O SOBRADO – I
“ERA uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado. Era tanto o silêncio e tão leve o ar, que se alguém aguçasse o ouvido talvez pudesse até escutar o sereno na solidão.
Agachado atrás dum muro, José Lírio preparava-se para a última corrida. Quantos passos dali até a igreja? Talvez uns dez ou doze, bem puxados. Recebera ordens para revezar o companheiro que estava de vigia no alto duma das torres da Matriz. ‘Tte. Liroca – dissera-lhe o coronel, havia poucos minutos – suba pro alto do campanário e fique de olho firme no quintal do Sobrado. Se alguém aparecer pra tirar água do poço, faça fogo sem piedade...” (pág. 1)
INTRODUÇÃO
Assim começa O tempo e o vento, obra magistral de Érico Veríssimo.
Venci o primeiro volume e já vou empolgado para o segundo livro. Vou deixar registrado em meu blog alguns excertos e passagens mui belas ou que nos levam a reflexões interessantes. Sempre que houver negritos, sublinhados ou marcas do tipo, serão marcas minhas, do leitor.
Atenção leitores:
deixo avisado de antemão que minhas postagens revelarão passagens da obra e não
terão ordem cronológica. Pode ser que eu comente a morte de algum personagem
quando esteja falando de outro. Ou seja, aviso desde já porque não gosto de
textos que leio e que revelam enredos de livros e filmes sem avisarem ao
leitor.
“O tiroteio cessara ao
entardecer. Talvez a munição da gente do Sobrado tivesse acabado. Ele podia
atravessar a rua devagarinho, assobiando e acendendo um cigarro. Seria até uma
provocação bonita. Vamos, Liroca, honra o lenço encarnado. Mas qual! Lá estava
aquela sensação fria de vazio e enjoo do estômago, o minuano gelado nos miúdos.
Donde lhe vinha tanto medo? Decerto do sangue da mãe, pois as gentes do lado paterno eram corajosas. O avô de Liroca fora um bravo de 35. O pai lhe morrera naquela mesma revolução, havia pouco mais dum ano – tombara estripado numa carga de lança, mas lutando até o último momento.
‘Lírio é macho’ – murmurou Liroca para si mesmo. ‘Lírio é macho.’
Sempre que ia entrar num combate, repetia estas palavras: ‘Lírio é macho.’...”
(págs. 1, 2)
Fiz questão de ler primeiro a obra literária antes de
assistir a filmes ou minisséries. É que não gosto de contaminação visual ou
interpretações alheias na minha construção mental do texto literário. Cinema,
teatro e televisão sobre obras literárias são interpretações e visões de diretores.
“Ergueu-se, com alguma
relutância e apanhou a carabina.
- Bom, tenho de ir andando... – disse, sem nenhuma vontade de subir
para seu posto.
O outro troçou:
- Tome mais um mate, compadre...
Liroca tornou a suspirar:
- Muito mate tomei eu naquela casa.
- No Sobrado?
- É.
- Casa de pica-pau...
- Os Cambarás são gente direita.
- Inimigo é inimigo. O chefe deles é quem diz: ‘Inimigo não se poupa.’
- O Licurgo é um bom homem.
- Todos eles são uns anjos. – Inocêncio deu uma palmada na coronha da
arma. – Mas pergunta pra minha Comblain se ela gosta de caçar anjo.” (págs.
4,5)
Nos é apresentado o cenário onde há um casarão, que está
cercado por adversários. No casarão tem “pica-paus”, ou seja, republicanos.
Mais um pouco e sabemos que é gente dos Cambarás que está no casarão cercado.
Vamos saber mais sobre quem está no casarão (Sobrado).
“A ordem era clara: se
alguém viesse buscar água no poço, ele devia fazer fogo. Água... Água pra Maria
Valéria. Água pros sitiados. Água pra D. Alice. Água pros meninos. Água pra
velha Bibiana. O pior de tudo era haver mulheres e crianças dentro do casarão. No
princípio do cerco o chefe federalista tinha erguido uma bandeira branca e
mandado o Pe. Romano propor a Licurgo Cambará que fizesse as mulheres e as
crianças se refugiarem na casa paroquial, com todas as garantias de vida e de
respeito por parte dos revolucionários. Mas Cambará dera uma resposta seca: ‘O
lugar da minha família é no Sobrado. Daqui não sai ninguém. Não aceito favor de
maragato.’ O padre voltou acabrunhado com a resposta. ‘Sua alma, sua palma’ –
disse o chefe federalista. E o tiroteio recomeçou.” (pág. 7)
Agora sabemos que se trata de um embate entre republicanos e
federalistas (revolucionários). Estes são chamados de “maragatos” e aqueles de “pica-paus”.
É uma guerra civil brasileira. Irmão que mata irmão. Estamos no ano de 1895. Vamos ver a velha Bibiana.
“Sozinha no seu
quarto, sentada na sua cadeira de balanço, e enrolada no seu xale, a velha
Bibiana espera... O quarto está escuro, mas para ela nestes últimos anos
sempre, sempre é noite, pois a catarata já lhe tomou conta de ambos os olhos. Ela
mal e mal enxerga o vulto das pessoas, mas ouve tudo, sabe de tudo, conhece as
gentes da casa pela voz, pelo andar e até pelo cheiro. Quando ouviu o primeiro
tiroteio, ficou nesta mesma cadeira, esperando e escutando. Quando as balas
partiam as vidraças ou se cravavam nas paredes, ela tinha a impressão de estar
vendo – não! – de estar ouvindo uma pessoa de sua família ser fuzilada pelos
inimigos. Medo não sentiu, isso não. Teve dó. E ódio. Estragarem o Sobrado
desse jeito! Mas guerra para ela não é
novidade. Tudo isso já aconteceu antes, muitas, muitas vezes. Viu guerras e
revoluções sem conta, e sempre ficou esperando. Primeiro, quando menina,
esperou o pai: depois, o marido. Criou o filho e um dia o filho também foi para
a guerra. Viu o neto crescer, e agora o Licurgo está também na guerra. Houve
um tempo em que ela nem mais tirava o luto do corpo. Era morte de parente em
cima de morte de parente, guerra sobre guerra, revolução sobre revolução. Como o tempo custa a passar quando a gente
espera! Principalmente quando venta. Parece que o vento maneia o tempo...
(...)
Ela tem nos dedos murchos um rosário. Esqueceu quase todas as orações. Há uma para dia de tempestade. Outra para tempo de peste. Agora ela precisa rezar pelo bom-sucesso de Alice. Para que botar filhos no mundo, se mais cedo ou mais tarde a guerra leva as criaturinhas?
A velha Bibiana gosta do barulho da cadeira nas tábuas do soalho. É como uma voz, uma companhia. Lembra-lhe outros tempos, outras largas esperas. Estas batidas surdas e o uivo do vento, e o matraquear das vidraças, e o tempo passando...” (págs. 18, 19)
Adorei a leitura do primeiro volume de O tempo e o vento. Estilo
épico, porém com certa leveza na passagem entre o presente da estória e o
passado, indo e vindo em mais de um século de gerações de brasileiros na região
sul do país em guerras e mais guerras, estabelecendo as nossas fronteiras e
definindo a conformação política de nosso Brasil.
Bibliografia:
VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento – O Continente I. Editora Globo. 31ª edição. 1995
Post Scriptum:
No dia 3/11/13, fiz comentário no Facebook a respeito de patifes e me lembrei de leitura que havia feito na obra de Veríssimo.
"Sabe Noni, acordei cedo hoje pra ler O tempo e o vento. Tem uma frase dita por uma personagem sobre patifes que me lembrou o comentário que fizemos ontem sobre certo conhecido nosso que usa adorar amigos com desvio de caráter e falta de ética. Olha que legal a frase:
"Os patifes são em geral pessoas muito simpáticas. Não há nada mais aborrecido que um homem de caráter..."
NÃO É!?"
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