segunda-feira, 10 de outubro de 2016
Na melancolia de uma novela de José J. Veiga
Refeição Cultural
"Às vezes eu tentava abrigo na leitura, mas, sem convicção também nisso, começava de maneira errada: comprava vários livros de uma vez. Em casa me instalava com eles na sala, onde agora quase ninguém entrava. Pegava um volume, folheava, pegava outro, folheava todos e não me entregava a nenhum; com livros no chão ou no colo na cadeira de balanço, os braços na nuca, procurava aflito uma saída. A falta de perspectiva aumentava a aflição e me dava uma consciência aguda do tempo. Era como no colégio em dia de prova, os minutos passando, a hora final chegando, e eu sem saber as respostas. Até o ruído do relógio grande da sala me condenava; preso nele, descobri que o ruído do escape da corda que movimenta o pêndulo e os ponteiros não é igual; cada tique-taque não difere do outro, mas na realidade cada um diz uma coisa: diz que entre ele e o anterior perdeu-se alguma coisa irrecuperável. Enquanto cada segundo ia se libertando da engrenagem que o prendia, para voltar talvez à origem misteriosa do tempo, eu continuava ali empacado, por conseguinte morto. Irritado, procurava esquecer o relógio, mas a condenação persistia. Tudo o que eu olhasse - uma aranha dormindo em sua teia no canto da sala que não era mais limpa todos os dias, uma jarra na mesa, uma fotografia na parede, uma mosca tentando varar a vidraça - me advertia da passagem do tempo. A aranha, a mosca, a fotografia não eram as mesmas que eu tinha visto da primeira vez; entre olhar e considerar, elas ficaram mais velhas. Invenção diabólica, o tempo..." (p. 51/52)
Manhãzinha de segunda-feira. Acabei de ler uma estória de José J. Veiga, autor goiano que escolhi para ler ao longo deste ano. Estou conhecendo a obra dele em ordem cronológica. Comecei com seu primeiro livro de contos Os cavalinhos de Platiplanto (1959) e agora estou no livro De jogos e festas (1980). Este, presenteado a mim por meus colegas de trabalho de Rondônia.
Ao longo das leituras de suas obras, fui me identificando com Veiga. A sensação que tive ao ler também A hora dos ruminantes (1966), A máquina extraviada (1967), Sombras de reis barbudos (1972), Os pecados da tribo (1976) e O professor burrim e as quatro calamidades (1978) foi de verossimilhança com a realidade que estou vendo e vivendo em um mundo em processo acelerado de degeneração, de um novo que chega e se impõe, e muda o que está, até pela força, e vai nos arrasando a todos e nos tirando de um certo conforto anterior.
Os especialistas em Veiga dizem que ele sempre buscou não aceitar associação de suas obras com o período dos anos de chumbo no Brasil. O autor afirmava que não fez obras para surtir efeitos de denúncia ou para instigar pessoas a nada. Mas queira ele ou não, o clima de melancolia que perpassa toda a obra que li até agora é o clima de alguém com consciência e visão intelectual de mundo que está sofrendo ao ver a calamidade política, econômica, humana e social que aflora ao seu redor num país sem liberdades e sob o peso violento da ditadura.
Veiga pode negar a intenção, mas não tem como fugir do contexto e conjuntura que respirou ao acordar para escrever por mais de dua décadas de produção literária.
Este leitor de Veiga que vos fala sente, a cada semana que passa, uma certa melancolia trazida pelos efeitos das ameaças e da destruição de nossos direitos por parte destes seres que chegaram, golpearam e aceleram a distribuição do butim. Sente sobretudo uma tristeza profunda ao ver destruída nossa antiga sociabilidade brasileira. com a ascensão de valores fascistas, violentos, intolerantes contra o outro.
Ao ler a novela De jogos e festas, mais uma vez me vi no início dos anos oitenta, adolescente num mundo duro, com a mesma linguagem que conheci, e vi o personagem fazendo o que as pessoas de nosso mundo faziam.
Estranho! Ao pensar aquele mundo Brasil dos anos setenta e oitenta - miserável! -, sob Estado de Exceção, e aos quase cinquenta anos ver voltar o Estado de Exceção, enfim, o que mais me deixa pusilânime é imaginar ter que passar por todo o processo de volta à democracia e à reconquista de tudo o que os golpistas estão destruindo em semanas e que custaram anos e anos de lutas em nossas vidas...
Enquanto espécie animal, sei que a minha e a classe social em que estamos devem seguir lutando porque é o que tem a se fazer, mas uma vida humana é curta demais para esses vai e vem que duram décadas. Para mim, será bem difícil passar um novo ciclo de anos e anos vivendo triste por ver um mundo fascista, com uma geração que se tornou - a partir de uma máquina de envenenamento midiático - vil, sem ética, sem caráter, com valores asquerosos.
Eu mudei minha psiquê ao longo das experiências da vida, felizmente. Penso na vida, penso nas pessoas, num mundo solidário e com valores coletivos. Mas quantos ainda estão conosco? Os donos dos meios capitalistas e de comunicação de massas (manipulação de massas) neste momento do século 21, venceram.
“Interpone tuis interdum gaudia curis” ou “Mezcla placeres entre tus preocupaciones” (Catão, Dísticos, I, 18)
Minhas reflexões não são sinais de desistência, são só observações da realidade. Enquanto estiver por aqui e em condições, persisto nos ideais. Só preciso achar alguns prazeres para mesclar com as tristezas do que estamos vendo e do que vem pela frente.
William
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