorte grande.
— Agora é a
sorte grande, disse Emília.
— Que número é
o seu bilhete, minha senhora?
— Número doze,
isto é, doze horas que tenho tido o prazer de ter hoje aqui o sr. Diogo...
— Doze horas!
exclamou Tito voltando-se para o velho.
— Sem que
ainda o nosso bom amigo nos contasse uma história...
— Doze horas!
repetiu Tito.
— Que admira,
meu caro senhor? perguntou Diogo.
— Acho um
pouco estirado...
— As horas
contam-se quando são aborrecidas... Peço para me retirar...
E dizendo isto,
Diogo travou do chapéu para sair lançando um olhar de despeito e ciúme para a
viúva.
— Que é isso?
perguntou esta. Onde vai?
— Dou asas às
horas, respondeu Diogo ao ouvido de Emília; vão correr depressa agora.
— Perdoo-lhe e
peço que se sente.
Diogo sentou-se.
A tia de Emília
pediu licença para retirar-se alguns minutos.
Ficaram os três.
— Mas então,
disse Tito, nem ao menos uma história contou?
— Nenhuma.
Emília lançou um
olhar a Diogo como para tranquilizá-lo. Este, mais calmo então, lembrou-se do
que Adelaide lhe havia dito, e voltou às boas.
— Afinal de
contas, disse ele consigo, o caçoado é ele. Eu sou apenas o meio de
prendê-lo... Contribuamos para que se lhe tire a proa.
— Nenhuma
história, continuou Emília.
— Pois olhe,
eu sei muitas, disse Diogo com intenção.
— Conte uma de
tantas que sabe, disse Tito.
— Nada! Por
que não conta o senhor?
— Se faz
empenho...
— Muito...
muito, disse Diogo piscando os olhos. Conte lá, por exemplo, a história do
taboqueado, a história das imposturas do amor, a história dos viajantes
encouraçados; vá, vá.
— Não, vou
contar a história de um homem e de um macaco.
— Oh! disse a
viúva.
— É muito
interessante, disse Tito. Ora, ouçam...
— Perdão,
interrompeu Emília, será depois do chá.
— Pois sim.
Daí a pouco
servia-se o chá aos três. Findo ele, Tito tomou a palavra e começou a história:
HISTÓRIA DE UM HOMEM E DE UM MACACO
Não longe da vila ***, no interior do Brasil, morava há uns vinte anos
um homem de trinta e cinco anos, cuja vida misteriosa era o objeto das
conversas das vilas próximas e o objeto do terror que experimentavam os
viajantes que passavam na estrada a dois passos da casa.
A própria casa era já de causar apreensões ao espírito menos timorato. Vista de longe nem parecia casa, tão baixinha era. Mas quem se aproximasse conheceria aquela construção singular. Metade do edifício estava ao nível do chão e metade abaixo da terra. Era entretanto uma casa solidamente construída. Não tinha porta nem janelas. Tinha um vão quadrado que servia ao mesmo tempo de janela e de porta. Era por ali que o misterioso morador entrava e saía.
Pouca gente o via sair, não só porque ele raras vezes o fazia, como porque o fazia em horas impróprias. Era nas horas da lua cheia que o solitário deixava a residência para ir passear nos arredores. Levava sempre consigo um grande macaco, que acudia pelo nome de Calígula.
O macaco e o homem, o homem e o macaco eram dois amigos inseparáveis, dentro e fora de casa, na lua nova.
Mil versões corriam a respeito deste misterioso solitário.
A mais geral é que era um feiticeiro. Havia uma que o dava por doido; outra por simplesmente atacado de misantropia.
Esta última versão tinha por si duas circunstâncias: a primeira era não constar nada de positivo que fizesse reconhecer no homem hábitos de feiticeiro ou alienado; a segunda era a amizade que ele parecia votar ao macaco e o horror com que fugia ao olhar dos homens. Quando a gente se aborrece dos homens toma sempre a afeição dos animais, que têm a vantagem de não discorrer, nem intrigar.
O misterioso... É preciso dar-lhe um nome: chamemo-lo Daniel. Daniel preferia o macaco, e não falava a mais homem algum. Algumas vezes os viajantes que passavam pela estrada ouviam partir de dentro da casa gritos do macaco e do homem; era o homem que afagava o macaco.
Como se alimentavam aquelas duas criaturas? Houve quem visse um dia de manhã abrir-se a porta, sair o macaco e voltar pouco depois com um embrulho na boca. O tropeiro que presenciava esta cena quis descobrir onde ia o macaco buscar aquele embrulho que levava sem dúvida os alimentos dos dois solitários. Na manhã seguinte introduziu-se no mato; o macaco chegou à hora do costume, e dirigiu-se para um tronco de árvore; havia sobre esse tronco um grande galho, que o bicho atirou ao chão. Depois, introduzindo as mãos no interior do velho tronco, tirou um embrulho igual ao da véspera e partiu.
O tropeiro persignou-se, e tão apreensivo ficou com a cena que acabava de presenciar que não a contou a ninguém.
Durava esta existência três anos.
Durante esse tempo o homem não envelhecera. Era o mesmo que no primeiro dia. Longas barbas ruivas e cabelos grandes caídos para trás. Usava um grande casaco de baeta, tanto no inverno, como no verão. Calçava botas e não usava chapéu.
Era impossível aos passageiros e aos moradores das vizinhanças penetrar na casa do solitário. Não o será decerto para nós, minha bela senhora, e meu caro amigo.
A casa divide-se em duas salas e um quarto. Uma sala é para jantar; a outra é... a de visitas. O quarto é ocupado pelos dois moradores, Daniel e Calígula.
As duas salas são de iguais dimensões; o quarto é uma metade da sala. A mobília da primeira sala compõe-se de dois sujos bancos encostados à parede, uma mesa baixa no centro. O chão é assoalhado. Pendem das paredes dois retratos: um de moça, outro de velho. A moça é uma figura angélica e deliciosa. O velho inspirava respeito e admiração. Das outras duas paredes pendem, de um lado uma faca de cabo de marfim, e do outro uma mão de defunto, amarela e seca.
A sala de jantar tem apenas uma mesa e dois bancos.
A mobília do quarto resume-se num grabato em que dorme Daniel. Calígula estende-se no chão, junto à cabeceira do dono.
Tal é a mobília da casa.
A casa, que de fora parece não ter capacidade para conter um homem em pé, é contudo suficiente, visto estar, como disse, entranhada no chão.
Que vida terão passado aí dentro o macaco e o homem, no espaço de três anos? Não saberei dizê-lo.
Quando Calígula traz de manhã o embrulho, Daniel divide a comida em duas porções, uma para o almoço, outra para jantar. Depois homem e macaco sentam-se em face um do outro na sala de jantar e comem irmãmente as duas refeições.
Quando chega a lua cheia saem os dois solitários, como já disse, todas as noites, até a época em que a lua passa a ser minguante. Saem às dez horas, pouco mais ou menos, e voltam pouco mais ou menos às duas horas da madrugada. Quando entram, Daniel tira a mão do finado que pende da parede e dá com ela duas bofetadas em si próprio. Feito isso, vai deitar-se; Calígula acompanha-o.
Uma noite, era no mês de junho, época de lua cheia, Daniel preparou-se para sair. Calígula deu um pulo e saltou à estrada. Daniel fechou a porta, e lá se foi com o macaco estrada acima.
A lua, inteiramente cheia, projetava os seus reflexos pálidos e melancólicos na vasta floresta que cobria as colinas próximas, e clareava toda a vasta campina que rodeava a casa.
Só se ouvia ao longe o murmúrio de uma cachoeira, e ao perto o piar de algumas corujas, e o chilrar de uma infinidade de grilos espalhados na planície.
Daniel caminhava pausadamente levando um pau debaixo do braço, e acompanhado do macaco, que saltava do chão aos ombros de Daniel e dos ombros de Daniel para o chão.
Mesmo sem a forma lúgubre que tinha aquele lugar por causa da residência do solitário, qualquer pessoa que encontrasse àquela hora Daniel e o macaco corria risco de morrer de medo. Daniel, extremamente magro e alto, tinha em si um ar lúgubre. Os cabelos da barba e da cabeça, crescidos em abundância, faziam a sua cabeça ainda maior do que era. Sem chapéu era uma cabeça verdadeiramente satânica.
Calígula, que nos outros dias era um macaco ordinário, tomava, naquelas horas de passeio noturno, um ar tão lúgubre e tão misterioso como o de Daniel.
Havia já uma hora que os dois solitários tinham saído de casa. A casa ficara já um pouco longe. Nada mais natural do que chegar a polícia nessa ocasião, tomar a entrada da casa e reconhecer o mistério. Mas a polícia, apesar dos meios que tinha à sua disposição, não se animava a investigar no mistério que o povo reputava diabólico. Também a polícia é humana, e nada do que é humano lhe é desconhecido.
Havia uma hora, disse eu, que os dois passeadores tinham saído de casa. Começavam então a subir uma pequena colina...
A própria casa era já de causar apreensões ao espírito menos timorato. Vista de longe nem parecia casa, tão baixinha era. Mas quem se aproximasse conheceria aquela construção singular. Metade do edifício estava ao nível do chão e metade abaixo da terra. Era entretanto uma casa solidamente construída. Não tinha porta nem janelas. Tinha um vão quadrado que servia ao mesmo tempo de janela e de porta. Era por ali que o misterioso morador entrava e saía.
Pouca gente o via sair, não só porque ele raras vezes o fazia, como porque o fazia em horas impróprias. Era nas horas da lua cheia que o solitário deixava a residência para ir passear nos arredores. Levava sempre consigo um grande macaco, que acudia pelo nome de Calígula.
O macaco e o homem, o homem e o macaco eram dois amigos inseparáveis, dentro e fora de casa, na lua nova.
Mil versões corriam a respeito deste misterioso solitário.
A mais geral é que era um feiticeiro. Havia uma que o dava por doido; outra por simplesmente atacado de misantropia.
Esta última versão tinha por si duas circunstâncias: a primeira era não constar nada de positivo que fizesse reconhecer no homem hábitos de feiticeiro ou alienado; a segunda era a amizade que ele parecia votar ao macaco e o horror com que fugia ao olhar dos homens. Quando a gente se aborrece dos homens toma sempre a afeição dos animais, que têm a vantagem de não discorrer, nem intrigar.
O misterioso... É preciso dar-lhe um nome: chamemo-lo Daniel. Daniel preferia o macaco, e não falava a mais homem algum. Algumas vezes os viajantes que passavam pela estrada ouviam partir de dentro da casa gritos do macaco e do homem; era o homem que afagava o macaco.
Como se alimentavam aquelas duas criaturas? Houve quem visse um dia de manhã abrir-se a porta, sair o macaco e voltar pouco depois com um embrulho na boca. O tropeiro que presenciava esta cena quis descobrir onde ia o macaco buscar aquele embrulho que levava sem dúvida os alimentos dos dois solitários. Na manhã seguinte introduziu-se no mato; o macaco chegou à hora do costume, e dirigiu-se para um tronco de árvore; havia sobre esse tronco um grande galho, que o bicho atirou ao chão. Depois, introduzindo as mãos no interior do velho tronco, tirou um embrulho igual ao da véspera e partiu.
O tropeiro persignou-se, e tão apreensivo ficou com a cena que acabava de presenciar que não a contou a ninguém.
Durava esta existência três anos.
Durante esse tempo o homem não envelhecera. Era o mesmo que no primeiro dia. Longas barbas ruivas e cabelos grandes caídos para trás. Usava um grande casaco de baeta, tanto no inverno, como no verão. Calçava botas e não usava chapéu.
Era impossível aos passageiros e aos moradores das vizinhanças penetrar na casa do solitário. Não o será decerto para nós, minha bela senhora, e meu caro amigo.
A casa divide-se em duas salas e um quarto. Uma sala é para jantar; a outra é... a de visitas. O quarto é ocupado pelos dois moradores, Daniel e Calígula.
As duas salas são de iguais dimensões; o quarto é uma metade da sala. A mobília da primeira sala compõe-se de dois sujos bancos encostados à parede, uma mesa baixa no centro. O chão é assoalhado. Pendem das paredes dois retratos: um de moça, outro de velho. A moça é uma figura angélica e deliciosa. O velho inspirava respeito e admiração. Das outras duas paredes pendem, de um lado uma faca de cabo de marfim, e do outro uma mão de defunto, amarela e seca.
A sala de jantar tem apenas uma mesa e dois bancos.
A mobília do quarto resume-se num grabato em que dorme Daniel. Calígula estende-se no chão, junto à cabeceira do dono.
Tal é a mobília da casa.
A casa, que de fora parece não ter capacidade para conter um homem em pé, é contudo suficiente, visto estar, como disse, entranhada no chão.
Que vida terão passado aí dentro o macaco e o homem, no espaço de três anos? Não saberei dizê-lo.
Quando Calígula traz de manhã o embrulho, Daniel divide a comida em duas porções, uma para o almoço, outra para jantar. Depois homem e macaco sentam-se em face um do outro na sala de jantar e comem irmãmente as duas refeições.
Quando chega a lua cheia saem os dois solitários, como já disse, todas as noites, até a época em que a lua passa a ser minguante. Saem às dez horas, pouco mais ou menos, e voltam pouco mais ou menos às duas horas da madrugada. Quando entram, Daniel tira a mão do finado que pende da parede e dá com ela duas bofetadas em si próprio. Feito isso, vai deitar-se; Calígula acompanha-o.
Uma noite, era no mês de junho, época de lua cheia, Daniel preparou-se para sair. Calígula deu um pulo e saltou à estrada. Daniel fechou a porta, e lá se foi com o macaco estrada acima.
A lua, inteiramente cheia, projetava os seus reflexos pálidos e melancólicos na vasta floresta que cobria as colinas próximas, e clareava toda a vasta campina que rodeava a casa.
Só se ouvia ao longe o murmúrio de uma cachoeira, e ao perto o piar de algumas corujas, e o chilrar de uma infinidade de grilos espalhados na planície.
Daniel caminhava pausadamente levando um pau debaixo do braço, e acompanhado do macaco, que saltava do chão aos ombros de Daniel e dos ombros de Daniel para o chão.
Mesmo sem a forma lúgubre que tinha aquele lugar por causa da residência do solitário, qualquer pessoa que encontrasse àquela hora Daniel e o macaco corria risco de morrer de medo. Daniel, extremamente magro e alto, tinha em si um ar lúgubre. Os cabelos da barba e da cabeça, crescidos em abundância, faziam a sua cabeça ainda maior do que era. Sem chapéu era uma cabeça verdadeiramente satânica.
Calígula, que nos outros dias era um macaco ordinário, tomava, naquelas horas de passeio noturno, um ar tão lúgubre e tão misterioso como o de Daniel.
Havia já uma hora que os dois solitários tinham saído de casa. A casa ficara já um pouco longe. Nada mais natural do que chegar a polícia nessa ocasião, tomar a entrada da casa e reconhecer o mistério. Mas a polícia, apesar dos meios que tinha à sua disposição, não se animava a investigar no mistério que o povo reputava diabólico. Também a polícia é humana, e nada do que é humano lhe é desconhecido.
Havia uma hora, disse eu, que os dois passeadores tinham saído de casa. Começavam então a subir uma pequena colina...
Tito foi
interrompido por um bocejo do velho Diogo.
— Quer dormir?
perguntou o rapaz.
— É o que vou
fazer.
— Mas a
história?
— A história é
muito divertida. Até aqui só temos visto duas coisas, um homem e um macaco;
perdão... temos mais dois, um macaco e um homem. É muito divertida! Mas, para
variar, o homem vai sair e fica o macaco.
Dizendo estas
palavras com uma raiva cômica, Diogo travou do chapéu e saiu.
Tito soltou uma
gargalhada.
— Mas vamos ao
fim da história...
— Que fim,
minha senhora? Eu já estava em talas por não saber como continuar... Era um
meio de servi-la. Vejo que é um velho aborrecido...
— Não é, está
enganado.
— Ah! não?
— Divirto-me
com ele. O que não impede que a presença do senhor me dê infinito prazer...
— Vossa
Excelência disse agora uma falsidade.
— Qual foi?
— Disse que
lhe era agradável a minha conversa. Ora, isso é falso como tudo quanto é
falso...
— Quer um
elogio?
— Não, falo franco.
Eu nem sei como Vossa Excelência me atura; desabrido, maçante, chocarreiro, sem
fé em coisa alguma, sou um conversador muito pouco digno de ser desejado. É
preciso ter uma grande soma de bondade para ter expressões tão benévolas... tão
amigas...
— Deixe esse
ar de mofa, e...
— Mofa, minha
senhora?
— Ontem eu e
minha tia tomamos chá sozinhas! sozinhas!...
— Ah!
— Contava que
o senhor viesse aborrecer-se uma hora conosco...
— Qual
aborrecer... Eu lhe digo: o culpado foi o Ernesto.
— Ah! foi ele?
— É verdade;
deu comigo aí em casa de uns amigos, éramos quatro ao todo, rolou a conversa
sobre o voltarete e acabamos por formar mesa. Ah! mas foi uma noite completa!
Aconteceu-me o que me acontece sempre: ganhei!
— Está bom.
— Pois, olhe,
ainda assim eu não jogava com pixotes; eram mestres de primeira força: um
principalmente; até às onze horas a fortuna pareceu desfavorecer-me, mas dessa
hora em diante desandou a roda para eles e eu comecei a assombrar... pode ficar
certa de que os assombrei. Ah! é que eu tenho diploma... mas que é isso, está
chorando?
Emília tinha com
efeito o lenço nos olhos. Chorava? É certo que quando tirou o lenço dos olhos,
tinha-os úmidos. Voltou-se contra a luz e disse ao moço...
— Qual... pode
continuar.
— Não há mais
nada; foi só isto, disse Tito.
— Estimo que a
noite lhe corresse feliz...
— Alguma
coisa...
— Mas a uma
carta responde-se; por que não respondeu à minha? disse a viúva.
— À sua qual?
— À carta que
lhe escrevi pedindo que viesse tomar chá conosco?
— Não me
lembro.
— Não se lembra?
— Ou, se
recebi essa carta, foi em ocasião que a não pude ler, e então esqueci,
esqueci-a em algum lugar...
— É possível:
mas é a última vez...
— Não me
convida mais para tomar chá?
— Não. Pode
arriscar-se a perder distrações melhores.
— Isso não digo:
a senhora trata bem a gente, e em sua casa passam-se bem as horas... Isto é com
franqueza. Mas então tomou chá sozinha? E o Diogo?
— Descartei-me
dele. Acha que ele seja divertido?
— Parece que
sim... É um homem delicado; um tanto dado às paixões, é verdade, mas sendo esse
um defeito comum, acho que nele não é muito digno de censura.
— O Diogo está
vingado.
— De quê,
minha senhora?
Emília olhou
fixamente para Tito e disse:
— De nada!
E levantando-se,
dirigiu-se para o piano.
— Vou tocar,
disse ela; não o aborrece?
— De modo
nenhum.
Emília começou a
tocar; mas era uma música tão triste que infundia certa melancolia no espírito
do moço. Este, depois de algum tempo, interrompeu com estas palavras:
— Que música
triste!
— Traduzo a
minha alma, disse a viúva.
— Anda triste?
— Que lhe
importam as minhas tristezas?
— Tem razão,
não me importam nada. Em todo o caso não é comigo?
Emília levantou-se
e foi para ele.
— Acha que lhe
hei de perdoar a desfeita que me fez? disse ela.
— Que
desfeita, minha senhora?
— A desfeita
de não vir ao meu convite?
— Mas eu já
lhe expliquei...
— Paciência! O
que sinto é que também nesse voltarete estivesse o marido de Adelaide.
— Ele
retirou-se às dez horas, e entrou um parceiro novo, que não era de todo mau.
— Pobre
Adelaide!
— Mas se eu
lhe digo que ele se retirou às dez horas...
— Não devia
ter ido. Devia pertencer sempre à sua mulher. Sei que estou falando a um
descrido; não pode calcular a felicidade e os deveres do lar doméstico. Viverem
duas criaturas uma para a outra, confundidas, unificadas; pensar, aspirar,
sonhar a mesma coisa; limitar o horizonte nos olhos de cada uma, sem outra
ambição, sem inveja de mais nada. Sabe o que é isto?
— Sei... É o
casamento por fora.
— Conheço
alguém que lhe provava aquilo tudo...
— Deveras? Quem
é essa fênix?
— Se lho
disser, há de mofar; não digo.
— Qual mofar!
Diga lá, eu sou curioso.
— Não acredita
que haja alguém que possa amá-lo?
— Pode ser...
— Não acredita
que alguém, por despeito, por outra coisa que seja, tire da originalidade do
seu espírito os influxos de um amor verdadeiro, mui diverso do amor ordinário
dos salões; um amor capaz de sacrifício, capaz de tudo? Não acredita!
— Se me
afirma, acredito; mas...
— Existe a
pessoa e o amor.
— São então
duas fênix.
— Não zombe.
Existem... Procure...
— Ah! isso há
de ser mais difícil: não tenho tempo. E suponha que achasse, de que me servia?
Para mim é perfeitamente inútil. Isso é bom para outros; para o Diogo, por
exemplo...
— Para o
Diogo?
A bela viúva
pareceu ter um assomo de cólera. Depois de um silêncio disse:
— Adeus!
Desculpe, estou incomodada.
— Então, até
amanhã!
Dizendo o que, Tito
apertou a mão de Emília e saiu tão alegre e descuidoso como se saísse de um
jantar de anos.
Emília, apenas
ficou só, caiu numa cadeira e cobriu o rosto. Estava nessa posição havia cinco
minutos, quando assomou à porta a figura do velho Diogo.
O rumor que o velho
fez entrando despertou a viúva.
— Ainda aqui!
— É verdade,
minha senhora, disse Diogo aproximando-se, é verdade. Ainda aqui, por minha
infelicidade...
— Não
entendo...
— Não saí para
casa. Um demônio oculto me impeliu para cometer um ato infame. Cometi-o, mas
tirei dele um proveito; estou salvo. Sei que me não ama.
— Ouviu?
— Tudo. E
percebi.
— Que
percebeu, meu caro senhor?
— Percebi que
a senhora ama o Tito.
— Ah!
— Retiro-me,
portanto, mas não quero fazê-lo sem que ao menos fique sabendo de que saio com
ciência de que não sou amado; e que saio antes de me mandarem embora.
Emília ouviu as
palavras de Diogo com a maior tranquilidade. Enquanto ele falava teve tempo de
refletir no que devia dizer.
Diogo estava já a
fazer o seu último cumprimento, quando a viúva lhe dirigiu a palavra.
— Ouça-me, sr.
Diogo. Ouviu bem, mas percebeu mal. Já que pretende ter sabido...
— Já sei; vem
dizer que há um plano assentado de zombar com aquele moço...
— Como sabe?
— Disse-mo D.
Adelaide.
— É verdade.
— Não creio.
— Por quê?
— Haviam
lágrimas nas suas palavras. Ouvi-as com a dor na alma. Se soubesse como eu
sofria!
A bela viúva não
pôde deixar de sorrir ao gesto cômico de Diogo. Depois, como ele parecesse
mergulhado em meditação sombria, disse:
— Engana-se,
tanto que volto para a cidade.
— Deveras?
— Pois
acredita que um homem como aquele possa inspirar qualquer sentimento sério? Nem
por sombras!
Estas palavras
foram ditas no tom com que Emília costumava persuadir aquele eterno namorado.
Isso e mais um sorriso, foi quanto bastou para acalmar o ânimo de Diogo. Daí a
alguns minutos estava ele radiante.
— Olhe, e para
desenganá-lo de uma vez vou escrever um bilhete ao Tito...
— Eu mesmo o
levarei, disse Diogo louco de contente.
— Pois sim!
— Adeus, até
amanhã. Tenha sonhos cor-de-rosa, e desculpe os meus maus modos. Até amanhã.
O velho beijou
graciosamente a mão de Emília e saiu.
IV
No dia seguinte, ao
meio-dia, Diogo apresentou-se ao Tito, e depois de falar sobre diferentes
coisas, tirou do bolso uma cartinha, que fingira ter esquecido até então, e à
qual mostrava não dar grande apreço.
“Que
bomba!” disse ele consigo, na ocasião em que Tito rasgou a sobrecarta.
Eis o que dizia a carta:
Dei-lhe o meu coração. Não quis
aceitá-lo, desprezou-o mesmo. A sua bota magoou-o demais para que ele possa
palpitar ainda. Está morto. Não o censuro; não se deve falar de luz aos cegos;
a culpada fui eu. Supus que pudesse dar-lhe uma felicidade, recebendo outra.
Enganei-me.
Tem a glória de retirar-se com todas as honras da guerra. Eu é que fico vencida. Paciência! Pode zombar de mim; não lhe contesto o direito que tem para isso.
Entretanto, devo dizer-lhe que eu bem o conhecia; nunca lho disse, mas conheci-o; desde o dia em que o vi pela primeira vez em casa de Adelaide, reconheci na sua pessoa o mesmo homem que um dia veio atirar-se aos meus pés... Era zombaria então, como hoje. Eu já devia conhecê-lo. Caro pago o meu engano. Adeus, adeus para sempre.
Tem a glória de retirar-se com todas as honras da guerra. Eu é que fico vencida. Paciência! Pode zombar de mim; não lhe contesto o direito que tem para isso.
Entretanto, devo dizer-lhe que eu bem o conhecia; nunca lho disse, mas conheci-o; desde o dia em que o vi pela primeira vez em casa de Adelaide, reconheci na sua pessoa o mesmo homem que um dia veio atirar-se aos meus pés... Era zombaria então, como hoje. Eu já devia conhecê-lo. Caro pago o meu engano. Adeus, adeus para sempre.
Lendo esta carta,
Tito olhava repetidas vezes para Diogo. Como é que o velho se prestara àquilo?
Era autêntica ou apócrifa a tal carta? Sobre não trazer assinatura, tinha a
letra disfarçada. Seria uma arma de que o velho usara para descartar-se do rapaz?
Mas, se fosse assim, era preciso que ele soubesse do que se passara na véspera.
Tito releu a carta
muitas vezes; e, despedindo-se do velho, disse-lhe que a resposta iria depois.
Diogo retirou-se
esfregando as mãos de contente.
É que a carta cuja
leitura os leitores fizeram ao mesmo tempo que o nosso herói, não era a
que Emília lera a Diogo. Na minuta apresentada ao velho a viúva declarava simplesmente que se
retirava para a corte, e acrescentava que entre as recordações que levava de
Petrópolis figurava Tito, pela figura que ela havia representado diante dele. Mas essa minuta, por uma destreza puramente feminina, não foi a
que Emília mandou a Tito, como viram os leitores.
À carta de Emília
respondeu Tito nos seguintes termos:
Minha senhora,
Li e reli a sua carta; e não lhe ocultarei o sentimento de pesar que ela me inspirou. Realmente, minha senhora, é esse o estado do seu coração? Está assim tão perdido por mim?
Diz Vossa Excelência que eu com a minha bota machuquei o seu coração. Penaliza-me o fato, sem que eu entretanto o confirme. Não me lembra até hoje que tivesse feito estrago algum desta natureza. Mas, enfim, Vossa Excelência o diz, e eu devo crê-lo.
Lendo esta carta Vossa Excelência dirá consigo que eu sou o mais audaz cavalheiro que ainda pisou a terra de Santa Cruz. Será um engano de observação. Isto em mim não é audácia, é franqueza. Lastimo que as coisas chegassem a este ponto, mas não posso dizer-lhe nada mais que a verdade.
Devo confessar que não sei se a carta a que respondo é de Vossa Excelência. A sua letra, de que eu já vi uma amostra no álbum de D. Adelaide, não se parece com a da carta; está evidentemente disfarçada; é de qualquer mão. Demais, não traz assinatura.
Digo isto porque a primeira dúvida que nasceu em meu espírito proveio do portador escolhido. Pois quê? Vossa Excelência não achou outro senão o próprio Diogo? Confesso que de tudo o que tenho visto em minha vida, é isto o que mais me faz rir.
Mas eu não devo rir, minha senhora. Vossa Excelência abriu-me o seu coração de um modo que inspira antes compaixão. Esta compaixão não lhe é desairosa, porque não vem por sentido irônico. É pura e sincera. Sinto não poder dar-lhe essa felicidade que me pede; mas é assim.
Não devo estender-me, e contudo custa-me arrancar a pena de cima do papel. É que poucos terão a posição que eu ocupo agora, a posição de requestado. Mas devo acabar e acabo aqui, mandando-lhe os meus pêsames e rogando a Deus para que encontre um coração menos frio que o meu.
A letra vai disfarçada como a sua, e, como na sua carta, deixo a assinatura em branco.
Li e reli a sua carta; e não lhe ocultarei o sentimento de pesar que ela me inspirou. Realmente, minha senhora, é esse o estado do seu coração? Está assim tão perdido por mim?
Diz Vossa Excelência que eu com a minha bota machuquei o seu coração. Penaliza-me o fato, sem que eu entretanto o confirme. Não me lembra até hoje que tivesse feito estrago algum desta natureza. Mas, enfim, Vossa Excelência o diz, e eu devo crê-lo.
Lendo esta carta Vossa Excelência dirá consigo que eu sou o mais audaz cavalheiro que ainda pisou a terra de Santa Cruz. Será um engano de observação. Isto em mim não é audácia, é franqueza. Lastimo que as coisas chegassem a este ponto, mas não posso dizer-lhe nada mais que a verdade.
Devo confessar que não sei se a carta a que respondo é de Vossa Excelência. A sua letra, de que eu já vi uma amostra no álbum de D. Adelaide, não se parece com a da carta; está evidentemente disfarçada; é de qualquer mão. Demais, não traz assinatura.
Digo isto porque a primeira dúvida que nasceu em meu espírito proveio do portador escolhido. Pois quê? Vossa Excelência não achou outro senão o próprio Diogo? Confesso que de tudo o que tenho visto em minha vida, é isto o que mais me faz rir.
Mas eu não devo rir, minha senhora. Vossa Excelência abriu-me o seu coração de um modo que inspira antes compaixão. Esta compaixão não lhe é desairosa, porque não vem por sentido irônico. É pura e sincera. Sinto não poder dar-lhe essa felicidade que me pede; mas é assim.
Não devo estender-me, e contudo custa-me arrancar a pena de cima do papel. É que poucos terão a posição que eu ocupo agora, a posição de requestado. Mas devo acabar e acabo aqui, mandando-lhe os meus pêsames e rogando a Deus para que encontre um coração menos frio que o meu.
A letra vai disfarçada como a sua, e, como na sua carta, deixo a assinatura em branco.
Esta carta foi
entregue à viúva na mesma tarde. À noite, Azevedo e Adelaide foram visitá-la.
Não puderam dissuadi-la da ideia da viagem para a corte. Emília usou mesmo de
uma certa reserva para com Adelaide, que não pôde descobrir os motivos de
semelhante procedimento, e retirou-se um tanto triste.
No dia seguinte,
com efeito, Emília e a tia aprontaram-se e saíram para voltar para a corte.
Diogo ficou em
Petrópolis ainda, cuidando em aprontar as malas... Não queria, dizia ele, que o
público, vendo-o partir em companhia das duas senhoras, supusesse coisas
desairosas à viúva.
Todos estes passos
admiravam Adelaide, que, como disse, via na insistência de Emília e nos seus
modos reservados um segredo que não compreendia. Quereria ela por aquele meio
de viagem atrair Tito? Nesse caso era cálculo errado; visto que o rapaz,
naquele dia como nos outros, acordou tarde e almoçou alegremente.
— Sabe, disse
Adelaide, que a esta hora deve ter partido para a cidade a nossa amiga Emília?
— Já tinha
ouvido dizer.
— Por que
será?
— Ah! isso é
que eu não sei. Altos segredos do espírito de mulher! Por que sopra hoje a
brisa deste lado e não daquele? Interessa-me tanto saber uma coisa como outra.
No fim do almoço
Tito, como quase sempre, retirou-se para ler durante duas horas.
Adelaide ia dar
algumas ordens quando viu com pasmo entrar-lhe em casa a viúva, acompanhada de
um criado.
— Ah! não
partiste! disse Adelaide correndo a abraçá-la.
— Não me vês
aqui?
O criado saiu a um
sinal de Emília.
— Mas que há?
perguntou a mulher de Azevedo, vendo os modos estranhos da viúva.
— Que há?
disse esta. Há o que não prevíamos... És quase minha irmã... posso falar
francamente. Ninguém nos ouve?
— Ernesto está
fora e o Tito lá em cima. Mas que ar é esse?
— Adelaide!
disse Emília com os olhos rasos de lágrimas, eu o amo!
— Que me
dizes?
— Isto mesmo.
Amo-o doidamente, perdidamente, completamente. Procurei até agora vencer esta
paixão, mas não pude; e quando, por vãos preconceitos, tratava de ocultar-lhe o
estado do meu coração, não pude, as palavras saíram-me dos lábios
insensivelmente...
— Mas como se
deu isto?
— Eu sei!
Parece que foi castigo; quis fazer fogo e queimei-me nas mesmas chamas. Ah! não
é de hoje que me sinto assim. Desde que os seus desdéns em nada cederam,
comecei a sentir não sei o quê; ao princípio despeito, depois um desejo de
triunfar, depois uma ambição de ceder tudo, contanto que tudo ganhasse; afinal
não fui senhora de mim. Era eu quem me sentia doidamente apaixonada e lho
manifestava, por gestos, por palavras, por tudo; e mais crescia nele a
indiferença, mais crescia o amor em mim.
— Mas estás
falando sério?
— Olha antes
para mim.
— Quem
pensara?...
— A mim
própria parece impossível; porém é mais que verdade...
— E ele?...
— Ele disse-me
quatro palavras indiferentes, nem sei o que foi, e retirou-se.
— Resistirá?
— Não sei.
— Se eu
adivinhara isto não te insinuaria naquela malfadada ideia.
— Não me
compreendeste. Cuidas que eu deploro o que acontece? Oh! não! sinto-me feliz,
sinto-me orgulhosa... É um destes amores que brotam por si para encher a alma
de satisfação: devo antes abençoar-te...
— É uma
verdadeira paixão... Mas acreditas impossível a conversão dele?
— Não sei; mas
seja ou não impossível, não é a conversão que eu peço; basta-me que seja menos
indiferente e mais compassivo.
— Mas que
pretendes fazer? perguntou Adelaide sentindo que as lágrimas também lhe
rebentavam dos olhos.
Houve alguns
instantes de silêncio.
— Mas o que tu
não sabes, continuou Emília, é que ele não é para mim um simples estranho. Já o
conhecia antes de casada. Foi ele quem me pediu em casamento antes de Rafael...
— Ah!
— Sabias?
— Ele já me
havia contado a história, mas não nomeara a santa. Eras tu?
— Era eu.
Ambos nos conhecíamos, sem dizermos nada um ao outro...
— Por quê?
A resposta a esta
pergunta foi dada pelo próprio Tito, que assomara à porta do interior. Tendo
visto entrar a viúva de uma das janelas, Tito desceu abaixo a ouvir a conversa
dela com Adelaide. A estranheza que lhe causava a volta inesperada de Emília
podia desculpar a indiscrição do rapaz.
— Por quê?
repetiu ele. É o que lhes vou dizer.
— Mas antes de
tudo, disse Adelaide, não sei se sabe que uma indiferença, tão completa, como a
sua, pode ser fatal a quem lhe é menos indiferente?
— Refere-se à
sua amiga? perguntou Tito. Eu corto tudo com uma palavra.
E voltando-se para
Emília, disse, estendendo-lhe a mão:
— Aceita a
minha mão de esposo?
Um grito de alegria
suprema ia saindo do peito de Emília; mas não sei se um resto de orgulho, ou
qualquer outro sentimento, converteu essa manifestação em uma simples palavra,
que aliás foi pronunciada com lágrimas na voz:
— Sim! disse
ela.
Tito beijou
amorosamente a mão da viúva. Depois acrescentou:
— Mas é
preciso medir toda a minha generosidade; eu devia dizer: aceito a sua mão.
Devia ou não devia? Sou um tanto original e gosto de fazer inversão em tudo.
— Pois sim;
mas de um ou outro modo sou feliz. Contudo um remorso me surge na consciência.
Dou-lhe uma felicidade tão completa como a que recebo?
— Remorso? Se
é sujeita aos remorsos deve ter um, mas por motivo diverso. A senhora está
passando neste momento pelas forcas caudinas*. Fi-la
sofrer, não? Ouvindo o que vou dizer concordará que eu já antes sofria, e muito
mais.
— Temos
romance? perguntou Adelaide a Tito.
— Realidade,
minha senhora, respondeu Tito, e realidade em prosa. Um dia, há já alguns anos,
tive eu a felicidade de ver uma senhora, e amei-a. O amor foi tanto mais
indomável quanto que me nasceu de súbito. Era então mais ardente que hoje, não
conhecia muito os usos do mundo. Resolvi declarar-lhe a minha paixão e pedi-la
em casamento. Tive em resposta este bilhete...
— Já sei,
disse Emília. Essa senhora fui eu. Estou humilhada; perdão!
— Meu amor a
perdoa; nunca deixei de amá-la. Eu estava certo de encontrá-la um dia e procedi
de modo a fazer-me o desejado.
— Escreva isto
e dirão que é um romance, disse alegremente Adelaide.
— A vida não é
outra coisa... acrescentou Tito.
Daí a meia hora
entrava Azevedo. Admirado da presença de Emília quando a supunha rodar no trem
de ferro, e mais admirado ainda das maneiras cordiais por que se tratavam Tito
e Emília, o marido de Adelaide inquiriu a causa disso.
— A causa é
simples, respondeu Adelaide; Emília voltou porque vai casar-se com Tito.
Azevedo não se deu
por satisfeito; explicaram-lhe tudo.
— Percebo;
disse ele; Tito, não tendo alcançado nada caminhando em linha reta, procurou
ver se alcançava caminho por linha curva. Às vezes é o caminho mais curto.
— Como agora,
acrescentou Tito.
Emília jantou em
casa de Adelaide. À tarde apareceu ali o velho Diogo, que ia despedir-se porque
devia partir para a corte no dia seguinte de manhã. Grande foi a sua admiração
quando viu a viúva.
— Voltou?
— É verdade,
respondeu Emília rindo.
— Pois eu ia
partir, mas já não parto. Ah! recebi uma carta da Europa: foi o capitão da
galera Macedônia quem a trouxe! Chegou o urso!
— Pois vá
fazer-lhe companhia, respondeu Tito.
Diogo fez uma
careta. Depois, como desejasse saber o motivo da súbita volta da viúva, esta
explicou-lhe que se ia casar com Tito.
Diogo não
acreditou.
— É ainda um
laço, não? disse ele piscando os olhos.
E não só não
acreditou então, como não acreditou daí em diante, apesar de tudo. Daí a alguns
dias partiram todos para a corte. Diogo ainda se não convencia de nada. Mas,
quando entrando um dia em casa de Emília viu a festa do noivado, o pobre velho
não pôde negar a realidade e sofreu um forte abalo. Todavia, teve ainda coração
para assistir às festas do noivado. Azevedo e a mulher serviram de testemunhas.
É preciso confessar — escrevia dois meses depois o feliz noivo ao
esposo de Adelaide —, é preciso confessar que eu entrei num jogo arriscado.
Podia perder; felizmente ganhei.
FIM
* Busquei na Wikipedia o significado de “forcas
caudinas”. Encontrei sobre uma batalha entre romanos e sumnitas. Os romanos
tiveram que se humilhar para sobreviver a uma emboscada e passar um a um abaixo
de uma lança dos sumnitas:
“...Apiano
descreve com pormenor a humilhação sofrida pelo exército romano: os soldados
foram desarmados e despojados das suas vestes e, unicamente vestidos com uma
túnica, foram obrigados a passar um por um por baixo de uma lança horizontal disposta sobre outras duas cravadas no
chão, que obrigavam os romanos a se inclinarem para as cruzar. Deste episódio,
também chamado "a passagem sob o jugo", nasceu a expressão passar sob o jugo ou
passar pelas forcas caudinas, que significa o ter de aceitar irremediavelmente
uma situação desonrosa.”
COMENTÁRIO
BREVE
Neste
décimo conto de Machado há umas frases interessantes que deixei destacadas. Diria
que são ditos ou máximas populares.
Também
entendo que o estilo é o da sobrevivência de autor do século XIX que escreve em
folhetins: se não agradar ao gosto dos poucos leitores da época, não ganha
nenhum tostão com a obra.
Este
conto estará reunido a outros no livro “Contos Fluminenses”.
Aos
leitores jovens do século XXI digo que ficarei feliz se alguns de vocês lerem
estes contos ou romances de Machado e preservarem a qualidade da literatura de
ontem nos feitos de hoje.
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